Artigo - PDF
Scientific Society Journal
ISSN: 2595-8402
Journal DOI: 10.61411/rsc31879
REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
.
ARTIGO ORIGINAL
Securitização da dívida ativa no Brasil: fundamentos, vantagens e críticas
Lucas Cunha1
Como Citar:
CUNHA; Lucas. Securitização da dívida ativa no Brasil: fundamentos, vantagens e críticas. Revista Sociedade Científica, vol.7, n.1, p.1158-1185, 2024.
https://doi.org/10.61411/rsc202433117
Área do conhecimento: Ciências Jurídicas
Palavras-chaves: securitização; dívida ativa; crédito tributário.
Publicado: 28 de fevereiro de 2024
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo fazer um estudo sobre a operação da securitização da dívida ativa de entes públicos no Brasil como forma de geração de liquidez para a Administração Pública. Inicia-se com a conceituação da securitização de recebíveis e como ela foi concebida na iniciativa privada, para então passar-se à sua aplicabilidade perante os créditos públicos inscritos em dívida ativa. Neste estudo, através da revisão bibliográfica sobre o tema, são observadas as principais vantagens e desvantagens deste tipo de operação, bem como as limitações e regulamentações que os entes públicos nacionais devem observar caso pretendam a ela recorrer. Analisam-se, ainda, nuances acerca da operação estruturada pelo Município de Belo Horizonte para a securitização de seus créditos inscritos em dívida ativa. Por fim, conclui-se que a securitização da dívida ativa pode ser uma ferramenta para a geração de liquidez relativamente aos créditos de difícil recuperação pela Administração Pública, não devendo tal operação ser utilizada pelos gestores públicos indistintamente quanto aos créditos inscritos em dívida ativa.
..
Securitization of public sector tax credits in Brazil: fundamentals, advantages and critiques
ABSTRACT
The present work aims to carry out a study on the operation of securitization of delinquent debt of public entities in Brazil as a way of generating liquidity for the Public Administration. It begins with the conceptualization of receivables securitization and how it was conceived in the private sector, and then moves on to its applicability to public credits registered as delinquent debt. In this study, through bibliographic review, the main advantages and disadvantages of this type of operation are observed, as well as the limitations and regulations that national public entities must observe if they intend to resort to it. Nuances regarding the operation structured by the Municipality of Belo Horizonte for the securitization of its credits registered as delinquent debt are also analyzed. Finally, it is concluded that the securitization of active debt can be a tool for generating liquidity to the Public Administration in relation to delinquent debts that are difficult to collect, but should not be used by public managers without considering the many different potentials of recovering of tax credits.
.
1. Introdução
Os entes públicos necessitam da arrecadação de tributos para a obtenção dos recursos financeiros necessários ao custeio dos gastos públicos decorrentes da prestação de serviços à população e da própria existência do aparato estatal. Ocorre que o mero lançamento do tributo não é suficiente para fazer ingressar nos cofres públicos aquele montante financeiro. Entre a ocorrência do fato gerador, o lançamento do tributo e o ingresso dos valores nas contas públicas, muitas vezes, há um longo, demorado e burocrático caminho a ser percorrido.
Com o inadimplemento tempestivo, por parte do contribuinte, do débito contra si lançado, a Administração Pública deve proceder à inscrição do valor em dívida ativa, nos termos da Lei 6.830/80, em ato que atesta a liquidez, a certeza e a exigibilidade do crédito em face do contribuinte. Com a inscrição em dívida ativa, surge a Certidão de Dívida Ativa (CDA), que possui força de título executivo extrajudicial. A partir da inscrição em dívida ativa, a Fazenda Pública procede à cobrança judicial ou extrajudicial do montante, seja por meio da realização do protesto, do ajuizamento de execução fiscal, da negativação perante entes de proteção ao crédito, entre outras medidas.
Mesmo em face das múltiplas formas de cobrança que a Fazenda Pública pode engendrar em face do contribuinte, os entes públicos nacionais, nas três esferas federadas, ainda sofrem com a baixa eficiência da cobrança da dívida ativa. Tome-se, como referência, o procedimento de execução fiscal, forma judicial de cobrança do crédito público em face do contribuinte, no bojo do qual podem ser adotadas as medidas mais gravosas de constrição patrimonial em face do sujeito passivo (como penhora de ativos financeiros, penhora de imóvel com posterior hasta pública, entre outros).
Segundo o relatório “Justiça em Números - 2022”, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, os processos de execução fiscal representam, aproximadamente, 35% do total de processos judiciais pendentes no país, com uma taxa de congestionamento no patamar de 90%. O tempo médio de tramitação de uma execução fiscal registrado, em 2021, foi de 6 anos e 11 meses. Em 2018, esse número foi de 9 anos e um mês.
Esses números demonstram a dificuldade que os entes públicos possuem na cobrança de seus créditos tributários e não tributários.
Em razão disso, passaram a ser avaliadas a importação, para a administração pública, de soluções já adotadas na iniciativa privada de transformação de ativos de baixa liquidez em caixa. Uma destas soluções é a securitização da dívida ativa, que será o objeto do presente estudo. Neste trabalho, buscaremos analisar, através da revisão bibliográfica, a compatibilidade da securitização da dívida ativa com a legislação tributária brasileira, mormente sob a ótica do conceito de competência tributária, de capacidade tributária ativa, do princípio da eficiência, do princípio da transparência, bem como as principais vantagens e desvantagens identificadas sobre o instituto. Será analisada, ainda, a operação de securitização da dívida ativa efetuada pelo Município de Belo Horizonte e suas consequências para este ente público.
.
2. Securitização de dívidas
Antes de adentrarmos especificamente na análise da compatibilidade da securitização da dívida ativa a ser realizada pelos entes públicos com a legislação pátria, faz-se necessário um estudo prévio sobre o próprio conceito geral de securitização de dívidas e como ela se dá no mercado privado.
As operações de securitização de dívida envolvem três players principais, quais sejam: a) a entidade cedente, que possui um crédito a receber; b) a entidade securitizadora, normalmente constituída sob a forma de um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FDIC) ou de uma Sociedade de Propósito Específico (SPE); c) os investidores.
A empresa/entidade cedente passa a entidade securitizadora um montante de recebíveis. O veículo securitizador, por sua vez, emitirá títulos no mercado de capitais, que serão comprados pelos investidores. Parte do valor arrecadado com a venda a mercado dos títulos será repassada para a entidade cedente, a título de remuneração pela cessão, de forma que os recebíveis já se transformam em caixa. À medida que os recebíveis são pagos pelos devedores originais, os investidores são remunerados.
Bezerra e Silva (BEZERRA; SILVA, 2008, p. 88), em estudo sobre a securitização de recebíveis no setor de saneamento, descrevem de forma sucinta e precisa as etapas que compõem uma securitização de recebíveis. Segundo os autores:
As etapas que compõem uma securitização de recebíveis são as seguintes:
1. A empresa originadora agrupa diversos ativos que representam créditos contra terceiros com a intenção de recebê-los antecipadamente.
2. A empresa originadora realiza a cessão dos créditos à empresa securitizadora, constituída exclusivamente para receber os créditos e lançar títulos lastreados por estes créditos (securities).
3. A empresa securitizadora emite títulos que são adquiridos por investidores no mercado.
4. Os recursos recebidos com o lançamento dos títulos são repassados para originadora como forma de pagamento da cessão dos recebíveis.
5. A securitizadora faz o pagamento dos investidores mediante o recebimento dos créditos cedidos pela originadora.
Para a entidade originadora, credora inicial, a operação de securitização possui diversas vantagens, que foram sistematicamente organizadas por Cristina Monteiro de Queiroz (QUEIROZ, 2020, p. 11), entre as quais podemos destacar: a) diversificação das fontes de financiamento; b) redução do custo de capital; c) menor necessidade de comprometimento de ativos em garantias; d) redução do endividamento; e) transferência dos riscos relacionados aos recebíveis; f) ganhos de liquidez.
A autora supracitada faz relevantes considerações sobre três dessas vantagens: a redução do custo do capital, a transferência dos riscos e a redução do endividamento.
Sobre o menor custo da operação, temos que ele advém de três origens. Inicialmente, temos que, na operação, não há um intermediário que faz a mediação entre os que querem crédito e a que o têm, como são as instituições financeiras. Na securitização, como mencionado, não haverá uma instituição financeira tomando e repassando crédito, mas apenas um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios ou uma Sociedade de Propósito Específico que operacionalizará a securitização.
Ainda quanto à redução de custos, tem-se que ela decorre justamente da existência do veículo securitizador. Isso porque tal instrumento (FDIC ou SPE), ao receber a cessão dos créditos, gera uma segregação destes do patrimônio total da entidade originadora. Desta forma, o risco dos investidores não mais se relaciona com a saúde financeira da empresa originadora, relacionando-se diretamente com o risco dos devedores – que pagarão ou não os créditos que foram securitizados (QUEIROZ, 2020, p. 12). Com a diminuição do risco, há uma tendência à diminuição dos custos.
Ademais, muitas vezes as operações de crédito tradicionais em favor das empresas são caras pela própria situação da tomadora, como alto endividamento, mau rating, entre outras circunstâncias que podem elevar a taxa de juros de uma operação de crédito. No caso da securitização, tais elementos não são levados em consideração para a precificação da operação, sendo o deságio (custo da operação) variável conforme os riscos dos créditos cedidos. Ainda que a empresa originadora seja demasiadamente endividada, caso os créditos cedidos para operação de securitização sejam bem avaliados, o deságio ofertado pelo mercado de capitais tende a ser menor.
A segunda vantagem a ser analisada é a transferência de riscos. Como se demonstrou, numa operação de securitização de recebíveis bem estruturada, a empresa originadora cederá a um FDIC ou a uma SPE os direitos sobre determinados créditos, os quais serão vendidos a mercado. O valor arrecadado com a venda a mercado dos títulos será repassado à entidade originadora. Quando os créditos forem pagos pelos seus devedores, os investidores serão remunerados. Os riscos da inadimplência, então, passam a ser dos investidores que adquiriram os títulos. É verdade que o valor recebido pela empresa originadora em razão da cessão dos créditos será menor do que o valor originalmente devido, por conta do deságio, mas inegavelmente haverá um ganho de liquidez. Em operações como esta, resta claro que o risco de inadimplência é transferido da empresa originadora para os investidores, pelo que foi elencada tal vantagem.
Em operações como a descrita acima, ocorre o que se denomina de true sale, ou seja, os créditos são efetivamente cedidos ao veículo securitizador, não possuindo a entidade originadora qualquer relação com aqueles recebíveis. Para Furiati (FURIATI, 2009, p. 136), o primeiro princípio básico a ser observado para a existência de um true sale é a necessidade de a operação efetivada mediante cessão de créditos definitiva, e não por meio de garantia real de tais créditos. Ainda segundo o autor, a transferência da propriedade deve ser plena, sendo a cessão irrevogável, irretratável e incondicional.
Entretanto, há operações em que: a) o controle dos recebíveis cedidos permanece com a companhia originadora; b) a empresa originadora retém direito, risco ou responsabilidade sobre os recebíveis cedidos; c) a companhia originadora fornece garantia aos investidores.
Nestes casos, é fácil perceber que não há, efetivamente, uma transferência de risco, que permanece alocado para a empresa originadora. Assim, sendo estruturada a operação de modo que a empresa originadora permaneça vinculada aos créditos cedidos, ainda que sob a forma de prestação de garantia aos investidores, não se verificará a vantagem aqui trazida sobre a redução de riscos, uma vez que a inadimplência do devedor permanecerá afetando a empresa originadora.
A manutenção, ou não, da vinculação entre a empresa originadora e o crédito cedido também repercutirá sobre a terceira vantagem a ser aqui analisada: o endividamento da empresa. Segundo Cristina Monteiro de Queiroz (QUEIROZ, 2020, p. 14), a questão da efetiva transferência de créditos entre a empresa originadora e o veículo securitizador é central para a compreensão das operações de securitização, dado que a sua ausência implicaria no enquadramento da operação em um conceito diverso, qual seja, o de operação de crédito.
Ou seja, para fins de apuração dos níveis de endividamento empresarial, é relevante a averiguação da manutenção do vínculo da empresa originadora com o crédito cedido. Acaso tenha ocorrido uma true sale, sem manutenção de qualquer responsabilidade da originadora pela inadimplência dos créditos e demais riscos a eles referentes, estaremos diante de uma venda de ativos, sem qualquer impacto no passivo da empresa. Por outro lado, mantido o risco de inadimplência com a empresa originadora, a operação deverá ser contabilizada como operação de crédito. No caso de operações de securitização de recebíveis titularizados por entes públicos, tal circunstância é fundamental, conforme veremos adiante.
Nesta seção, verificou-se a forma como a operação de securitização de recebíveis se dá no mercado privado e quais suas vantagens para a empresa cedente dos créditos. Passaremos, então, à análise da securitização de recebíveis no contexto dos entes públicos, foco principal deste trabalho.
.
3. A securitização de recebíveis e os entes públicos brasileiros
Bleise Rafael da Cruz e Jorge de Souza Bispo (CRUZ; BISPO, 2008, p. 5), em trecho citado pelo Tribunal de Contas da União no relatório do Acórdão nº 772/2016, trouxeram a sequência da operação de securitização de recebíveis, afirmando que não há diferenças significativas entre o que ocorre na seara privada e no setor público e ratificando o fluxo anteriormente apresentado. Para uma melhor compreensão, podem-se fazer os seguintes ajustes, a fim de deixar claro o fluxo da securitização de recebíveis no setor público:
Entes públicos necessitam de recursos para custeio e investimentos;
Entes públicos possuem créditos, tributários e não tributários, em face dos contribuintes;
Contribuintes não pagam tempestivamente e os créditos inadimplidos são inscritos em dívida ativa;
Ente público cede seus direitos creditórios ao FIDC;
FIDC emite cotas;
Investidores adquirem cotas;
FIDC paga a cessão ao ente público, que neste momento vê seu caixa ampliado;
No vencimento dos recebíveis, os contribuintes pagam ao FIDC;
FIDC paga amortização e/ou resgate de cotas seniores e
FIDC paga amortização e/ou resgate de cotas subordinadas.
Ocorre que há particularidades sobre a securitização de créditos públicos, mormente tributários, que devem ser estudadas especificamente, o que faremos nos tópicos seguintes.
.
3.1 A securitização de recebíveis tributários e a capacidade tributária ativa
Como visto anteriormente, uma das etapas da securitização de recebíveis é a cessão dos direitos creditórios a um FIDC ou a uma SPE, que emite as cotas a serem vendidas aos investidores no mercado de capitais. Analisar-se-á, neste tópico, justamente a legalidade desta cessão frente à disposição da legislação tributária nacional sobre o tema.
Iniciemos diferenciando os conceitos de competência tributária e capacidade tributária ativa.
A competência tributária é regulada pelo art. 7º, do CTN, e se relaciona com a criação e regulamentação dos tributos atribuídos constitucionalmente a cada um dos entes federados. Nas lições de Luciano Amaro (AMARO, 2014, p.115), a União, os Estados e os Municípios têm, dentro de certos limites, o poder de criar determinados tributos e definir seu alcance, obedecidos os critérios de partilha de competência estabelecidos pela Constituição. A competência engloba, portanto, um amplo poder político no que respeita a decisões sobre a própria criação do tributo e sobre a amplitude da incidência, respeitados certos parâmetros, constitucionais ou legais, de balizamento.
A competência tributária, nos termos expressos do art. 7º, do CTN, é indelegável. Quanto a isso, não há dúvidas. Apenas o poder público, representado por um dos entes federados, pode instituir e regulamentar tributos, impondo obrigações sobre os particulares unilateralmente. O estudo da competência tributária, com efeito, não é relevante para o presente artigo, uma vez que não estão em xeque as competências exclusivas dos entes públicos de criar tributos, definir alíquotas e bases de cálculo, conceder isenções, entre outras circunstâncias advindas da competência tributária.
A capacidade tributária ativa, por sua vez, diz respeito à aptidão para ser titular do polo ativo da obrigação tributária, figurando como credor (AMARO, 2014, p. 319). A questão relevante para o presente estudo surge, inicialmente, da análise do §3º do referenciado art. 7º, do CTN, dispositivo segundo o qual “não constitui delegação de competência o cometimento, a pessoas de direito privado, do encargo ou da função de arrecadar tributos”. Pelo dispositivo, não haveria óbice a delegar a um ente de direito privado a execução da arrecadação tributária. Segundo Roque Antonio Carrazza (CARRAZZA, 1977, p. 33), a capacidade tributária é delegável, podendo também arrecadar tributos, observados os requisitos legais, pessoas públicas ou privadas, carentes de competência tributária. É o caso dos entes que arrecadam, para si, ‘tributos parafiscais’, dos auxiliares dos sujeitos ativos e dos sub-rogados legais, em matéria tributária.
Carrazza traz três situações distintas. No caso dos tributos parafiscais, temos que as entidades arrecadadoras, apesar de serem entes de direito privado, exercem função pública sem fins lucrativos, como é o caso das entidades do terceiro setor SESI, SENAI, SESC, entre outros. No caso dos auxiliares do sujeito ativo, temos que seria incumbida a um ente privado a função de arrecadação, em benefício do sujeito ativo principal. Neste caso, seria delegada apenas a execução de algumas atividades com vistas à arrecadação dos valores, mas o proveito ainda reverteria em favor do ente público, credor original. Por fim, na terceira situação descrita, haveria uma sub-rogação, ou seja, o tributo com a Fazenda Pública já estaria quitado, havendo apenas uma disputa entre as partes regida pelo direito civil (como, por exemplo, no caso em que o proprietário de um imóvel alugado paga o IPTU que, contratualmente, havia sido atribuído ao locatário).
O art. 119, do CTN, por sua vez, dispõe que “sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público, titular da competência para exigir o seu cumprimento”. Pelo dispositivo, apenas poderia ser responsável pela cobrança de tributo pessoa jurídica de direito público. Com base nisso, há corrente doutrinária que entende pela impossibilidade de delegação, a um particular, das atividades relacionadas à cobrança de um tributo.
O choque entre as posições é evidente e a predominância de uma ou outra posição pode ter impacto significativo sobre a compreensão acerca da licitude da securitização dos créditos tributários. Como dito, uma das etapas da securitização é a cessão dos créditos tributários pelo ente público ao veículo securitizador, alocando o risco do inadimplemento dos créditos tributários aos investidores que adquirem as cotas.
Para aqueles que defendem a impossibilidade de qualquer tipo de cessão de créditos tributários a entes particulares, temos que: a) seria ilícita a realização da securitização de créditos tributários ou b) seria lícita a realização de uma operação adaptada de securitização, sem atribuição a ente privado da possibilidade de gestão dos créditos tributários, cenário em que a cobrança do crédito permaneceria nas mãos da Fazenda Pública.
Por outro lado, em um cenário no qual se admite a cessão, o recebível ficaria totalmente desvinculado do credor originário (ente público), cabendo a sua respectiva gestão ao cessionário dos valores. Neste caso, temos de admitir uma dessas situações: a) o próprio crédito tributário, em si considerado, é cedido; b) o crédito tributário se extingue, havendo em favor do cessionário a sub-rogação na posição de credor de uma dívida civil em face dos devedores; c) são cedidos apenas o fluxo de recebimento dos créditos e os direitos de cobrança de tais valores, de modo que o crédito em si considerado permanece sob a titularidade da Fazenda Pública.
O cenário supracitado em que o crédito tributário, em si considerado, é cedido, implica aceitarmos que o particular cessionário gozaria de alguns dos privilégios da Fazenda Pública na cobrança de seus créditos, como ajuizamento de execução fiscal (lei 6.830/80), preferência legal (art. 186, caput e parágrafo único, do CTN), presunção de fraude (art. 185, do CTN), indisponibilidade de bens e direitos (art. 185-A, do CTN), medida cautelar fiscal (lei 8.397/92), entre outros.
Por outro lado, o cenário em que o crédito tributário se extingue pela cessão do direito creditório ao veículo securitizador, que pagará à Fazenda Pública por tais créditos o valor arrecadado com a venda das cotas de investimento, implica a aceitação de que o crédito tributário estaria extinto por hipótese não prevista no art. 156, do CTN, que arrola as causas de extinção do crédito tributário.
Parece-nos mais condizente com o ordenamento jurídico vigente a ocorrência da cessão apenas do fluxo de recebimento e dos direitos de cobrança de tais créditos. Desta forma, transferem-se ao cessionário os riscos da inadimplência dos créditos e os ônus da cobrança, a qual deverá ocorrer através dos meios disponibilizados aos particulares em geral, não sendo possível ao cessionário tentar gozar dos privilégios destinados exclusivamente à Fazenda Pública (propositura de execução fiscal, preferências legais do crédito tributário, presunção de fraude, etc.).
A questão ainda não está pacificada nos órgãos de controle e na jurisprudência pátria. Entretanto, cabe colacionar a manifestação exarada pelo setor de auditoria da Secretaria de Macroavaliação Governamental (SEMAG), nos autos do Processo nº 016.585/2009-0, no qual se analisa o enquadramento da operação realizada entre o Município de Belo Horizonte/MG e o “Tributos BH Fundo de Investimento em Direitos Creditórios Não Padronizados”:
.
“a) a natureza da operação não permitiria que o valor patrimonial da cessão fosse deduzido do total da dívida ativa. Até porque a titularidade da dívida ativa é indelegável. Ou seja, na referida negociação, manteve-se no patrimônio da municipalidade o ativo “dívida ativa” que daria origem ao referido fluxo de caixa futuro. Nesse sentido, não há que se falar em dedução do fluxo de caixa do ativo “dívida tributária”. É a própria impossibilidade de transferência de titularidade da dívida ativa que determina a contabilização do fato, e não o inverso;
b) o Código Civil Brasileiro prevê, como exemplificou a PGFN, a concessão de superfície, cuja cessão está prevista nos artigos 1.369 a 1.377 da Lei 10.406/2002. O Código Tributário Nacional, porém, não apresenta nenhuma previsão de cessão da dívida ativa;
(...)
d) nesse sentido, em momento algum os direitos creditórios “cedidos” ao fundo saem do controle do município, que cede apenas o direito autônomo ao recebimento do crédito. (...)”
.
Da análise do excerto acima, pode-se verificar que, a princípio, a auditoria da SEMAG entende que não seria possível a cessão dos créditos tributários, mas do direito autônomo ao seu recebimento, embora valha a pena reforçar que o comentário acima foi feito tendo como alvo de análise a operação específica feita pelo Município de Belo Horizonte/MG.
Em conclusão, temos que ainda não há posição administrativa ou jurisprudencial consolidada a respeito da constitucionalidade e da legalidade da cessão dos direitos creditórios efetuadas pelos entes públicos como etapa da operação de securitização dos créditos. Entretanto, opinamos pela possibilidade da cessão do fluxo de recebimento dos créditos e dos respectivos direitos de cobrança. Esta parece ter sido, inclusive, a opção adotada pelo Senado Federal quando da edição da Resolução nº 17/2015, que alterou a Resolução nº 41/2003, como se verá a seguir.
.
3.2 A inexistência de true sale e a caracterização como operação de crédito. Da resolução n° 17/2015 do senado federal
Como mencionado anteriormente, uma das principais características das operações típicas de securitização de recebíveis é a transferência dos riscos do inadimplemento do crédito, do cedente para o cessionário, o que se denomina de true sale. Ainda conforme exposto, em operações típicas de securitização, a cessão de créditos se equipara a uma venda de ativos, não impactando o passivo da cedente. Entretanto, quando se altera a estrutura típica da operação, com oferecimento de garantias ao cessionário acerca do adimplemento dos créditos, ou mantida qualquer forma de responsabilidade do cedente pela liquidação do débito, resta maculada a true sale, de modo que a operação passa a se aproximar de uma operação de crédito. Nesta linha, temos o Parecer nº 1.579/2014, exarado pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – PGFN, nos seguintes termos:
8.1. Na cessão do fluxo financeiro decorrente de créditos inscritos em dívida ativa, não é transferida a titularidade do crédito pelo cedente ao cessionário (que permanece, pois, no ativo do primeiro), mas tão somente o fluxo financeiro decorrente dos pagamentos efetuados pelos devedores ao credor. Desde que inexistente, no caso concreto, obrigação por parte do cedente de garantir eventual crédito inadimplido pelo devedor - seja em dinheiro, seja substituindo-o por outro crédito -, não há que se falar em operação de crédito, já que inexistiria obrigação de pagar por parte do cedente, mas, apenas, obrigação de fazer, no caso, repassar ao cessionário o numerário entregue ao credor pelo devedor inscrito em dívida ativa. Tal entendimento permanece verdadeiro, mesmo no caso de o cedente se obrigar a cobrar judicialmente o crédito não adimplido, tendo em vista que tal obrigação não se caracteriza enquanto obrigação de pagar, mas de fazer.
8.2. A condição para qualquer crédito ser inscrito em dívida ativa é seu inadimplemento, ou seja, trata-se de crédito que deveria ter sido recebido e não o foi, portanto, que deveria ter impactado a ‘receita passada’ do ente e que, por isso mesmo, é devido no presente, motivo pelo qual não deveria ser incluído no conceito de ‘receita futura’, no mesmo sentido em que, por exemplo, são as receitas de fatos geradores de tributos ainda não ocorridos.
8.3. A antecipação de recursos não é condição suficiente para a conceituação da medida como operação de crédito, pois, se isso fosse verdadeiro, toda e qualquer alienação de ativo deveria ser considerada operação de crédito, haja vista que alienar um ativo significa transformar em ‘receita presente’ uma ‘receita futura’, real ou potencial.
.
Não se pode definir a antecipação de recursos futuros como operação de crédito no sentido da LRF. Tal entendimento atende ao sentido finalístico da LRF, o qual não é interferir nas escolhas do ente público no tocante à distribuição intergeracional de receitas, mas o de garantir a administração sustentável da dívida pública. Em outras palavras, a cessão definitiva de direitos creditórios não constitui operação de crédito para os fins da LRF por não acarretar endividamento novo ou mais gravoso para o ente que cede tais direitos, ou seja, ‘dependendo do uso mais ou menos sábio que se dê aos recursos antecipados com a venda de ativos, pode-se até admitir que o ente, em decorrência da venda do ativo, ficou mais pobre no futuro, mas não que ficou mais endividado.
No caso em que um ente público pretenda realizar uma operação de securitização de seus créditos inscritos em dívida ativa, a existência de true sale é relevante por duas razões, quais sejam: a) o enquadramento nos termos da Resolução nº 43/2001, do Senado Federal, com a redação dala pela Resolução nº 17/2015 e b) a sujeição à verificação de observância dos limites e condições relativos à realização de operações de crédito, por parte do Ministério da Fazenda, bem como impacto no endividamento.
Quanto à Resolução nº 43/2001, do Senado Federal, tem-se que a Resolução nº 17/2015 estabeleceu que os entes federados não poderão ceder o fluxo de recebimentos relativos aos créditos inscritos em dívida ativa de forma não definitiva ou com cláusula revogatória, bem como que tal cessão não pode implicar a assunção, perante o cessionário, de responsabilidade pelo pagamento do crédito ou de qualquer outro compromisso financeiro. Observe-se a redação do dispositivo:
.
Art. 5º É vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
VII - em relação aos créditos inscritos em dívida ativa: (Redação dada pela Resolução n.º 17, de 2015)
a) ceder o fluxo de recebimentos relativos aos direitos creditórios da dívida ativa de forma não definitiva ou com cláusula revogatória; (Redação dada pela Resolução n.º 17, de 2015)
b) ceder o fluxo de recebimentos relativos aos direitos creditórios da dívida ativa com assunção, pelo Estado, pelo Distrito Federal ou pelo Município, perante o cessionário, de responsabilidade pelo efetivo pagamento a cargo do contribuinte ou de qualquer outra espécie de compromisso financeiro que possa, nos termos da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, caracterizar operação de crédito. (Redação dada pela Resolução n.º 17, de 2015)
.
Interessante perceber que o Senado Federal construiu a regulamentação da securitização de dívida ativa ao redor do pilar do true sale. Nas palavras de Cristina Monteiro de Queiroz (QUEIROZ, 2020, p. 40),
.
é interessante notar que o fato de o legislador insistir na cessão definitiva dos créditos e na inexistência de responsabilidade por parte do Estado ou do Município na solvibilidade do crédito cedido se aproxima bastante da principal característica de uma operação típica de securitização no mercado privado: o true sale. Como já apontado anteriormente, o true sale consiste na “transferência efetiva e irrevogável dos créditos do cedente para o cessionário” (FURIATI, 2009, p. 7). Contudo, tal regra esbarra na interpretação majoritária de que os créditos tributários não podem ser cedidos. Como ceder um crédito de forma definitiva se grande parte da doutrina afirma que é da natureza de tais créditos não poderem ser cedidos?
.
Note-se que a citação anterior encerra com um questionamento acerca da possibilidade de cessão de créditos tributários quando a doutrina majoritária defenderia a impossibilidade de tal cessão. Quanto ao ponto, é relevante perceber que o Senado Federal, na Resolução supra, não menciona a cessão dos créditos inscritos em dívida ativa, mas apenas do fluxo de recebimento relativo a tais direitos creditórios, o que significa que o crédito, em si, ainda seria titularizado pelo ente público. A regulamentação exarada pelo Senado Federal, portanto, está alinhada à possibilidade encampada no tópico anterior, no sentido de ser possível a cessão do fluxo de recebimento dos créditos e dos direitos de cobrança sobre eles.
Com base em tal resolução, atualmente, os entes públicos que desejarem realizar operações de securitização de seus créditos inscritos em dívida ativa, deverão fazê-lo de tal modo que a cessão seja definitiva, irrevogável, sem qualquer assunção de responsabilidade estatal pelo inadimplemento eventual dos recebíveis.
Importante observar que a Resolução nada menciona acerca da cessão dos direitos de cobrança dos créditos, regulamentando apenas a cessão do fluxo de recebimentos. Apesar da omissão do ato normativo, entendemos que é lícito que a Fazenda Pública ceda a particular os direitos de cobrança dos créditos, sendo os riscos da cobrança incidentes exclusivamente sobre o cessionário, a quem seria dado utilizar os instrumentos conferidos aos particulares. Não seria possível ao cessionário, por exemplo, ajuizar execução fiscal, medida cautelar fiscal, entre outros meios de cobrança destinados exclusivamente à Fazenda Pública. Não se afigura razoável imaginar que, mesmo com a cessão do fluxo de recebimentos, seria tarefa do ente público a cobrança de tais créditos, sob pena de a Administração Pública passar a atuar, em tais cobranças, no interesse de ente privado, o que contraria o princípio constitucional da impessoalidade (Art. 37, caput, da Constituição Federal).
Nos termos da Resolução citada, a inexistência da true sale, com manutenção de responsabilidade do ente público originalmente credor pelo adimplemento do crédito, impede a realização da cessão do fluxo de recebimento dos créditos inscritos em dívida ativa. Ainda que assim não fosse, a manutenção dos riscos da inadimplência com a Fazenda Pública implicaria a sujeição da operação à verificação, pelo Ministério da Fazenda, do cumprimento dos limites e condições relativos à realização de operações de crédito de cada ente da Federação, nos termos do art. 32 da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal). Havendo oferecimento de garantia por parte do poder público, ou de qualquer outra forma de compromisso financeiro que garanta o pagamento dos créditos cedidos, o negócio receberia tratamento jurídico de operação de crédito, inclusive com impacto no endividamento do ente público.
Por outro lado, não sendo mantido qualquer vínculo de responsabilidade da Fazenda Pública para com a inadimplência do crédito cujo fluxo de recebimento foi cedido, não há falar em operação de crédito. Neste sentido, veja-se trecho do Parecer nº 1.579/2014, exarado pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – PGFN:
a) As operações de cessão definitiva de direitos creditórios ou do fluxo financeiro decorrente de tais direitos, quando não implicar, direta ou indiretamente, qualquer compromisso de garantir o recebimento do valor do crédito cedido, em caso de inadimplemento por parte do devedor, não constitui operação de crédito, no sentido da LRF;
b) A submissão de qualquer operação de ente subnacional ao processo de verificação, pelo Ministério da Fazenda, de limites e condições, previsto no art. 32 da LRF e em dispositivos correlatos da RSF nº 43, de 2001, depende da caracterização da referida operação como operação de crédito, motivo pelo qual as operações de cessão definitiva de direitos creditórios ou do fluxo financeiro decorrente de tais direitos, desde que nas condições descritas no item ‘a’ acima, não se submetem ao referido processo de verificação;
c) A posição da PGFN sobre as operações de cessão definitiva de direitos creditórios ou do fluxo financeiro decorrente de tais direitos tem sido a mesma, em essência, no sentido definido nos itens ‘a’ e ‘b’ acima, a qual, salvo modificação de entendimento ou enquanto não houver posicionamento vinculante distinto por parte da cúpula da Advocacia-Geral da União ou do Tribunal de Contas da União, deverá servir de orientação básica para a análise por parte da STN das referidas operações.
.
3.3 Críticas à securitização da dívida ativa
Já foram mencionados neste trabalho diversos aspectos positivos da operação de securitização de recebíveis aplicada à divida ativa, tais quais a redução do custo de capital, a diversificação das fontes de custeio, a transferência dos riscos do inadimplemento dos recebíveis e, principalmente, a utilização de ativos de baixa liquidez para geração de caixa, com ganho de liquidez em curto prazo.
Entretanto, cabe também mencionar críticas a respeito da utilização de tal ferramenta pelos entes públicos.
Uma primeira crítica que se pode formular é o potencial desestimulo ao investimento em ferramentas de aprimoramento da cobrança da dívida ativa. Com efeito, os gestores podem enxergar a securitização da dívida ativa como uma forma de geração célere de caixa, a ponto de preferi-la ao investimento na arrecadação tributária (investimento em equipe de Auditores Fiscais e Procuradores, sistemas de inteligência, parceria com órgãos públicos e privados com vistas à higienização dos cadastros, entre outras medidas).
Importante perceber, entretanto, que o investimento em meios de arrecadação e cobrança garante ao ente público a sustentabilidade de sua arrecadação tributária, que se dá de forma integral. A securitização, por sua vez, não é capaz de prover sustentabilidade à arrecadação tributária, além de gerar um deságio no valor a ser recebido pelo ente federado.
Maria Lucia Fattorelli (FATTORELLI, 2018, p. 76) faz duras críticas à securitização da dívida ativa por entes públicos. Segundo a autora, com a securitização, os entes públicos perdem o controle sobre a arrecadação de créditos tributários, devido à cessão do fluxo de arrecadação. Para a autora, sem esse esquema, a totalidade dos recursos arrecadados chegariam integralmente aos cofres públicos. Com o esquema, somente uma parte dos recursos arrecadados alcança os cofres públicos, pois a outra parte é desviada para investidores privilegiados e sequer irá compor o orçamento público. Com isso, toda a legislação de finanças do país, que é estruturada no princípio do orçamento único, está sendo burlada por esse esquema.
É de se mencionar, ainda, a existência de assimetria informacional entre o Setor Público e os agentes financeiros envolvidos na operação. A assimetria informacional pode ser conceituada como “a diferença existente em uma relação contratual entre o agente e o principal, em função de uma parte possuir mais informação do que a outra, ou seja, há informação oculta (hidden information)” (ROCHA, et al., 2012). No caso, sustenta Luis Augusto Ferreira dos Santos (SANTOS, 2021, p. 524) que as informações que precificam os ativos financeiros, cujos ativos subjacentes são os créditos da Dívida Ativa, nesse modelo de securitização, passam do sistema público do Ente, regido por princípios legais e formais, para o sistema de mercado de capitais, regido por regras de mercado, os quais objetivam a maximização dos retornos, a minimização dos riscos e o reforço das garantias. A transparência pode vir a ser comprometida: a empresa securitizadora, na intenção de privilegiar seus interesses, tenderá a selecionar os melhores créditos para compor a debênture sênior ofertada e o Ente Público não detém todas as informações nessa ação de seleção adversa, motivada pela assimetria informacional.
Em razão disso, é necessário que a securitização da dívida ativa seja encarada como uma forma de reforço à atuação estatal para a cobrança de créditos tributários, não como uma substituta para tal atuação. Com efeito, é possível ver pontos positivos na securitização de créditos com menor potencial da arrecadação pela via tradicional, relacionados a devedores mal ranqueados, matérias controvertidas, possibilidade de prescrição, entre outras circunstâncias.
Em relação aos créditos com alto potencial de liquidez, cujos devedores são bem identificados e financeiramente saudáveis, com parcelamento ativo, garantia imobiliária, entre outras circunstâncias, é mais interessante ao ente público investir na modernização de suas formas de cobrança, não havendo razão para se recorrer à securitização.
Temos, ainda, como forte centro de críticas à securitização de dívidas ativas as experiências de entes subnacionais com tal forma de operação. Neste ponto, vale mencionar o caso do Município de Belo Horizonte/MG.
O Município de Belo Horizonte cedeu ao Fundo “Tributos BH Fundo de Investimento em Direitos Creditórios Não Padronizados”, um FIDC-NP, “todos os direitos decorrentes dos créditos tributários de titularidade do Município, de sua competência e inscritos em sua Dívida Ativa, inclusive seus acessórios, parcelados ou não”. Além da cessão, o Município assumiu o compromisso de integralizar o patrimônio do FIDC-NP.
O FIDC, então, emitiu 100 cotas, no valor de R$1.000.000,00 (um milhão de reais) cada, em favor do Município de Belo Horizonte. A edilidade, assim, alienou as cotas no mercado financeiro. Nesta operação, as cotas saem do patrimônio do ente público e se integram ao patrimônio dos investidores adquirentes, enquanto o município incorpora ao seu caixa os valores recebidos nesta venda.
As dívidas, então, passam a ser pagas pelos contribuintes mas, em vez de se incorporarem ao patrimônio municipal, são retidas, pelo próprio agente arrecadador (instituição bancária), em favor do FIDC. O Fundo, com tais recursos, dá quitação ao Município da obrigação de integralização do patrimônio e amortiza ou resgata as cotas junto aos investidores.
As figuras abaixo, constantes do Relatório do Acórdão nº 772/2016, do Tribunal de Contas da União, ajudam a visualizar melhor a operação:
Figura 1 - Estrutura da operação no âmbito do FIDC-NP BH
| CEDENTE (Ente) | CESSIONÁRIO (FIDC) | OBSERVAÇÕES |
1 | Município de Belo Horizonte – BH possui contribuintes registrados na “dívida ativa tributária”. | - | - |
2 | Município integraliza o patrimônio do FIDC-NP BH com a assunção de uma obrigação, ou seja, de um compromisso financeiro junto ao Fundo. | - | A integralização não foi efetuada com a cessão do ativo “dívida ativa tributária”, pois este permanece de titularidade do Município. |
3 | - | Emite 100 cotas, no valor de R$ 1 milhão cada, diretamente ao Município de Belo Horizonte – MG. | As cotas, num total de R$ 100 milhões, passam a fazer parte do patrimônio da municipalidade. |
4 | O município, com auxílio do Custodiante (Banco do Brasil), aliena as cotas no mercado secundário de balcão. | - | As cotas saem do patrimônio do município e vão para o patrimônio dos investidores. Em troca, a municipalidade obtém “receita de capital alienação de bens”. |
5 | Contribuintes pagam suas dívidas ao município, ainda titular dos direitos creditórios. | - | Agente arrecadador (Banco do Brasil), por força contratual, não recolhe referidos valores aos cofres do município, transferindo-os diretamente à “conta transitória de arrecadação”. |
6 | - | FIDC recebe os recursos do Banco do Brasil, dando quitação ao município de parcela da obrigação assumida na forma do item “2”. | - |
7 | - | FIDC amortiza ou resgata as cotas junto aos investidores. | - |
.
Figura 2 – Operação realizada no âmbito do FIDC-NP BH
.
No caso, o contrato de cessão, na cláusula 2.4, buscou afastar a caracterização da operação como sendo uma operação de crédito, nos seguintes termos:
.
2.4 Os Direitos Creditórios serão adquiridos pelo Fundo sem qualquer coobrigação ou assunção de compromisso financeiro por parte do Cedente, não correspondendo referida aquisição a uma operação de crédito para os fins e efeitos da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000.
.
Ocorre que o Ministério Público de Contas, em seu parecer transcrito no relatório do Acórdão nº 772/2016, do TCU, opinou pela existência de operação de crédito no caso, trazendo informações relevantes para a compreensão da operação. Primeiramente, apontou para o fato de que o Município, para fazer jus às cotas no montante de R$100.000.000,00 (cem milhões de reais), cedeu ao fundo o direito ao fluxo de recebimento de créditos na monta de R$4.886.507.469,00 (quatro bilhões oitocentos e oitenta e seis milhões quinhentos e sete mil quatrocentos e sessenta e nove reais). Ademais, analisou o fluxo de recebimento da Dívida Ativa municipal, com base na série histórica crescente de arrecadação, para concluir que era nula a probabilidade de ingresso, no FIDC, de valores abaixo do necessário para o ulterior resgate das cotas seniores junto aos investidores. Observem-se os seguintes trechos:
.
O município de Belo Horizonte/MG cedeu e transferiu “ao Fundo, que adquire de acordo com os termos, condições e limitações previstos neste Contrato, todos os direitos decorrentes dos créditos tributários de titularidade do Município, de sua competência e inscritos em sua Dívida Ativa, inclusive seus acessórios, parcelados ou não, descritos no Anexo II deste Contrato e existentes na data-base (‘Direitos Creditórios’)” (peça 11, p. 29).
Repetindo, para fazer jus às cotas no montante de R$ 100.000.000,00, a municipalidade pôs à disposição do fundo a incrível monta de R$ 4.886.507.469,00, correspondente à totalidade do “estoque de direitos creditórios em 30/4/2008” (peça 11, pp. 57/9).
Essa nuance não pode passar despercebida, haja vista suas implicações diretas na atratividade e no sucesso do negócio jurídico pretendido, bem como no alcance do conceito de compromisso financeiro tipificado na Lei de Responsabilidade Fiscal.
Apesar da tentativa de conferir ao negócio uma roupagem jurídica diferente, o que se tem, em verdade e essência, é uma inequívoca modalidade de garantia. A consistente e crescente série histórica de arrecadação de valores advindos da Dívida Ativa Tributária, alusiva aos exercícios anteriores a 2008, permitia antever que, no período de 48 meses, era absolutamente nula a probabilidade de ingresso, no FIDC, de recursos decorrentes dos direitos creditórios em montante inferior ao necessário para ulterior resgate das cotas seniores, pelo fundo, junto aos investidores.
No caso de Belo Horizonte, não há cessão da dívida ativa. Ela continua de titularidade do município. Não há a alienação de um ativo, há a assunção de entregar ao FIDC, prioritariamente, o fruto da arrecadação da aludida dívida, cabendo ao município o excedente arrecadado. Isso é claramente um compromisso financeiro.
À luz do disposto no Contrato de Cessão de Direitos Creditórios, houve previsão de comprometimento da receita futura da municipalidade, afinal, foi “cedido o fluxo de caixa” decorrente do produto do adimplemento dos créditos inscritos em Dívida Ativa Tributária.
De fato, repetindo, do ponto de vista meramente formal, não se impõe à municipalidade o ônus de garantir um fluxo mínimo de recursos ao FIDC. Apesar disto, como demonstrado várias vezes neste parecer, a realidade econômica da operação consistente no volume de créditos postos à disposição do município, a abundância do fluxo de recebimentos por ele gerado e o carreamento prioritário desse fluxo para o FIDC eliminam qualquer risco para o FIDC e, por isso e apenas por isso, descreve-se a operação como se houvesse transferência de risco do município para o FIDC, com o intuito evidente de caracterizar a operação como não sendo uma operação de crédito sujeita aos ditames da LRF, ao ponto de se declarar no Contrato de Cessão de Direitos Creditórios e Outras Avença, na cláusula 2.4 (peça 11, pp. 27/81), que não se cuida de operação de crédito referida pela LRF, como se a qualificação econômico-jurídica pudesse decorrer do enunciado do contrato e não da realidade econômica, do substrato fático que lhe dá vida.
.
Por tais razões, a experiência do Município de Belo Horizonte com tal forma de operação costuma ser caracterizada como muito negativa para o ente público, servindo de balizamento para operações futuras a serem eventualmente estruturadas.
..
4. Conclusão
O presente trabalho buscou fazer um estudo sobre as operações de securitização de recebíveis e sua respectiva aplicação ao setor público brasileiro, com a securitização da dívida ativa dos entes federados nacionais.
Foi visto que a securitização da dívida ativa tem algumas vantagens potenciais que podem ser exploradas pelos entes públicos, como a utilização de ativo de baixa liquidez (crédito inscrito em dívida ativa) para geração de caixa, o custo potencialmente mais baixo que operações de crédito comum, a redução do endividamento e o aquecimento do mercado de capitais. Entretanto, para que tais vantagens sejam verificadas, é necessário que a operação a ser estruturada observe o conceito de true sale, com a cessão definitiva, irrevogável, irretratável e incondicional do crédito, de modo que não haja qualquer tipo de vínculo de responsabilidade do ente público pelo adimplemento do crédito.
Apresentou-se, inclusive, que, com base na redação dada pela Resolução nº 17/2015, que alterou a Resolução nº 43/2001, ambas do Senado Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios apenas poderão ceder o fluxo de recebimentos relativo a seus direitos creditórios inscritos em dívida ativa de forma definitiva e sem assunção de responsabilidade pelo pagamento dos créditos. O Senado, então, exige que as operações observem o conceito de true sale.
Importante observar, também, que há fortes críticas às operações de securitização efetuadas por entes públicos. Encontram-se, na doutrina, opiniões no sentido de que tal estrutura de operação pode acarretar um desestímulo ao investimento no aperfeiçoamento da cobrança tributária, bem como que a securitização pode acarretar uma captação de ingressos que deveriam ocorrer em benefício dos cofres públicos pelo mercado de capitais, com deságio capaz de impactar o orçamento público e prejudicar a gestão financeira sustentável do ente.
Ademais, a história brasileira registra casos em que entes públicos executaram operações que seriam, pretensamente, securitizações da dívida ativa registrada, mas que eram excessivamente gravosas à Fazenda Pública cedente, como no caso do Município de Belo Horizonte/MG. Tal experiência é recorrentemente utilizada para confirmar as críticas mencionadas anteriormente.
À nossa vista, com as informações colhidas no presente estudo, conclui-se que a securitização da dívida ativa, sendo um mecanismo de geração de caixa, pode ser um recurso à disposição dos entes nacionais. Entretanto, é necessário que haja um efetivo controle a fim de impedir que os entes públicos se utilizem de tal ferramenta para deixarem de investir na modernização e no aperfeiçoamento da cobrança tributária. Para tanto, pode ser aprimorada a legislação nacional a fim de se obstar a cessão de créditos com alto potencial de recuperação direta pela Fazenda Pública (como débitos reconhecidos e parcelados pelo contribuinte, ou débitos em face de contribuintes com alta capacidade de pagamento), permitindo a cessão em relação aos créditos cuja recuperação seja mais difícil.
Desta forma, teremos a compatibilização do interesse de manutenção da arrecadação sustentável do ente público com a possibilidade de geração de liquidez a partir dos créditos de difícil recuperação inscritos em dívida ativa, permitindo que o mercado de capitais seja adequadamente remunerado quando do pagamento de tais créditos.
.
5. Declaração de direitos
O(s)/A(s) autor(s)/autora(s) declara(m) ser detentores dos direitos autorais da presente obra, que o artigo não foi publicado anteriormente e que não está sendo considerado por outra(o) Revista/Journal. Declara(m) que as imagens e textos publicados são de responsabilidade do(s) autor(s), e não possuem direitos autorais reservados à terceiros. Textos e/ou imagens de terceiros são devidamente citados ou devidamente autorizados com concessão de direitos para publicação quando necessário. Declara(m) respeitar os direitos de terceiros e de Instituições públicas e privadas. Declara(m) não cometer plágio ou auto plágio e não ter considerado/gerado conteúdos falsos e que a obra é original e de responsabilidade dos autores.
.
6. Referências
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2014.
BEZERRA, Francisco Antônio; SILVA, Adriano José da. Descrição da estrutura básica de modelos de securitização de recebíveis no setor de saneamento. Revista Economia & Gestão da PUC Minas, Belo Horizonte, v. 8, n.16, p. 83-99, 2008.
BRASIL. Ministério da Fazenda. Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Parecer PGFN/CAF nº 1579/2014. 23 de setembro de 2014. Disponível em: https://auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2018/11/Parecer-PGFN-1579-2004.pdf
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 772/2016. Plenário. Relator: Ministro Raimundo Carreiro. Processo TC 016.585/2009-0. Ata 11/2016 – Plenário. Brasília, DF, Sessão 06/04/2016
CARRAZZA, Roque Antônio. O Sujeito Ativo da Obrigação Tributária. São Paulo: Resenha Tributária, 1977.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2022. Brasília: CNJ, 2022, Anual. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp- content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf. Acesso em 25 de junho de 2023.
CRUZ, Bleise Rafaele; BISPO, Jorge de Souza. Gestão de Riscos dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios. Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração - Anpad. Rio de Janeiro/RJ, setembro de 2008. Disponível em: https://arquivo.anpad.org.br/eventos.php?cod_evento=&cod_evento_edicao=38&cod_edicao_subsecao=391. Acesso em 01 de julho de 2023.
FATTORELLI, Maria Lucia. Sistema da dívida pública: entenda como você é roubado. In: SOUZA, Jessé; VALIM, Rafael. Resgatar o Brasil. São Paulo: Editora Contracorrente/Boitempo, 2018.
FURIATI, Bruno Pierin. O conceito de true sale no direito brasileiro. 2009. 147 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/8853/1/Bruno%20Pierin%20Furiati.pdf
QUEIROZ, Cristina Monteiro de. Cessão de créditos tributários: a experiência de securitização da dívida ativa do estado de Minas Gerais in TESOURO NACIONAL. Revista Cadernos de Finanças Públicas, v. 20, nº 1, p. 1-80, março, 2020. Disponível em: https://publicacoes.tesouro.gov.br/index.php/cadernos/article/view/72/50. Acesso em 25 de junho de 2023.
ROCHA, I.; PEREIRA, A. M.; BEZERRA, F. A.; NASCIMENTO, S. ANÁLISE DA Produção científica sobre teoria da agência e assimetria da informação. REGE, São Paulo – SP, Brasil, v. 19, n. 2, p. 329-342, 2012.
SANTOS, Luis Augusto Ferreira dos. Securitização de créditos fiscais tributários no Setor Público, sob a forma de direitos creditórios: uma proposta de análise técnica com base em estudo de caso da jurisprudência TCU. In Revista Eletrônica do Ministério Público do Estado do Piauí, ano 01, ed. 01, jan.-jun. 2021. Disponível em: https://www.mppi.mp.br/internet/wp-content/uploads/2022/02/Securitizac%CC%A7a%CC%83o-de-cre%CC%81ditos-fiscais-tributa%CC%81rios-no-Setor-Pu%CC%81blico-sob-a-forma-de-direitos-credito%CC%81rios-Uma-proposta-de-ana%CC%81lise-te%CC%81cnica-com-base-em-estudo-de-caso-da-jurisprude%CC%82ncia-TCU.pdf
Universidade Federal de Pernambuco