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ISSN: 2595-8402

Journal DOI: 10.61411/rsc31879

REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
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ARTIGO ORIGINAL

A disseminação da Ideologia de Gênero pela Igreja Católica como mecanismo de controle social da família nuclear heterossexual

Weverton Fernandes Bento Alves1

 

Como Citar:

ALVES, Weverton Fernandes Bento. A disseminação da Ideologia de Gênero pela Igreja Católica como mecanismo de controle social da família nuclear heterossexual. Revista Sociedade Científica, vol.7, n. 1, p.2700-2717, 2024.

https://doi.org/10.61411/rsc202453317

 

DOI: 10.61411/rsc202453317

 

Área do conhecimento: Direito

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Sub-área: Direito Constitucional. Sociologia jurídica.

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Palavras-chaves: Família. Igreja Católica Apostólica Romana. Ideologia de gênero.

 

Publicado: 17 de junho de 2024.

Resumo

O artigo analisa a disseminação da ideologia de gênero pela Igreja Católica Apostólica Romana, a fim de demonstrar a demasiada intenção do controle social da família nuclear heterossexual. Trata-se de um estudo qualitativo, resultado de uma revisão de literatura sistemática sobre o fenômeno analisado. Os resultados mostram que existe uma pretensão literal da Igreja Católica em disseminar um ideal de valorização e proteção da família nuclear como forma exclusiva de se constituir família, estigmatizando as demais formas de arranjos familiares possíveis. Pode-se concluir que, ao lançar mão de uma teoria/ideologia de gênero com a deturpada intenção de promoção do desenvolvimento adequado do indivíduo, a Igreja Católica termina em legitimar desigualdades e funciona como instituição promotora de preconceitos inferiorizantes dos comportamentos sociais que não deseja.

 

 

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La difusión de la Ideología de Género por parte de la Iglesia Católica como mecanismo de control social de la familia nuclear heterosexual

Resumen

El artículo analiza la difusión de la ideología de género por parte de la Iglesia católica Apostólica Romana, para demostrar la excesiva intención de control social de familia nuclear heterosexual. Se trata de un estudio cualitativo, resultado de una revisión sistemática de la literatura sobre el fenómeno analizado. Los resultados muestran que existe una intención literal de la Iglesia Católica de difundir un ideal de Valorización y protección de la familia nuclear como forma exclusiva de constituirse. familia, estigmatizando otras formas de posibles arreglos familiares. Puede ser concluir que, al utilizar una teoría/ideología de género con la visión distorsionada intención de promover el adecuado desarrollo de la persona, la Iglesia Católica termina legitimando desigualdades y funciona como una institución que promueve prejuicios que degradan comportamientos sociales que no desea.

Palabras clave: Familia. Iglesia Católica Apostólica Romana. Ideología de género.

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1.Introdução

Desde a adoção da religião Católica pelo imperador bizantino Teodósio como religião oficial do Império Romano, o cristianismo cresceu em grande escala pelo mundo, principalmente pela imposição de sua ideologia nos países colonizados. Assim, o Brasil, por exemplo, sofreu influência demasiada da igreja quando de sua colonização, de modo que os europeus usurparam a essência espiritualista dos povos nativos brasileiros e impuseram sua fé em detrimento de quaisquer crenças, em um processo de dominação humana pelo divino, marcado por extrema intolerância e por uma avassaladora imposição. Evidenciando-se, com isso, uma inegável finalidade de dominação do corpo social através de preceitos religiosos para garantia e controle do poder na sociedade.

Referida imposição perdurou, inclusive, com a independência do Brasil do Estado português, ocorrida em 7 de setembro de 1822, uma vez que a primeira Constituição brasileira - Constituição Política do Império de 1924 - adotou a religião Católica Apostólica Romana como sendo a religião oficial do Império, de modo que tolerou outras religiões apenas em cultos domésticos. Essa situação persistiu até a promulgação da Constituição Republicana de 1891, a qual preconizou a laicidade do Estado, à medida que as demais Constituições que sobrevieram também mantiveram o Brasil como estado laico, mas não foi o suficiente para afastar a excessiva tentativa de denominação cristã sobre os sujeitos sociais.

Dito isso, preconiza-se que na perspectiva católica, a única família aceita como válida consiste na união matrimonial de duas pessoas de sexos/gêneros diferentes e seus eventuais filhos, sendo que todas as outras formas de uniões afetivas, sejam homossexuais ou heterossexuais, monogâmicas ou poligâmicas, devem ser compreendidas como desvios de condutas e, por isso, devem ser desestimuladas e corrigidas. Acontece que todas e quaisquer uniões afetivas que se formam com a intenção de constituir família, mesmo que estruturada de maneira distinta dos ditames religiosos, consistem tanto em família como as demais, sem nenhuma distinção.

Nesse contexto, ainda que com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), a qual extirpou do ordenamento jurídico quaisquer formas de discriminações e elencou como máxima do Estado o princípio da dignidade da pessoa humana, o denominado discurso sobre teoria/ideologia de gênero ganha bastante destaque, principalmente, na citada comunidade cristã, notadamente católicas. Com a falsa premissa de proteção aos indivíduos, seus idealizadores e propagadores, almejam concentrar e validar apenas as relações heterossexuais monogâmicas, rechaçando todas as demais constituições e formatações familiares, assim como inferiorizam e atacam qualquer ciência que estuda gênero.

Assim, o presente ensaio objetiva construir um discurso crítico sobre a real finalidade da Igreja Católica Apostólica Romana acerca da teoria/ideologia de gênero, a fim de demonstrar a clara intenção de domínio social para se manter no controle do poder, através de uma agenda religiosa ultraconservadora que funciona como um mecanismo de controle de comportamentos indesejáveis, o que vai na contramão dos princípios norteadores da República brasileira instituídos pela CF/88.

Dessa forma, o presente trabalho se constitui como um estudo qualitativo, resultado de uma revisão de literatura sistemática, cuja base teórica fundamental é extraída do capítulo do livro “Debates contemporâneos sobre educação para a sexualidade”, organizado por Paula Regina Costa Ribeiro e Joanalira Corpes ​​ Magalhães, publicado em 2017 pela editora FURG, intitulado “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária – ou: a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural?”, de autoriza de Rogério Diniz Junqueira, e utiliza alguns aportes teóricos acerca da instituição família e de estudos de gênero, de modo a se confirmar as premissas discutidas e as críticas sustentadas.

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2.Do sentido de família

A família nuclear heterossexual, formada por uniões monogâmicas entre um homem e uma mulher e seus eventuais filhos, é considerada como modelo exclusivo de referência e aceitação de união afetiva pela comunidade cristã, de modo que os demais arranjos familiares são considerados impuros e pecaminosos, e, por isso, qualquer forma de organização familiar diversa do paradigma religioso consiste em uma afronta aos desígnios divinos. Assim, pelos dogmas cristãos-religiosos, apenas a família nuclear seria a base de uma sociedade civilizada, ao passo que tudo que foge a esse paradigma deve ser compreendido como desviante, sendo, inclusive, a única forma de união legitimada pela Igreja Católica a ser difundida e protegida pelo Estado.1 e 2

Similar a esse raciocínio, Lévi-Strauss3, sob uma perspectiva estruturalista, compreendeu a família como um fenômeno universal estabelecido pela união mais ou menos duradoura de dois indivíduos de sexos diferentes, por isso heterossexual, socialmente aprovada, responsável pela criação e educação de seus filhos. Por essa ótica, percebe-se uma supervalorização da família nuclear e a inferiorização das demais formas de arranjos familiares, notadamente, as homossexuais.

Para elucidar essa situação nos dias atuais, Alves4 aduz que

 

[...] existe um processo de tentativa de implementação de uma mentalidade religiosa no ordenamento jurídico brasileiro, marcada, sobremaneira, pela atuação política de parlamentares integrantes da FPE do Congresso Nacional. Esses atores sociais formam grupos com mentalidades afeitas a ideologia cristã e buscam a reafirmação da família enquanto instituição “natural” a partir da estigmatização de todas as demais estruturações familiares possíveis.

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Dessa forma, deve-se compreender que os mais diversificados arranjos familiares, sejam eles monogâmicos ou poligâmicos, correspondem e detêm conteúdo de entidade familiar sem quaisquer distinções com a família nuclear, apenas guardam diferenças na sua formulação e organização, atributos que não influenciam no desenvolvimento e manutenção dessas uniões afetivas como socialmente normais e legítimas, tampouco, congregam alguma carga negativa para o pleno desenvolvimento de seus membros. Na verdade, a liberdade dos sujeitos sociais sobre a forma de como organizar a intimidade de suas vidas, muito pelo contrário do que é propagado por instituições religiosas conservadoras, consiste em garantia fundamental desses indivíduos, uma vez que cabe ao Estado assegurar a plena igualdade de condições entre os seres humanos5.

Seguindo essa linha de raciocínio, Alves e Rezende6 esclarecem que

 

[...] a forma de organização dos atores sociais enquanto família não se dá de forma homogênea e, tampouco, pode ser pensada como uma instituição natural e generalizada, imune a quaisquer fatores externos. Pelo contrário, infere-se que a idealização de família pelo imaginário humano consiste em uma construção social, variável de acordo com o tempo, o contexto histórico e as mudanças sociais, além de sofrer influência direta de fatores econômicos, políticos e ideológicos. Por isso, os mais diversificados arranjos familiares, sejam eles heterossexuais ou homossexuais, monogâmicos ou poligâmicos, correspondem e detêm conteúdo de entidade familiar.

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Demais disso, a idealização e elevação de um único modelo de família como paradigma, conforme Alves7,

 

[...] relaciona-se diretamente com a ideologia de partidos de centro-direita e de direita atuantes no Congresso Nacional, ideologias que estão ligadas a noção conservadora de família. Nesse contexto, percebe-se que se pretende instituir como norma de caráter geral a mentalidade de grupos políticos, com a finalidade de se manter assegurada sua identidade e, por conseguinte, disseminar seus referenciais.

 

Com isso, tem-se que “a família, portanto, não é natural, mas, sim, social, mesmo ante a tentativa de naturalização das relações familiares a partir de definições socialmente instituídas pelos dispositivos jurídicos, médicos, psicológicos, religiosos e pedagógicos”.8 Dessa forma, a idealização da família nuclear heterossexual é apenas uma forma de organização familiar ante uma vasta possibilidade de formatos e estruturações possíveis, sendo que não há hierarquia entre as modalidades de família.

Para além disso, importante registrar que com o ingresso da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88)

 

[...] o Brasil inaugurou o paradigma do Estado Democrático de Direito, fundado nos princípios e regras que visam realizar e promover a dignidade humana, alterando, essencialmente, o conceito de família, ampliado dia a dia [...] O texto constitucional trouxe à baila o princípio da pluralidade familiar e a família tradicional proveniente do casamento, única protegida nessa ocasião, sucumbiu-se pela possibilidade de reconhecimento de novas espécies de entidades familiares.9

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Tanto é que a CF/88 preconizou, em seu artigo 3º, inciso 4º, que “[...] constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil [...] promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.10 No mesmo sentido, a CF/88, em seu artigo 5º, também assegurou que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. 11

Para além disso, também em consonância com a CF/88, o Estado brasileiro se constitui como um Estado laico, também denominado por não confessional, o que ratifica a não interferência do Estado nas relações privadas, razão pela qual uma ideologia religiosa, ainda que predominante na população, não pode se sobrepor a individualidade dos sujeitos sociais para a construção de sua biografia e, por consectário lógico, nortear a forma de como se deve ocorrer as formatações familiares, dada expressa vedação do constituinte originário. ​​ 

Por isso, deve-se perceber as famílias como processos e não como estruturas fixas no tempo. Assim sendo, refuta-se a ideia das transformações familiares como declínio, em que as formas de família constituídas à margem do modelo de família nuclear burguesa são vistas como desestruturações, pois, a constituição de família de formas alternativas dizem respeito às mudanças sociais que afetam direta e indiretamente os indivíduos em sociedade, tais como a demografia, economia e expectativa de vida, de modo que não se pode considerar um modelo hegemônico de família arraigado de preconcepções ideológicas, mas, sim, que suas representações sociais são constantemente revisadas por vários aspectos, confirmando-se a mutabilidade dos arranjos familiares.12

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3.Da disseminação proposital da Ideologia de Gênero pela Igreja Católica

A ideologia de gênero surge como uma resposta de convencimento social a fim de demonstrar que os arranjos familiares consolidados fora do padrão nuclear representam desvio de conduta dos atores sociais pela desordem na estruturação de suas famílias. Esses desvios de condutas são compreendidos como qualquer comportamento social que se foge das determinações dogmáticas religiosas, ou seja, tudo que vai na contramão da heteronormatividade, da heterossexualidade obrigatória e das normas de gênero.13

Essa preposição, na perspectiva religiosa conservadora, objetiva atacar a liberdade individual de construção da subjetividade humana na tentativa retórica de inferiorizar comportamentos sociais não contemplados pela Igreja Católica. E, com isso, almeja-se cunhar um ideal discriminatório e estigmatizante de que as variações de construção das subjetividades humanas estranhas ao padrão de família nuclear cristã, tais como as uniões homoafetivas (pares do mesmo gênero), representa insubordinação por parte dos sujeitos socias às imposições religiosas e, por assim ser, mostram-se como afronta à concepção heteronormativa e consistem em desvios civilizatórios.

Ao elucidar a questão de gênero para a Igreja Católica, Melo14 diz que seus seguimentos mais ortodoxos ​​ 

 

[...] acreditam que deve haver uma espécie de harmonização entre as identidades social e biológica do indivíduo. Em consonância com uma longa tradição cristã, a Igreja defende que Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança e a união entre eles deve constituir o pilar da família. Consequentemente, ser contrário a essa ordem da criação significa uma “autodestruição” do ser humano e uma destruição da ordem de Deus.

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Assim sendo, a categoria família no discurso de ideologia de gênero se sustenta na clara intenção de controle social pela Igreja, na medida em que se almeja reafirmar a família nuclear heterossexual como a única conduta social correta e legítima. Como a instituição social família consiste na base inicial da socialização do indivíduo, através de uma ditadura dogmática cristã, a Igreja almeja consolidar uma teoria/ideologia de gênero alicerçada em preceitos retrógrados de hierarquização, marginalização e estigmatização, com o propósito de reafirmação de uma “categoria política no sentido estrito e, então, uma poderosa categoria de mobilização política autoritária e reacionária”.15.

Portanto, a Igreja pretende com a ideologia de gênero padronizar as uniões afetivas atribuindo aceitabilidade apenas às famílias nucleares, através de um projeto político e religioso que tem a finalidade de operar como um dispositivo no cerne de uma estratégia de poder, com imposições morais de caráter antilaico, antifeminista e antidemocrático. Isso porque, quando se busca deslegitimar e marginalizar o indivíduo impondo-lhe um ideal de anormalidade sobre vivências que não seguem um padrão dominante e esperado, repreende-se o próprio desenvolvimento humano, uma vez que o pleno desenvolvimento social se dá por um processo de construção de autonomia e respeito às escolhas subjetivas dos sujeitos sociais.

Não por acaso, “a Igreja Católica exerceu um protagonismo no jogo que definiu as fronteiras que configuram as relações entre Estado e Religião dentro das exigências da laicidade”.16 E, segundo Montero17, hodiernamente

 

[...] é preciso reconhecer que a Igreja Católica no Brasil – é ainda a mais influente instituição religiosa do país – sempre atuou, material e simbolicamente, na formulação de uma ideia de direitos (individuais, coletivos e culturais) e foi ator importante na construção de um modelo de sociedade civil. ​​ O catolicismo ainda mantém, a primazia simbólica e política na passagem dos valores para as normas. O protestantismo pentecostal nos parece ser hoje o único grande movimento religioso que, pelo seu rápido crescimento desafia essa hegemonia. Mas ele ainda não foi capaz de encontrar os meios para produzir um discurso público aceitável.

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Nesse seguimento, a fim de salvaguardar a dominação e o controle de poder, ao lado da ideologia/teoria de gênero surge o ativismo antigênero, também pela Igreja Católica, com o argumento principal de defesa da “família natural”, fundada no matrimônio heterossexual e destina à transmissão da vida. Nessa proposta derivam ideias ardilosas sobre a necessidade de tanto se “[...] garantir às crianças o direito de crescer em uma ‘família de verdade’, quanto a pressão sobre instâncias governamentais ou de representação política para interromper ou proibir a adoção de medidas e noções supostamente inspiradas na ‘teoria/ideologia do gender’”18, ou seja, ​​ sob uma visão distorcida propositalmente de que o campo dos Estudos de Gênero ou dos movimentos feministas e LGBTI objetiva “[...] ‘abolir a natureza humana’ e impedir a principal missão da mulher na esfera educativo-zeladora”.19

Posto isso, na contramão das garantias individuais e fundamentais ao ser humano, a ideologia de gênero - e seu consequente movimento antigênero, consiste em “[...] um dispositivo de origem vaticana urdido para promover uma agenda ultraconservadora, antifeminista e antagônica à democracia e aos direitos humanos entendidos em bases mais amplas e plurais”20, cuja finalidade é a banalização “[...] da promoção do reconhecimento da diversidade sexual e de gênero em políticas públicas, no mundo social ou na vida cotidiana em geral”.21

Nesse viés, na tentativa de se reafirmar apenas a família nuclear heterossexual como válida e adequada socialmente, surgem os mais variados discursos manifestados pela Igreja Católica para deslegitimar qualquer formatação conjugal que não se enquadre nos seus padrões. Esses discursos são direcionados a sociedade em geral e objetivam subjugar as mais diversas formas de arranjos familiares em detrimento do conceito de família cristã, e, por isso, funcionam como mecanismo de alienação para garantir a ordem sexual e de gênero.22

Nessa linha de raciocínio, importante registrar que, conforme Pavani e Alves23,

 

[...] percebe-se que a religião desempenha um papel fundamental para a compreensão da modernidade, que as instituições religiosas e o Estado não se constituíram como entes separados, que as delimitações da distinção entre Público e Privado, bem como Religião e Estado, tiveram participação mútua dos segmentos confessionais e da sociedade civil.

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Entende-se, portanto, que a Igreja Católica pretende lançar mão de uma ideologia meramente moral e não científica para incutir nos atores sociais, mais uma vez, que todos os comportamentos sociais que não atentem rigorosamente os preceitos dogmáticos religiosos representam desvio de conduta e, consequentemente, devem ser corrigidos e repudiados, sob pena de extrema desordem social. Para tanto, utilizam da família para alcançar tal fim, uma vez que alienam os sujeitos sociais ainda no desenvolvimento de sua personalidade e na sua formação como indivíduo no seio familiar, posto que, conforme Bourdieu24, a família é a principal responsável pela socialização, sendo esse o processo que se inicia na infância e tende construí-la socialmente, definindo a sua realidade social. Pretendem, assim, a qualquer custo, invalidar e invisibilizar todo e qualquer arranjo familiar que não seja o nuclear heterossexual, valendo-se de uma forte interferência dos valores religiosos na vida pública.

Não por acaso, através do discurso contra a teoria/ideologia da identidade de gênero, cuja criação se deu como estratégia pela própria Igreja, a fim de se manter o controle das relações sociais e, principalmente, manter a primazia da heteronormatividade, fica evidente a extrapolação do espaço da Igreja para expandir seus ideais meramente ideológicos para os espaços privados da vida, através da padronização das uniões afetivas, à medida que usa da autoridade de seus seguidores para invisibilizar e subjugar todos os formatos de existência que ameaçam seu controle.

Contrário a esse pensamento, Sarti25 pontua que a família

 

[...] é, ao mesmo tempo, auto-referida na sua construção do ‘nós’ – nisto que constitui o mundo privado – e permanentemente influenciada pelo mundo exterior – público –, que lhe traz a inevitável dimensão do ‘outro’, com a qual tem que lidar. Assim, a família constitui-se pela construção de identidades que a demarcam, em constante confronto com a alteridade, cuja presença se fará sentir insistentemente, forçando a abertura, mesmo quando persistirem as resistências. A família, então, constitui-se dialeticamente. Ela não é apenas o ‘nós’ que a afirma como família, mas é também o ‘outro’, condição da existência do ‘nós’. Sem deixar entrar o mundo externo, sem espaço para a alteridade, a família confina-se em si mesma e se condena à negação do que a constitui, a troca entre diferentes.

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Assim sendo, diferentemente do difundido pela Igreja, ideologia de gênero não representa nenhuma desordem ou desvio de conduta do indivíduo em sociedade, tampouco, deve ser compreendida como uma ameaça às famílias, muito pelo contrário, o campo científico de estudos de gênero almeja colocar os atores sociais como protagonistas de suas vidas e garantir o exercício do direito à liberdade individual dos sujeitos sociais de forma indistinta.

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4.Considerações finais

Partindo-se da perspectiva de que a família não se constitui como uma constante linear, mas, sim, como um processo, e de que a adoção de um modelo de família como padrão termina em legitimar as desigualdades nas formatações alternativas de família26, incutir um ideal de valorização e proteção a família nuclear como forma exclusiva de se constituir família, mostra-se com um retrocesso em um Estado Democrático de Direito, cujas funções, pelo menos em tese, consiste em assegurar a liberdade de organização da vida do indivíduo em sociedade, ainda mais na dimensão privada da vida.

Ademais, a família deve ser percebida como uma instituição social em constante processo de transformação influenciada por diversos fenômenos sociais que são responsáveis pelas suas mutações, à medida que maior participação da mulher no mercado de trabalho, baixas taxas de fecundidade e o envelhecimento da população, por exemplo, repercutem na forma de organização dos sujeitos sociais como família.

Portanto, ao lançar mão de uma teoria/ideologia de gênero com a deturpada intenção de promoção do desenvolvimento adequado do indivíduo, a Igreja Católica termina em legitimar desigualdades e funciona como instituição promotora de pré-conceitos inferiorizantes dos comportamentos sociais que não deseja. Assim sendo, a fim de sempre se manter no controle da vida social e garantir a supremacia de suas ideias, busca legitimar e normalizar sua ideologia no sistema político ao assumir uma bancada legislativa conservadora, por exemplo, no claro intuito de manter o controle do poder que a história confirma que a Igreja deteve e ainda detém.  ​​ ​​​​ 

No mesmo sentido, deve-se registrar uma afronta direta dos ditames constitucionais instituídos pela CF/88, na medida em que os preceitos constitucionais que fundamentam e organizam o Estado brasileiro estão sendo usurpados com a finalidade precípua de garantia de um comportamento social desejado e esperado, ainda que isso signifique ​​ estigmatização de toda uma comunidade que não se curva aos ditames religiosos – e, de fato, não deveria, pois tem esse direito constitucionalmente assegurado - literalmente contrários à ordem constitucional vigente, a qual, a propósito, deveria vincular as ações sociais, como da Igreja Católica.

Sugere-se, portanto, que através de estudos científicos sociológicos, seja oportunizado aos sujeitos sociais o adequado conhecimento das relações sociais e da pluralidade familiar através de políticas públicas educacionais, de modo que se corrija a ideia deturpada da Igreja sobre a teoria/ideologia de gênero para que os indivíduos possam desenvolver sua subjetividade e construir sua biografia sob plena igualdade de condições e aceitação, afastando-se o pragmatismo conservador religioso responsável pelo real descontrole e importunação social.

 

5.Biografia

 

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Weverton Fernandes Bento Alves

Mestre em Economia Doméstica pela UFV. Especialista em Direito da Família e em Direito Processual Civil pela UCAM. Especialista em Direito Constitucional pela FAVENI. Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas. Mediador e Conciliador Judicial (CCMJ/CNJ). Membro da Comissão dos Direitos das Minorias da 42 Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Minas Gerais. Professor do curso de Direito da UNOPAR/Muriaé. Advogado. Pesquisador.

Link para o CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3625627229947868

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6.Declaração de direitos

O(s)/A(s) autor(s)/autora(s) declara(m) ser detentores dos direitos autorais da presente obra, que o artigo não foi publicado anteriormente e que não está sendo considerado por outra(o) Revista/Journal. Declara(m) que as imagens e textos publicados são de responsabilidade do(s) autor(s), e não possuem direitos autorais reservados à terceiros. Textos e/ou imagens de terceiros são devidamente citados ou devidamente autorizados com concessão de direitos para publicação quando necessário. Declara(m) respeitar os direitos de terceiros e de Instituições públicas e privadas. Declara(m) não cometer plágio ou auto plágio e não ter considerado/gerado conteúdos falsos e que a obra é original e de responsabilidade dos autores.

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7.Referências

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Universidade Norte do Parará - UNOPAR, Muriaé, Brasil.


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