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ISSN: 2595-8402

Journal DOI: 10.61411/rsc31879

REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
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ARTIGO ORIGINAL

A pedagogia histórico crítica: uma alternativa para o ensino da história no Brasil

Rodrigo Moreira Campos1; Rogério Omar Caliari2

 

Como Citar:

CAMPOS, Rodrigo Moreira; CALIARI, Rogério Omar. A pedagogia histórico crítica:uma alternativa para o ensino da história no Brasil. Revista Sociedade Científica, vol.7, n. 1, p.2158-2175, 2024.

https://doi.org/10.61411/rsc202446617

 

DOI: 10.61411/rsc202446617

 

Área do conhecimento: Ciências Humanas.

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Sub-área: Educação.

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Palavras-chaves: Pedagogia histórico-crítica; Educação; Ensino em História.

 

Publicado: 30 de abril de 2024

Resumo

O presente trabalho busca contribuir com a construção de possibilidades pedagógicas para o ensino de História no Brasil, onde apresentamos a pedagogia histórico-crítica como uma alternativa, pensando que um dos objetivos do ensino de História é dar condições para a formação de uma consciência histórica que permita a mobilização do conhecimento histórico para desvendar a realidade presente e projetar possibilidades de transformações futuras.

 

 

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1.Introdução

A partir da concepção de escola unitária de Gramsci, na obra intitulada “Educação Profissional: História e Ensino de História”, Francinne Calegari de Souza [7], analisa a realidade da Educação Profissional brasileira e a atual dualidade de nosso sistema de ensino (que reserva um modelo de escola para as elites e outro para as classes populares, assim como a dualidade entre trabalho manual e intelectual), na perspectiva para fundamentar o fortalecimento da Educação Profissional e do ensino de História sem, contudo, reiterar esse dualismo. Ainda de acordo com a referida autora “pensar o trabalho como princípio educativo é pensar como promover a articulação entre a atividade intelectual e a produtiva de modo a superar a subordinação do trabalho aos ditames do capital. É dar uma dimensão reflexiva para uma atividade que se pressupõe essencialmente prática.”[7]. Trata-se, portanto, de reconhecer os fundamentos ontológicos e históricos do Trabalho em sua relação com o processo de produção do conhecimento que perpassa pela historicidade dos processos de evolução da sociedade no espaço e no tempo.

Sendo assim, sem perder de vista a relação homem-natureza e seu papel histórico enquanto agente de produção do espaço, faz-se necessário destacar que a consciência histórica contribui na formação de cidadãos conscientes de seu papel histórico e social na relação com o meio que estão inseridos, capazes de se entender como agentes históricos de seu tempo. O ato de ensinar História deve ter a intencionalidade de buscar a práxis do saber histórico. De acordo com Rüsen [17], “isso se dá quando, em sua vida em sociedade, os sujeitos têm de se orientar historicamente e têm que formar sua identidade para viver - melhor: para poder agir intencionalmente”.

A consciência histórica apresenta formas diversas que variam desde a utilização do conhecimento histórico para reafirmação e reprodução de valores tradicionais de forma atemporal até a mobilização desse conhecimento como forma de entender a sociedade presente e projetar possibilidades futuras. O conceito de consciência histórica é apresentado por Rüsen [16] em 4 tipologias: a tradicional, onde a totalidade temporal é apresentada como continuidade dos modelos de vida e cultura do passado, servindo para reafirmar valores e justifica-los de forma atemporal; a exemplar, onde as experiências do passado representam regras gerais da mudança temporal e da conduta humana; a crítica, que busca e mobiliza uma classe específica de experiência do passado, a evidência prevista pelas "contranarrações", desvios que tornam problemáticos os sistemas de valores presentes, permitindo formular pontos de vista históricos por negação de outras posições; e a genética, que trata a mudança como a essência que dá a História o seu sentido e enxerga o presente como uma intersecção, um nó intensamente temporal, uma transição dinâmica com o futuro.

A partir dos conceitos elaborados por Rüsen, Maria Auxiliadora Schmidt e Tânia Maria Garcia [21] apresentam a forma de “consciência histórica crítico-genética” que permite comparar situações relacionadas a determinados acontecimentos históricos a partir de referências temporais individuais e coletivas e se apropriar das informações, recriando-as na dimensão das diferenças, das mudanças e das permanências. A consciência histórica crítico-genética “supera, mas não exclui formas tradicionais de consciência histórica” [21].

O conceito apresentado por Schmidt e Garcia [21] permite uma aproximação maior com o Materialismo Histórico Dialético (MHD) e com o fim que enxergamos como objetivo para o ensino de História, onde a consciência histórica, levando em conta o caráter dialético da História, deve permitir a mobilização do conhecimento histórico para desvendar a realidade presente e projetar possibilidades de transformações futuras, entendendo que valores morais e culturais possuem um caráter histórico, construídos sob hegemonia dos grupos dominantes em cada momento histórico e apresentados como valores universais de toda a sociedade. Nesse sentido cabe o questionamento de valores hegemônicos presentes na contemporaneidade, mas não como mera negação destes, pois o processo dessa construção é contraditório, onde os grupos dominados não são sujeitos passivos e a luta entre as classes permite que os subalternos tenham seus valores parcialmente atendidos no que se configura como uma cultura universal. A consciência histórica deve permitir pensar o futuro não como uma ruptura atemporal com o passado, mas como uma superação histórica que tem no próprio tempo presente as ferramentas para a sua fundamentação.

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2.Desenvolvimento e discussão

A História como disciplina esteve presente desde as primeiras escolas elementares no Brasil, mas o objetivo, assim como a importância da disciplina, variou bastante. De princípio, o ensino de História servia como complemento da alfabetização, dividida entre História profana e História sagrada. No Colégio Pedro II, criado pelo governo Imperial em 1837, voltado para Educação Secundária destinada a formação das elites, o ensino de História sempre esteve presente no currículo com objetivo de dotar os alunos de conhecimentos e valores que seriam marcas de uma elite nacional, ou seja, uma “formação moral baseada no ideário de civilização, cujos valores eram disseminados como universais, mas praticados com exclusividade pela elite” [2]. Segundo a mesma autora, os textos selecionados para estudos serviam para formação de “valores como a prudência, a justiça, a coragem e a moderação” [2].

Com o nascimento da república e a extensão do direito ao voto para todos os homens alfabetizados, foi forjado um novo objetivo para a disciplina História nas escolas: a sedimentação de uma identidade nacional. Era preciso “integrar setores sociais anteriormente marginalizados no processo educacional sem, contudo, incluir nos programas curriculares a participação deles na construção histórica da Nação” [2]. Assim foi potencializada a narrativa histórica do homem branco europeu, e por conseguinte, os personagens representativos dos interesses da elite dominante consagraram-se em heróis nacionais, enquanto a participação popular no processo histórico, os anseios e lutas das classes subalternas foram ocultados e/ou marginalizados.

O método predominante no processo de ensino e aprendizagem era voltado para a memorização de fatos, datas e personagens. As atividades de avaliação e exercícios de fixação tornavam os estudantes prisioneiros dos livros didáticos em seus formatos isentos de reflexões. Mesmo com o avanço das chamadas metodologias ativas3 [2], ainda predominava o exercício de memorização, sobretudo devido a um extenso conteúdo em relação a carga de horas-aula da disciplina.

Com a Reforma Educacional de 1971 [4], durante a ditadura militar, o primário e ginásio passaram a constituir o 1º grau de 8 anos, oportunidade em que a disciplina História teve seu conteúdo esvaziado e agrupado com o da Geografia em uma nova disciplina, denominada Estudos Sociais, sendo que, a disciplina História só permaneceu no currículo dos 3 anos do 2º grau. Com carga horária reduzida, buscou-se uma suposta neutralidade científica quando o professor foi, de certa forma, aprisionado pelo conteudismo e pela ausência de reflexão crítica sobre os processos históricos. No aspecto pedagógico preponderou o modelo de Educação Tecnicista, que Dermeval Saviani [18] assim explica:

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O pano de fundo dessa tendencia está constituído pela teoria do capital humano, que, a partir da formulação inicial de Theodore Schultz, se difundiu entre os técnicos da economia, das finanças, do planejamento e da educação. E adquiriu força impositiva ao ser incorporada à legislação na forma dos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade, com os corolários do "máximo resultado com o mínimo de dispêndio" e "não duplicação de meios para fins idênticos".

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O modelo objetivava o aumento de produtividade através do controle de comportamento, o papel da Educação seria a “formação de recursos humanos para o desenvolvimento econômico dentro dos parâmetros da ordem capitalista;” [18]. Os métodos passaram a ser considerados técnicas de ensino, “Havia "técnicas para o trabalho em grupo, técnicas de leitura de textos, técnicas para realizar excursões, técnicas de estudo dirigido, etc.” [2]. A orientação pedagógica apontava para apenas reforçar os conteúdos e aperfeiçoar as técnicas de execução de tarefas e fixação de conteúdo sem reflexão crítica.

Decerto, mesmo não se tratando de uma prática pedagógica uniforme e havendo formas de resistência entre os educadores que “subverteram” a ordem imposta, foi somente com o fim da ditadura militar e com o movimento de redemocratização do país que o debate sobre as concepções pedagógicas se ampliou e ganhou força para o retorno da disciplina História e o fim dos Estudos Sociais. Neste contexto histórico,

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[...] ocorreu a ampliação do campo de investigação historiográfica, adotando-se então novas fontes, problemas e metodologias, o que rompia com os modelos curriculares impostos pela ditadura, uma vez que destacavam a necessidade de instigar a criticidade e propor reflexões sobre a História ensinada na educação básica [1].

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É nesse contexto que ganham força as teorias pedagógicas críticas, em sentido contra-hegemônico, “que em lugar de servir aos interesses dominantes se articulassem com os interesses dominados” [19]. Entre as propostas pedagógicas apresentadas no período, destacamos a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC), “tributária da concepção dialética, especificamente na versão do Materialismo Histórico Dialético, tendo fortes afinidades, no que se refere às suas bases psicológicas, com a psicologia histórico-cultural desenvolvida pela Escola de Vygotsky” [19], lançada em 1979, tendo à frente o professor Dermeval Saviani4.

Nos anos 1990, com o avanço das políticas neoliberais, a orientação da Educação brasileira foi no sentido de sedimentação de uma "pedagogia de hegemonia e de consenso em torno do ideário neoliberal de homem" [10] pensando a Educação escolar como instrumento para consolidar valores e ideias e “fazer com que os indivíduos aceitem como natural a reestruturação do capitalismo globalizado, com suas diferenças econômicas, sociais, culturais e outras” [10].

As políticas governamentais atendiam as orientações da “Conferência Mundial sobre Educação para Todos” realizada em 1990, “sob os auspícios do Banco Mundial (BM), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e da Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura (UNESCO)” [13], apresentando as novas exigências do mercado e do regime de acumulação flexível que necessita de trabalhadores adaptáveis a situações variáveis. Em outras palavras, deve o trabalhador ser polivalente, entendido aqui “como o domínio amplo do serviço que o indivíduo realiza e das diferentes etapas que são desenvolvidas dentro do ambiente de trabalho” [13]. Tais necessidades foram traduzidas no campo educacional através das “Pedagogias das Competências”5, que possuem como lema o “aprender a aprender”, “cuja essência é exatamente a negação da transmissão do saber objetivo e o esvaziamento do trabalho educativo, transformando-o num processo sem conteúdo” [13].

A expansão desregulamentada do Ensino Superior privado contribuiu com o processo de precarização da formação docente, em especial a partir de 1996 quando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), "reconheceu, pela primeira vez na legislação brasileira, a possibilidade de lucro para as instituições privadas de ensino" [22] e criou a possibilidade de formação de “centros universitários” uma espécie de universidade de segunda classe, sem a necessidade de desenvolver pesquisa [18].

A respeito da admissão da possibilidade de lucro por parte das instituições de ensino privadas, Saviani [18] argumenta:

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Por um lado, isto pode ser visto de forma positiva pois explicita um fato que, embora real, vinha sendo camuflado no contexto anterior. Essa explicitação é, ainda, positiva porque permite tornar mais transparentes os critérios relativos ao tratamento a ser dado às instituições privadas de ensino. Por outro lado, esse dispositivo revela o clima hoje predominante – em que tudo tende a ser aferido pela referência ao mercado, entendido como o campo próprio da iniciativa privada que busca invariavelmente o lucro –, sendo, ao mesmo tempo, um indicador da evidente subordinação da atual política educacional a esse clima.

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Quanto à Educação Profissional, o Decreto n. 2.208, de 17 de abril de 1997, deu passos para trás instituindo a separação entre o Ensino Médio e o Ensino Técnico e, com isso, reforçando a dualidade entre a Educação propedêutica e a Educação para o trabalho [18].

Ainda assim foram verificados avanços nesse período, principalmente no sentido de reconhecer o educador na condição de “um trabalhador intelectual que deve ser bem preparado no âmbito da sua formação superior, tanto para o exercício da docência como para a atividade de pesquisador, produzindo e ajudando a produzir conhecimento” [1].

Com a ascensão dos governos democráticos e populares, a partir da eleição de Luiz Inácio “Lula” da Silva em 2002, observamos avanços significativos, como a criação centenas de campis de Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e quase duas dezenas de Universidades Federais, a implementação de políticas públicas de acesso e permanência para os mais pobres, a população afrodescendente, os quilombolas e os indígenas à Educação Básica e Superior [9] e a ​​ Lei n°. 10.639/03 [2]. Esta última estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de História da África e das culturas africana e afro-brasileira no currículo da Educação Básica, contribuindo para dar visibilidade a sujeitos historicamente invisibilizados pela narrativa hegemônica das classes dominantes, também por meio dos livros didáticos.

Na Educação Profissional, além da já citada expansão, podemos destacar outros avanços como a revogação do Decreto 2.208/97 pelo governo Lula, em 2004, e a criação do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC)6, em 2011, pelo governo de Dilma Rousseff, com o objetivo de oferecer cursos de Educação Profissional e Tecnológica para a população, com direito a auxílio alimentação, auxílio transporte e material escolar [18].

Uma importante política na valorização dos profissionais da Educação foi a instituição do piso salarial nacional para os profissionais do magistério público da Educação Básica através da lei n. 11.738, de 16 de julho de 2008.

Outro avanço significativo foi a regulamentação dos estágios dos estudantes do Ensino Superior, da Educação Profissional, do Ensino Médio, da Educação Especial e dos anos finais do Ensino Fundamental na modalidade profissional através da lei 11.788 de 25 de setembro de 2008 [18].

No campo da orientação pedagógica não houve grandes mudanças, prevalecendo as orientações pedagógicas hegemônicas identificadas à lógica do mercado, das teorias do "aprender a aprender".

O ciclo democrático e popular foi chegando ao fim com o avanço das forças políticas conservadoras que, a partir do resultado das eleições presidenciais de 2014, iniciaram um processo de desestabilização política e econômica do país, culminando com o “Golpe de 2016”7. Neste contexto, ganharam força os movimentos de extrema-direita que, além da apropriação dos símbolos nacionais, à exemplo da bandeira do Brasil e do Hino Nacional, assumiram também a defesa de valores sociais conservadores pautados no racismo, na homofobia, na misoginia, assim como em defesa do ultraliberalismo e um novo fundamentalismo cristão, tendo como suporte alguns escritores e jornalistas, elevados à categoria de “intelectuais” [1]. Esses grupos considerados de extrema-direita, se organizaram e ganharam força também por meio das redes sociais, com disparos simultâneos de “fake News” (notícias falsas) e teorias de conspiração. O avanço da extrema-direita resultou na ascensão de grupos autoritários de conotação neofascista, levando Jair Bolsonaro à presidência da República.

Concomitante ao processo histórico de avanço das forças políticas conservadoras pós golpe de 2016, no Brasil, no campo da educação, em especial da escola pública, o debate pedagógico e as práticas docentes passaram a ser permeadas pelas inúmeras tentativas de impor o projeto Escola Sem Partido (ESP), a exemplo do que ocorreu com a educação nos tempos de ditadura, quando à luz de uma pretensa neutralidade, tentaram impedir que o professor promovesse discussões políticas por meio de debates críticos e reflexivos na sala de aula.

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Ainda conforme o ESP, cabe ao professor apenas transmitir um determinado conteúdo, não sendo de sua competência discutir ou mesmo expressar sua posição a respeito de tal conteúdo, impedindo, dessa forma, a problematização dos conteúdos e a reflexão crítica, processos fundamentais para a práxis no processo de ensino-aprendizagem [1].

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Na tentativa de impor a narrativa baseada na “acusação de que professores promovem doutrinação ideológica, o ESP propõe que se adote uma postura de vigilância policialesca sobre escolas, professores, currículos e mesmo materiais didáticos” [1], configurando como uma “[...] ameaça à vivência social e à liquidação da escola pública como espaço de formação humana, firmado nos valores da liberdade, de convívio democrático e de direito e respeito à diversidade.” [9].

O ano de 2016 foi marcado também pela imposição de uma reforma regressiva do Ensino Médio pelo governo de Michel Temer que instituiu, no Plano Nacional da Educação8, “um projeto de formação estruturado pela sonegação de conhecimentos e pelo empobrecimento das práticas formativas” [16], onde, nas palavras do mesmo autor, o “objetivo é legitimar desigualdades históricas as quais está submetida a maioria da população brasileira”.

Justificado na necessidade de recriar a escola reconhecendo “que as rápidas transformações na dinâmica social contemporânea nacional e internacional, em grande parte decorrentes do desenvolvimento tecnológico, atingem diretamente as populações jovens e, portanto, suas demandas de formação” [6], a Reforma do Ensino Médio vai na contramão do objetivo por uma formação integral, retirando a obrigatoriedade das disciplinas Sociologia, Filosofia9, Artes, Educação Física e Espanhol.

Para a formação profissional, a Reforma trouxe a possibilidade de contratação de profissionais sem formação específica, pela introdução do conceito do notório saber, aumentando a dualidade entre formação teórica e prática e, embora aponte para um aumento da carga horária (objetivo de 1400 horas anuais) ela fixa o máximo de apenas 1800 horas para a base comum durante os 3 anos de ensino médio.

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Esses percursos (itinerários formativos) serão organizados por meio de diferentes arranjos curriculares, podendo ou não estar integrados à formação comum, e devem levar em conta o contexto local e as possibilidades dos sistemas de ensino. Só são duas as disciplinas obrigatórias nos três anos do ensino médio: língua portuguesa e matemática; as demais, e entre elas artes, educação física, sociologia e filosofia, devem ser obrigatoriamente incluídas, mas não por todo o percurso, o que pode significar apenas um módulo de curta duração [11].

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No estado do Espírito Santo, desde 2020, o Ensino Médio vem passando por mudanças no sentido de atender os objetivos da Reforma. A duração da hora-aula foi reduzida de 55 para 50 minutos acrescentando uma aula diariamente. Artes e Língua Inglesa saíram do currículo dos primeiros anos e Filosofia, Sociologia e Educação Física dos terceiros anos. Foram incluídas as disciplinas da parte diversificada: "Língua Estrangeira Moderna (Língua Espanhola), Redação, Cultura Digital e Componentes Integradores (Projeto de Vida, Estudo Orientado, Eletivas)" [8].

Com a inserção dos “Itinerários Formativos”10 as disciplinas de História e Geografia saíram do currículo do 1º ano do Ensino Médio na maioria das escolas capixabas, exceção feita às escolas que adotaram o itinerário em “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas”.

Nesse contexto que propomos, buscando refletir sobre o ensino de História, pensar nas formas de socialização do saber histórico no sentido de contribuir para uma formação crítica que propicie ao estudante, por meio dos conhecimentos históricos, uma melhor apreensão da realidade e uma consciência histórica que o projete como agente crítico capaz de influenciar de forma consciente o processo histórico de seu tempo. Nessa direção, entendemos que a Pedagogia Histórico-Crítica [20] se constitui numa concepção pedagógica capaz de colaborar nos processos de compreensão e apreensão com ênfase nas estratégias pedagógicas e práticas docentes comprometidas com a fundamentação do conhecimento solidário e compartilhado, pautado, principalmente, na proposta de permitir à classe trabalhadora acesso aos conhecimentos construídos historicamente e negados a ela em sua plenitude.

A Pedagogia Histórico-Crítica compreende o ato educativo dentro da práxis, propondo um movimento no qual “A prática social põe-se, portanto, como o ponto de partida e o ponto de chegada da prática educativa” [18] e a teoria serve à problematização dessa prática, retornando-a como uma prática transformadora.

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Daí decorre uma concepção pedagógica que parte da prática social em que professor e aluno se encontram igualmente inseridos, ocupando, porém, posições distintas, condição para que travem uma relação fecunda na compreensão e no encaminhamento da solução dos problemas postos pela prática social. Aos momentos intermediários do método cabe identificar as questões suscitadas pela prática social (problematização), dispor os instrumentos teóricos e práticos para a sua compreensão e solução (instrumentação) e viabilizar sua incorporação como elementos integrantes da própria vida dos alunos (catarse:) [18]

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É uma formulação que se inicia com a escola que temos, dentro do desenvolvimento histórico-objetivo, partindo da realidade concreta com o compromisso de transformar a sociedade. Pensa o ato educativo como uma ação intencional, comprometida com a classe trabalhadora, o que exige, do professor, o domínio dos saberes a serem ensinados, assim como com a forma de socializar esse conhecimento, permitindo a classe trabalhadora apreender os conhecimentos históricos e colocá-los, na prática, a serviço de seus interesses no percurso emancipatório.

A Pedagogia Histórico-Crítica mostra-se como uma concepção pedagógica fundada na elaboração de métodos e didáticas possíveis de serem aplicadas na escola que temos, dentro do desenvolvimento histórico-objetivo, partindo da realidade concreta, sem deixar de refletir sobre os limites que a atual gestão da Educação impõe, impossibilitando grandes avanços no ato educativo, o que mostra com clareza que o objetivo pleno de uma formação omnilateral só é possível com uma mudança de mentalidade da própria sociedade.

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3. Considerações finais

A Pedagogia Histórico-Crítica permite pensar formas de ensinar História, tendo a prática social da realidade em que estamos inseridos como ponto de partida e de chegada da ação educativa, possuindo como elementos intermediários os momentos de problematização, instrumentalização e catarse. Nesse sentido buscamos o movimento dialético do singular-universal-particular entendendo que “a particularidade, como mediação, permite transformar a universalidade abstrata em uma totalidade concreta de determinações (particulares) vinculadas à natureza específica da singularidade do fenômeno ou objeto” [12], problematizando e instrumentalizando os conhecimentos históricos em um movimento reflexivo sobre como os processos históricos influenciaram e influenciam a fundamentação dessa realidade, possibilitando assim, pensar uma prática transformadora com uma nova consciência histórica.

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4. Declaração de direitos

 Os autores declaram ser detentores dos direitos autorais da presente obra, que o artigo não foi publicado anteriormente e que não está sendo considerado por outra(o) Revista/Journal. Declaram que as imagens e textos publicados são de responsabilidade dos autores, e não possuem direitos autorais reservados à terceiros. Textos e/ou imagens de terceiros são devidamente citados ou devidamente autorizados com concessão de direitos para publicação quando necessário. Declara(m) respeitar os direitos de terceiros e de Instituições públicas e privadas. Declara(m) não cometer plágio ou auto plágio e não ter considerado/gerado conteúdos falsos e que a obra é original e de responsabilidade dos autores.

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  • SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, 11 ed. Campinas: Autores Associados, 2011.

  • SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos; GARCIA, Tânia Maria F. Braga. A formação da consciência histórica de alunos e professores e o cotidiano em aulas de história. Cadernos Cedes, v. 25, p. 297-308, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/bnBSVjTpFS7wbs9W659NMGC/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 02 jul. 2022.

  • SILVA, A. A. Estado e “conversão” democrática: legados da nova república para as políticas educacionais dos anos 1990. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, SP, v. 14, n. 55, p. 34–53, 2014. DOI: 10.20396/rho.v14i55.8640460.

     

1

Professor da rede pública estadual do Espírito Santo, Vila Velha/ES, Brasil. ​​ 

2

Professor Titular do Instituto Federal do Espírito Santo – IFES, Itapina/ES, Brasil. ​​ 

3

Metodologias ativas: métodos que apresentam o aluno como principal responsável pela sua aprendizagem, sendo o professor o responsável apenas por mediar esse processo aprendizagem.

4

As raízes dessa concepção pedagógica são encontradas nas seguintes obras de Dermeval Saviani: Escola e Democracia (1983), Escola e Democracia: para além da teoria da curvatura da vara (1982) e Pedagogia Histórico Crítica: primeiras aproximações (1991).

5

A Pedagogia das Competências é uma vertente do construtivismo que atribui maior valor para ​​ o método de aprendizado desenvolvido pelo próprio aluno, bem como o aprendizado baseado na necessidade e no interesse do educando, do que para o próprio objeto de aprendizagem, reduzindo conteúdos disciplinares no sentido de que o resultado que interessa não é a absorção do conhecimento em si, mas a forma como o indivíduo irá utilizar esses conhecimentos na vida prática [14], culminando na subestimação do papel do professor e importância dos conhecimentos científicos.

6

O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), criado em outubro de 2011 com a sanção da Lei 12.513/2011, tem como objetivo ampliar, interiorizar e democratizar a oferta de cursos de Educação Profissional e Tecnológica (EPT). Ele contribui para a melhoria da qualidade do Ensino Médio Público, por meio da Educação Profissional, e amplia as oportunidades educacionais dos trabalhadores, incrementando a formação profissional. O programa estabelece a Bolsa-Formação, que possibilita a oferta de vagas em cursos técnicos e de Formação Inicial e Continuada (FIC). Existem dois tipos de Bolsa-Formação: a Estudante, destinada a alunos das redes públicas de ensino médio, e a Trabalhador, que oferece cursos de qualificação a pessoas em vulnerabilidade social e trabalhadores de diferentes perfis. Todos os cursos são oferecidos gratuitamente.

7

Golpe parlamentar imposto pela coalizão entre Congresso Nacional e parte do Poder Judiciário com apoio crucial da mídia hegemônica que destituiu a então presidenta Dilma Rousseff.

8

O Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pela Lei nº 13.005/2014, é um Plano Decenal com sua vigência determinada pela Constituição, o que significa que transcende diferentes governos. Fruto de amplo processo de debate, iniciado na CONAE - 2010 e culminando com a aprovação pelo Congresso Nacional, o PNE está vinculado a recursos para seu financiamento, prevalecendo sobre os Planos Plurianuais (PPA’s) [5].

9

As disciplinas Sociologia e Filosofia eram obrigatórias desde 2008 com a Lei nº 11.684/08 que alterou o art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

10

​​ Conjunto de disciplinas, projetos, oficinas, núcleos de estudo, entre outras situações de trabalho, sem vinculação direta com a Base Nacional Curricular Comum, que os estudantes poderiam escolher no ensino médio desde que ofertado na unidade de ensino deste.

 


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