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Scientific Society Journal
ISSN: 2595-8402
Journal DOI: 10.61411/rsc31879
REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
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ARTIGO ORIGINAL
A aplicação do direito sistêmico em casos envolvendo crianças e adolescentes no Brasil
Ana Carolina de Freitas Osório Soares e Soares1
Como Citar:
E SOARES, Ana Carolina de Freitas Osório Soares. A aplicação do direito sistêmico em casos envolvendo crianças e adolescentes no Brasil . Revista Sociedade Científica, vol.7, n.1, p.1987-2007, 2024.
https://doi.org/10.61411/rsc202446517
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Área do conhecimento: Direito.
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Palavras-chaves: Direito Sistêmico; Constelação Familiar; Criança e adolescentes; Sistema Judiciário.
Publicado: 18 de abril de 2024.
Resumo
O presente artigo, através do método dedutivo e da análise bibliográfica, visa demonstrar que o Direito Sistêmico é mais presente do que acreditamos no Sistema Judiciário, principalmente em casos que envolvem crianças e adolescentes. O artigo inicia trazendo um panorama da infância e adolescência no Brasil, a partir dá o conceito de Constelação Familiar-prática do Direito Sistêmico/ método alternativo de solução de conflitos e, como dá a sua aplicação em casos vigentes, ainda que se trate de método não científico. Perpassa pelo responsável por trazer essa prática para o Brasil, o juiz Sami Storch, e conclui pontuando que esta é uma nova forma de encarar os problemas trazidos ao Judiciário.
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Abstract
This article, through the deductive method and bibliographical analysis, aims to demonstrate that Systemic Law is more present than we believe in the Judicial System, especially in cases involving children and adolescents.It begins by bringing an overview of childhood and adolescence in Brazil and from there explains what the Family Constellation is, the practice of Systemic Law / alternative method of conflict resolution, and how it is applied in current cases. It goes through the responsible for bringing this practice to Brazil, judge Sami Storch, and concludes by pointing out that this is a new way of facing the problems brought to the Judiciary.
.Keywords: Systemic Law; Family Constellation; Child and teenagers; Judiciary System.
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1. Introdução
Segundo Niklas Luhmann, para se entender o funcionamento de um ambiente é necessário diminuir a sua complexidade e, o instrumento capaz de fazer isso é o sistema. Para ele os sistemas funcionam de forma operacionalmente fechada, mas com comunicação aberta, ou seja, trabalham com códigos binários que dialogam entre si, contudo, ao incorporarem um conceito o transformam para o seu próprio código (autorreferência).
Seu objetivo era se desvencilhar das teorias clássicas já existentes, pois acreditava que estas já não eram mais eficientes para tratar da sociedade uma vez que sofria a interferência de outros sistemas como o da tecnologia que avança a cada segundo de forma inalcançável.
A sua teoria traz resquícios da tese de Ludwig Von Bertalanffy, filósofo e biólogo, pioneiro na temática e, apesar de não ser jurista, viu seus estudos serem aplicados ao Direito.
Niklas Luhmann trouxe a teoria dos sistemas para as ciências sociais pontuando o papel da comunicação.
Luhmann é um autor interdisciplinar, tem diversos trabalhos publicados transitando por diversas áreas como: política, economia, arte, religião, ecologia e meios de comunicação.
No Direito, em especial no âmbito dos direitos da criança e do adolescente, o Direito Sistêmico nos últimos anos ganhou notoriedade, pois é visto como uma das formas de auxiliar a sociedade no tratamento de uma miséria tão latente.
No Brasil, a Constelação Familiar está sendo aplicada nas varas da infância e da juventude e nas varas da família como uma forma de auxílio na resolução dos casos, ainda que deixe de apresentar comprovação científica da sua eficácia. Coloca-se como objetivo principal garantir que o conflito seja entendido de forma profunda garantindo o melhor interesse da criança ou adolescente.
O objetivo deste artigo é trazer um breve panorama sobre a situação da criança e do adolescente na sociedade brasileira e a aplicação do Direito Sistêmico como forma de preservação dos seus direitos.
2. O que diz a Teoria dos Sistemas?
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“Uma visão sistêmica do direito, pela qual só há direito quando a solução traz paz e equilíbrio para todo o sistema.”
Sami Storch
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Em 1950 o biólogo alemão Ludwig von Bertalanffy passou estudar o que posteriormente ficaria conhecida como Teoria Geral dos Sistemas. Esta foi considerada por ele como uma teoria científica que tinha por base de estudo o sistema biológico, ou seja, o funcionamento de um organismo vivo. A forma como as células animais interagiam com o ambiente, as trocas de informação e a sua própria construção.
Seu objetivo era encontrar um método capaz de explicar os fenômenos sociais e naturais aplicáveis universalmente, a todas as ciências.
Em 1964, Niklas Luhmann, publicou a obra “Teoria de Sistemas” (Funktiones und Folgen Formaler Organitation). Sua pesquisa também se baseou na organização sistemática encontrada em organismos vivos, como sociólogo, seu objetivo era dirimir a complexidade do sistema social. Para isso ele retoma o avanço tecnológico e a rapidez com que os sistemas interagem entre si.
Para o autor todos os sistemas funcionam através de códigos binários (certo x errado; moral x imoral), comunicam-se com os códigos de sistemas diversos com finalidade dirimir a complexidade. Através dessa comunicação é possível que o sistema puxe para si informações, mas as transforma em seu código próprio, a isto ele dá o nome de acoplamento estrutural. Apesar de divergentes ao adentrarem no sistema, acoplam-se a sua estrutura.
Para explicar este funcionamento Luhmann pontua três características dos sistemas: autorreferentes, autopoiéticos e funcionalmente fechados.
Funcionalmente fechados porque seu funcionamento se dá através dos códigos binários citados anteriormente, contudo, sua comunicação é aberta, garantindo a complexidade da relação. Recebem estes códigos diversos e transformam em seu, referindo-se ao seu objeto central, por isso autorreferentes. O que demonstra também a terceira característica: autopoiese, ou autoprodução.
Para sua teoria, uma característica imprescindível do sistema é a comunicação. Os agentes de comunicação não são os sistemas psíquicos, mas sim os sistemas sociais, ele retira o ser humano do cento e coloca-o como mais um sistema parte do ambiente.
A comunicação ocorre quando o Ego (receptor) compreende a informação que fora emitida pelo Alter (emissor). Esta compreensão não necessariamente ocorrer da forma correta, pode chegar com ruídos, distorcida, mas o importante é que se compreenda algo.
Quando mais eficiente a comunicação, menor a complexidade do sistema. Para Luhmann, esta é a base primordial para compreensão de toda sua teoria.
3. A situação da criança e do adolescente no Brasil
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“A esperança é sempre necessária. É um conceito necessário, o que dás às tuas crianças se não lhes conseguires dar esperança?”
Michelle Obama
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Precipuamente, pontua-se que até o século XVI, as crianças não tinham nenhum relevância na sociedade. Nas palavras de Ariés2 em sua obra
“No mundo das fórmulas românticas, e até o fim do século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido”3.
Antigamente as crianças eram vistas como adultos em miniatura, sem desejos ou necessidades.
O autor vai dizer que isso se dá pelo elevado nível de mortalidade das crianças naquela época, em razão das condições precárias de moradia, saneamento e, também, higiene básica.
A partir do século XVIII a infância passou a ter importância para a família até porque as mulheres foram incumbidas de ficar em casa e cuidar dos filhos levando-as a criar certa dependência. Nesse sentido, Ariès afirma em sua obra: “A infância era apenas uma fase sem importância, que não fazia sentido ficar na lembrança”.
Assim, durante muito tempo as crianças foram tidas como meros objetos, a família tinha uma construção distinta, o ideal era de que as mulheres serviam somente para o maternar, pouco ou nada se falava sobre a construção da maternidade. Embora a criança fosse sim tida como o “futuro da nação”, eram consideradas seres irracionais.
Interessante dizer que a própria etimologia da palavra infância, advém da palavra enfant, que significa “não-falante”. Portanto, a criança na fase da “infância” era considerara um ser inanimado, que não deveria se manifestar. Tanto é que, as leis criadas e voltadas para os infantes tinham, majoritariamente, objetivo segregacional, olhando apenas para os “menores abandonados e desajustados” excluindo-os do convívio social por serem vistos como um perigo ou incômodo social.
Outra colocação do autor Ariès que merece citação é:
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“Até hoje nós não falamos em começar a vida no sentido de sair da infância? Esse sentimento de indiferença com relação a uma infância demasiado frágil, em que a possibilidade de perda é muito grande, no fundo não está muito longe da insensibilidade das sociedades romanas ou chinesas, que praticavam o abandono das crianças recém-nascidas.”4
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Essa afirmação também está presente no nosso quotidiano, embora o conceito de criança hoje tenha conotação distinta da que teve outrora, a imagem de que a infância é uma passagem que não merece tanta atenção, principalmente com as mudanças da dinâmica familiar, em que as mulheres passaram a ocupar os espaços externos da casa e os homens não ocuparam o ambiente da casa continua latente.
Pode-se observar que a partir disso surgiram algumas outras questões, como o fato das crianças se sentirem desamparadas e desassistidas, buscando aconchego em outros ambientes como a escola, ambiente que ela passa a maior parte do seu tempo.
Dito isso, adentrando no assunto das leis voltadas para crianças e adolescentes, visando preservar direitos e garantias, nasceram juntamente com normas de Direitos Humanos, visto que a situação das crianças no país e no mundo eram degradantes e as violações eram inúmeras.
Assim, a partir dos séculos XVII e XVIII, com o surgimento dos Direitos do Homem e do Cidadão, nasceu o titulado como direitos da primeira geração que protegiam os direitos a liberdades, civis e políticos e individuais de forma a proteger a humanidade de sofrer novamente os horrores da Segunda Guerra Mundial, vistos no Holocausto e em outros diversos massacres. Estes acontecimentos acenderam a luz vermelha quanto as garantias individuais, principalmente a garantia à vida, liberdade e dignidade.
A segunda geração dos Direitos Humanos, surge a partir da Revolução Industrial e o processo de urbanização, durante o século XIX na Europa, a partir da opressão e exploração das classes operárias.
Oportuno trazer um pouco sobre a trajetória do conceito de dignidade da pessoa humana ao longo dos séculos. A academia entende que a dignidade da pessoa humana possui um conceito aberto, ou seja, não há que se falar em um sentido único, até porque, ao longo do tempo o seu objeto se alterou.
Inicialmente, entendia-se como dignidade da pessoa humana a garantia de um trabalho digno, tendo por principal garantia os direitos aos trabalhadores, isso no momento em que o mundo saiu da manufatura e adentrou a maquinofatura.
Após os ideais Iluministas (liberdade, igualdade e fraternidade), com a potência do movimento sufragista, a dignidade adotou a faceta de garantia dos direitos das mulheres, como os políticos, assim como a sua emancipação do ideal de “do lar”, permitindo-a ocupar outros espaços que não os do lar.
Até que chegamos ao “conceito” de dignidade tida hoje, abrangendo direitos individuais e coletivos como alimentação, saúde, moradia, educação, acesso à justiça, vida, trabalho, previstos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Ou seja, tudo que envolve a preservação da vida humana é considerado como dignidade da pessoa humana.
Daí, podemos dizer que em um ambiente onde não se admitia mais tratamentos degradantes, vexatórios, humilhantes (direitos da terceira geração), não era possível manter a ideia de que crianças e adolescentes são seres sem opinião, vontades e direitos.
Outra questão a ser destacada quando se trata de história do direito das crianças é a questão do trabalho. Em tempos remotos as crianças eram submetidas a trabalhos degradantes desde muito jovens, para ajudar a família, por exemplo, no período da manufatura as crianças e adolescentes eram tidos como mais uma mão de obra.
Em artigo publicado no site Agência do Brasil5, foram disponibilizados dados de crianças realizando trabalho infantil em 2019, aproximadamente, 1,8 milhão de crianças entre 5 e 17 anos, isso equivaleria a 4,6 % das crianças brasileiras.
De acordo com a pesquisa os trabalhos realizados seriam: operação de tratores e máquinas agrícolas, o beneficiamento do fumo, do sisal e da cana-de-açúcar, a extração e corte de madeira, o trabalho em pedreiras, produção de carvão vegetal, a construção civil, a coleta, seleção e beneficiamento de lixo, o comércio ambulante, o trabalho doméstico e o transporte de cargas, entre outras.
Esses dados acabam por demonstrar alguns outros pontos de alerta como a evasão escolar, exposição às diversas violências, entre outros. Além de ser proibido legalmente o trabalho infantil.
Foi com o ECA que esse cenário se alterou. A lei dedica um capítulo inteiro (Capítulo V) para tratar da questão do trabalho juvenil.
A título de elucidação, o artigo 60 dispõe o que segue:
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Art. 60. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz.
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A lei se preocupa também em determinar o que são serviços que garantam a aprendizagem, dispondo em seu artigo 62:
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Art. 62. Considera-se aprendizagem formação técnico-profissional ministrada segundo as diretrizes e bases da legislação de educação em vigor.
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Portanto, quando aprendiz, deve ter respeitada sua educação, deve ir à escola, garantir boas notas, bem como deve ter garantido tempo adequado de descanso e lazer para o seu pleno desenvolvimento.
Um marco para a comunidade infanto-juvenil que vinha sendo privada de todos esses direitos, enfrentando jornadas exaustivas de trabalho, muitas vezes mal remunerado, quiçá houvesse remuneração.
Ademais, importante pontuar como e quando iniciaram as mudanças no cenário dos direitos das crianças e dos adolescentes.
O primeiro fato de extrema relevância que se pode dizer que foi as crianças e adolescentes passarem a ser vistas como seres com sentimentos, desejos, e que necessitavam de proteção jurisdicional, o que ocorreu em 1948 quando houve a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, propagando a defesa da felicidade e bem-estar, demonstrando a necessidade de colocar o público a frente do privado, além de trazer a tona a ideia de coletividade. Valorizou conceitos que hoje estão presentes na nossa Magna Carta, como a família, e cidadania.
Foi em 1923 que, a ONG Internacional Union for Child Welfare estabeleceu alguns princípios dos Direitos da Criança, pontuou os seguintes itens:
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“1. A criança tem o direito de se desenvolver de maneira normal, material e espiritualmente;
2. A criança que tem fome deve ser alimentada; a criança doente deve ser tratada; a criança retardada deve ser encorajada; o órfão e o abandonado devem ser abrigados e protegidos;
3. A criança deve ser preparada para ganhar sua vida e deve ser protegida contra todo tipo de exploração;
4. A criança deve ser educada dentro do sentimento de que suas melhores qualidades devem ser postas a serviço de seus irmãos.”
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Essas assertivas podem ser consideradas relevantíssimas para o direito brasileiro, e para o início de uma nova jornada para as crianças brasileiras, isso porque a partir do ano de 1726, no Brasil, acontecia a chamada “Roda dos Enjeitados”, que nada mais é do que uma roda criada na estrutura das igrejas católicas onde rodava-se um “tubo” de dentro para fora, não sendo possível identificar a pessoa que estava abandonando a criança. O que acontecia de forma reiterada e velada.
Nesse mesmo período prevalecia a Teoria do Discernimento, que imputava crimes às crianças de 9 a 14 anos que violavam a lei, ou eram órfãos, por exemplo. Prevaleciam as tendências segregacionistas, que mais a frente serão abordadas.
Interessante, também, debater sobre a nomenclatura utilizada para se referir às crianças, até 1990: menores.
Essa palavra é carregada dessa tendência, pois esse termo era utilizado para crianças negras e afrodescendentes, entretanto, para indivíduos na mesma idade de cor banca a terminologia utilizada era: criança/adolescente. Ou seja, havia um preconceito claro, mesmo com relação aos infantes.
Com o decorrer do tempo as discussões acerca da necessidade de leis, normas e determinações específicas se intensificou.
Após o Caso Bernardino em 1926, um garoto de 12 anos violentado na prisão após ser colocado em um local com mais de 20 homens, levantou-se discussões sobre a necessidade de colocar crianças que cumprem algum tipo de pena em locais destinados para elas.
Em 1927 criou-se o 1º Código de Menores que proibiu a Roda dos Enjeitados e estipulou a inimputabilidade para os menores de 18 por entender que um indivíduo que não tenha atingido tal idade não possui discernimento sobre seus atos e, portanto, não tem como responder criminalmente por eles.
Em 1932, durante a Era Vargas foi proposta uma Reforma no Código Penal buscando retroceder e estipular a idade para 14 anos. Foi no ano de 1941 que se criou o SAM- Serviço de Assistência a Menores que cuidava das crianças que eram abandonadas ou que cometiam algum tipo de infração, encaminhando-as para internatos ou reformatórios.
Em 1964, após o golpe militar, os militares extinguiram o SAM e criaram a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar), regidas pela PNBEM (Política Nacional do Bem-Estar do Menor) dando origem as FEBEM’s nos estados.
Em 1979 é promulgado o 2º Código de Menores, elaborado a partir da CPI do menor (1975) que traz em seu bojo o princípio da proteção integral, que mais pra frente foi incluído no ECA. A problemática desse dispositivo é que ele permitia que crianças e jovens em “situação irregular” fossem condenadas ao internato até atingir a maioridade civil.
Após a Ciranda da Constituinte ocorrida em 1985, votou-se a Emenda da Criança originando os artigos 227 e 228 da Constituição Federal de 1988. O artigo 227 tornou-se base para a criação do ECA. Assegurando com absoluta prioridade a criança e o adolescente alguns direitos fundamentais, como o da educação, vida, saúde, cultura, dignidade e respeito.
Assim, em 1990 nasce o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tornando as crianças e adolescentes sujeitos de direito e não mais objetos de direitos. Nesse mesmo ano, o Brasil tornou-se signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança.
Três anos depois, foi criada a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente, coordenada pelos deputados Rita Camata e Aloizio Mercadante.
Dez anos depois o “Disque 100- Disque Direitos Humanos” tornou-se responsabilidade do Governo Federal, anteriormente de propriedade de organizações não-governamentais.
Isso ocorreu, após alguns crimes bárbaros cometidos por adolescentes, como é o caso do Champinha em 2003 que permanece internado na Unidade Experimental de Saúde.
Na família os integrantes adultos depositam nas crianças e adolescentes todas as suas expectativas. Todos aqueles sonhos que não foram realizados por eles são transferidos para os filhos. Comumente a frase “a próxima geração resolve” é proferida, contudo essas mesmas pessoas parecem não se preocupar com o desenvolvimento desses indivíduos.
Exemplo claro é a Lei de Alienação Parental, vigente a partir de 2010 que na teoria visa proteger as crianças de eventuais abusos cometidos pelos pais na tentativa de desvalidar o outro genitor. Pode-se entender como uma lavagem cerebral exercida por um deles para que a criança ou adolescente deixe de gostar do outro genitor, por pura maldade.
Ocorre que essa lei foi criada por Richard Gardner um psicólogo e perito que fez fama defendendo homens acusados de violência sexual contra seus filhos em ações de família, usando como tática desvalidar a palavra das crianças e das mães, que majoritariamente realizavam a denúncia.
Hoje, essa lei, nas demandas familiares, tem causado um verdadeiro inferno na vida das genitoras que se amedrontam e acabam por não denunciar as práticas violentas dos ex-companheiros com receio de perder a guarda dos filhos e ter de deixá-los com os pais.
Essa atitude demonstra que na maioria dos casos em que ocorre violência, ou que os direitos das crianças são diretamente violados isso começa acontecendo dentro de casa, sendo prática dos próprios genitores, que deveriam protegê-los, mas presam pelos seus próprios desejos.
4. O que é Constelação Familiar?
A técnica da Constelação Familiar foi desenvolvida por Bert Hellinger um alemão que passou mais de dez anos como missionário católico em uma tribo Zulu na África do Sul.
Pós segunda guerra, tendo sido ele prisioneiro de guerra, viu os horrores do nazismo e do preconceito. A partir disso, ele descobriu três leis que atuam nas relações humanas, o que ele chama de ordens do amor, são elas: hierarquia, pertencimento e equilíbrio.
A partir disso, o processo de Constelação propõe trazer pessoas de fora do conflito identificado para representar os protagonistas e assim levar o constelado a compreender de que forma essas leis podem ser novamente respeitadas.
Segundo matéria publicada no site do Instituto Brasileiro de Neurodesenvolvimento6:
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“Esse método ajuda a revelar os problemas, comportamentos, sentimentos e dúvidas que podem estar ligados aos nossos familiares, por mais que não os tenhamos conhecidos, ou seja, sejam de gerações anteriores a nossa.
A Constelação Familiar busca nos mostrar como, inconscientemente, somos levados a repetir comportamentos e ações comuns de nossos grupos familiares. Para Hellinger, isso faz parte do convívio, mas também da necessidade de pertencer ao grupo e pelo amor aos nossos familiares.”
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De uma forma muito interessante a constelação familiar traz o conceito de sistema ao entender que todos fazem parte de um todo de forma interrelacionada, só há completude quando todos os membros puderem ser incluídos.
Nesse processo, um pouco místico, aborda-se a questão da ancestralidade, da contribuição de pessoas que já se foram para o conflito do constelado.
Quando partimos para o tema central do artigo vemos que a violência doméstica contra crianças e adolescentes ainda é um tabu na sociedade pois o núcleo familiar ainda é visto como o leito inviolável e que não deve ter interferência de ninguém a não ser os próprios familiares.
Para alguns grupos, inclusive religiosos, esses três pilares indicados por Bert são extremamente visíveis. A hierarquia deve ser respeitada de forma que muitos adolescentes e até mesmo adultos seguem sendo abusados por seus pais por achar que nada podem fazer.
Quanto ao pertencimento, é fato que o ser humano por natureza precisa se sentir amado, querido, protegido, ainda mais quando criança e adolescente, logo, apesar dos traumas é interessante perceber que o agredido por vezes não quer deixar o núcleo porque isso significaria deixar de “pertencer” àquela família.
Por fim, com relação ao equilíbrio, em um ambiente violento não há, por isso Daniel Batistela vai citar em seu livro artigo publicado que traz as consequências da violência sexual na infância ou na adolescência, sendo elas:
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“as consequências da violência sexual, na infância ou na adolescência podem apresentar-se por meio de sinais e sintomas decorrentes da lesão psicológica a que essas vítimas são submetidas, tais como tristeza constante, prostração aparentemente desmotivada, sonolência diurna, medo exagerado de adultos e em gral do mesmo sexo do abusador, história de fugas, comportamento sexual adiantado para idade, masturbação frequente e descontrolada, tiques ou manias, enurese ou encoprese e baixo amor-próprio. Sinais específicos, embora nem sempre presentes, os sintomas e sinais de lesão física são bastante conclusivos no diagnóstico de abuso sexual na infância e adolescência e devem sempre ser pesquisados.” 7
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Não só a violência sexual causa traumas, mas a violência indireta como a causada muitas vezes por conta da separação, exemplo as ameaças feitas pelos genitores à mãe através da lei de alienação parental.
A família é nosso primeiro núcleo e nossa primeira escola, é ela que nos traz os primeiros ensinamentos e também os primeiros traumas. Quando se trata de crianças e adolescentes, sabe se que tais traumas majoritariamente advém de acontecimentos em casa e, pensando em garantir que esses problemas fossem sanados nas raízes os Tribunais já indicam sessões de Constelação Familiar.
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5. A aplicação da Constelação Familiar em casos que envolvem crianças e adolescentes no Brasil
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MODIFICAÇÃO DE REGIME DE VISITAS - Ação proposta pela genitora pretendendo suspender as visitas até que o pai realize tratamento para controle de seu alegado temperamento agressivo-Visitas livres originariamente acordadas - Regulamentação destas - Necessidade - Melhor adequação à rotina das crianças - Desentendimentos entre o casal que influencia na vontade das crianças em realizar a visitação - Trigêmeos que defendem a genitora - Questões financeiras que devem ser resolvidas entre os litigantes - Genitor que eventualmente se mostra agressivo com os filhos - Fato que, conquanto deva ser evitado, no caso concreto, não impede a realização das visitas - Estudos técnicos que sugerem a manutenção do convívio das crianças em ambos os lares - Pais que devem resolver os conflitos entre eles, sem envolver os filhos - Situações que repercutem diretamente nos descendentes, causando-lhes intenso sofrimento - Filhos que agem para manter a lealdade perante a genitora - Demonstração de que o intenso conflito entre os genitores é o causador dos males sofridos pelas crianças - Visitas paternas mantidas - Desnecessidade de acompanhamento por terceiros, ao menos, nesse momento - Direito constitucional de visita daquele que não detém a guarda que deve ser respeitado, considerando a importância de seu exercício para formação das crianças - Realização de novo estudo social após seis meses do trânsito em julgado - Apelo desprovido, com observação.
(TJ-SP - AC: 10000581020208260608 SP 1000058-10.2020.8.26.0608, Relator: Galdino Toledo Júnior, Data de Julgamento: 08/11/2022, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 08/11/2022)
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A ementa colacionada refere-se a uma ação de Regulamentação de Visitas proposta pela mãe em face do pai sob a alegação de que ele tem temperamento agressivo, sendo em alguns momentos violento com os filhos e, portanto, torna-se uma ameaça à integridade das crianças.
Durante o processo os filhos ficaram a favor da mãe e, por essa razão, o Magistrado buscou entender se de fato havia uma ameaça a integridade dos infantes por um desvio de caráter ou se era algo pontual. Realizou-se audiência de conciliação e mediação e ainda, tentou-se a realização de uma Sessão de Constelação Familiar, como forma de entender a raiz do problema, contudo, a genitora apresentou resistência.
Apesar de neste caso não ter sido frutífera a sessão, o objetivo aqui não é mostrar sua eficácia e sim a sua aplicação.
Hoje diversos Tribunais adotam esse modelo alternativo de solução de conflitos para desobstruir o Judiciário e, como dito anteriormente, trazer as partes uma nova visão sobre o conflito.
Essa prática veio para o Brasil com o Juiz Sami Storch, do interior da Bahia. Após muitos estudos ele viu na Constelação Familiar uma forma de tratar os conflitos sob outras perspectivas, artigo publicado na Revista IBDFam8 traz sua afirmação:
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“Uma das bases do direito sistêmico é a consideração pela pessoa e pela bagagem que ela traz (família). Um indivíduo não pode ser tratado isolado, ele tem que ser encarado como um sistema, formado por ele próprio, pelo pai e pela mãe. Se queremos conhecer alguém ou a nós mesmos nós precisamos assimilar a origem desse ser. Todos gostam de ser reconhecidos. Muitas pessoas ingressam com processos na Justiça por conta de um motivo, mas quando é feita a análise mais profunda, é possível verificar que o problema maior é que elas foram desconsideradas pelo outro ou sofreram um gesto de não reconhecimento.” (Grifo nosso)
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E o artigo segue:
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“Para Storch, (2016) ”Constelação Familiar é um instrumento que pode melhorar ainda mais os resultados das sessões de conciliação, abrindo espaço para uma Justiça mais humana e eficiente na pacificação dos conflitos”, desta forma o Juiz defende que o uso da teoria das Constelações Familiares possibilita novas formas de compreender o contexto dos conflitos, ajudando a encontrar soluções que harmonizem as partes.””
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Interessante a perspectiva adotada pelo magistrado pois uma coisa é certa, muitas pessoas adentram no Judiciário sem entender ao certo o que buscam. Em alguns casos a pena prevista pela norma não satisfaz a parte autora, porque na realidade a sua necessidade era muito diversa daquela, então, a Constelação traz esse novo caminho. Em outro trecho da entrevista o Juiz conta sobre a primeira vez que utilizou esse método, em uma ação de disputa de guarda:
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“[...] A primeira vez que utilizei a prática verdadeiramente foi durante a disputa pela guarda de uma menina de quatro anos em 2010. Eu trabalhava em Palmeiras (a 450 km de Salvador).
Mãe e avó queriam a responsabilidade e trocavam acusações sérias. Percebi que o caso não poderia ser solucionado apenas com uma decisão sobre a guarda da menina, já que qualquer que fosse a decisão, permaneceria o drama e o sofrimento da menina, causado pela disputa entre mãe e avó.
No dia da audiência, levei comigo um kit de bonecos, que utilizo para a prática da terapia de constelações familiares no atendimento individual – essa terapia também pode ser feita em grupo, com outras pessoas representando membros da família do cliente. Quando eu chamei a menina para ser ouvida, coloquei os bonecos em cima da mesa e pedi para que ela posicionasse os brinquedos e montasse a história da família, mostrando que bonecos era cada membro da família. Perguntamos onde a menina se sentia melhor, o que acontecia quando se aproximava da mãe ou da avó e outros personagens da família. E ela pôde expressar que ela se sentia melhor com a mãe, ainda que apresentasse um carinho grande pela avó e que ficasse bem com as duas.
Com a prática, a mãe, a avó e os advogados viram a verdade dos fatos naquela dinâmica. Antes, um juiz tinha tirado a guarda da mãe, mas quando a menina se expressou pela constelação, isso foi bem-aceito por todos porque ficou muito claro e isso colaborou para a resolução do caso [...].”
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Constata-se que esse método sistêmico de resolução de conflito está cada vez mais popular no Judiciário, principalmente em casos envolvendo crianças e adolescentes nas varas de família e, até mesmo em casos de atos infracionais abarcados pelas varas da infância e juventude, com a promessa de desobstruir o Judiciário e mostrar novos horizontes.
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6. Conclusão
Cada vez mais o Judiciário recebe casos envolvendo crianças e adolescentes, seja na vara de família sob os temas de regulamentação de guarda, regime de convivência e pensão alimentícia ou em varas de infância e juventude quando do cometimento de algum ato infracional ou, ainda, em juizados especiais de violência doméstica e familiar através de meninas vítimas de violência das mais diversas formas.
Por conta deste abarrotamento e da interdisciplinaridade que ronda esses casos o próprio Judiciário se viu obrigado a recorrer a outras áreas a fim de garantir melhores soluções, daí nasce a aplicação do Direito Sistêmico.
O sistema do Direito necessitou se abrir para ouvir a Psicologia, Religião, Psiquiatria e entender seus códigos, para solucionar os dilemas da vida humana que respinga na vida social e na justiça.
Assim, uma das alternativas foi a Constelação Familiar, método não científico que ganhou popularidade com o Juiz Sami Storch da Bahia. Nessa prática há a junção entre corpo, alma e dilemas sociais/familiares. As partes, através de uma encenação, são capazes de enxergar outras faces da problemática e constatar se o processo judicial é a melhor forma de solucioná-lo. Em muitos casos se entende que não.
Portanto, conclui-se que a Teoria dos Sistemas elaborada há muitos anos por Niklas Luhmann e Bertalanffy serve de base para entender o Direito ainda hoje e o Direito Sistêmico demonstra isto. Para ressaltar a necessidade do diálogo entre os sistemas a fim de garantir uma maior eficácia na solução dos conflitos levados ao Judiciário, sempre respeitando seus códigos.
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7. Declaração de direitos
O(s)/A(s) autor(s)/autora(s) declara(m) ser detentores dos direitos autorais da presente obra, que o artigo não foi publicado anteriormente e que não está sendo considerado por outra(o) Revista/Journal. Declara(m) que as imagens e textos publicados são de responsabilidade do(s) autor(s), e não possuem direitos autorais reservados à terceiros. Textos e/ou imagens de terceiros são devidamente citados ou devidamente autorizados com concessão de direitos para publicação quando necessário. Declara(m) respeitar os direitos de terceiros e de Instituições públicas e privadas. Declara(m) não cometer plágio ou auto plágio e não ter considerado/gerado conteúdos falsos e que a obra é original e de responsabilidade dos autores.
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8. Bibliografia
ARIÈS, Philippe. História Social Da Criança E Da Família. 2º Ed. Rio De Aneiro: LTC, 2021.
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,Brasil
Philippe Ariès
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CAMPOS, Ana Cristina. IBGE: Brasil tem 4,6% das crianças e adolescentes em trabalho infantil. Publicado em 17/12/2020- 10:11. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos- humanos/noticia/2020-12/ibge-brasil-tem-46-das-criancas-e-adolescentes-em-trabalho-infantil. Último acesso: 20/10/2021.
Link de acesso à matéria: https://www.ibnd.com.br/blog/o-que-e-e-como-funciona-o-processo-de-constelacao-familiar.html. https://constelacaofamiliar.net.br/perguntas-frequentes/
Citação feita na obra de Daniel Batistela:A violência sexual contra crianças e adolescentes, baseado no caso “as meninas do Lar Ester”- http://www.portaldeginecologia.com.br Current view of sexual abuse in childhood and adolecence.
Link de acesso ao artigo: https://ibdfam.org.br/artigos/1683/As+constela%C3%A7%C3%B5es+familiares+como+m%C3%A9todo+alternativo+de+resolu%C3%A7%C3%A3o+de+conflitos+no+direito+de+fam%C3%ADlia- Último acesso em 20/11/2022 às 10:41