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Scientific Society Journal
ISSN: 2595-8402
Journal DOI: 10.61411/rsc31879
REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
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ARTIGO ORIGINAL
Percepção social da geodiversidade: identidade patrimonial e relações de pertencimento
Claudenice Martins de Freitas1; Rosemy da Silva Nascimento2
Como Citar:
DE FREITAS, Claudenice Martins; NASCIMENTO, Rosemy da Silva. Percepção social da geodiversidade: identidade patrimonial e relações de pertencimento. Revista Sociedade Científica, vol.7, n. 1, p.3855-3889, 2024.
https://doi.org/10.61411/rsc202465717
Área do conhecimento: Interdisciplinar.
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Palavras-chaves: Geodiversidade; Geoconservação social; Percepção abstrata; Pertencimento; Praia de Itaguaçu; Florianópolis.
Publicado: 25 de agosto de 2024.
Resumo
Geoconservação representa um conjunto de etapas que visam identificar e gerir o geopatrimônio. Durante esse processo percebe-se a inexistência das comunidades locais em etapas como a seleção e a avaliação. Dá preocupação com essa ausência e o entendimento da relevância dessas comunidades em conservar esse geopatrimônio, emerge o discurso que utiliza como base auxiliar a caracterização da função social atribuída aos objetos geológicos, a percepção abstrata desse patrimônio. Entende-se que o papel social atribuído a esses objetos, por comunidades fora das geociências, precisa ser avaliado e considerado nas estratégias de geoconservação. Assim, questiona-se a existência de reconhecimento e qual o papel social do ponto Mirante da praia de Itaguaçu como patrimônio por moradores locais. Com isso objetivou-se analisar a percepção social e o reconhecimento do ponto mirante da praia de Itaguaçu, ponto ITA, como patrimônio por moradores locais. Como base teórica a pesquisa apoia-se em estudos de geoconservação social, identificação da percepção patrimonial a partir da inclusão das comunidades locais em todas as etapas da geoconservação e os valores atribuídos aos objetos geológico-geomorfológicos através da sua apropriação social. Parte-se de uma pesquisa qualitativa tendo como estratégia de coleta de dados a aplicação direta de formulários mistos e análise de dados através da análise de conteúdo temática e categorial. O corpus distribui-se em 15 participantes, sendo 7 moradores do bairro MB de Itaguaçu e 8 moradores de outros bairros MOBs de Florianópolis. Os resultados apontam o reconhecimento do ponto ITA como patrimônio, bem como os motivos e valores, e uma ligação de pertencimento pessoal, com o lugar através das relações histórico-afetivas e identitárias para com o ponto e sua paisagem simbólica. Como contribuição esse trabalho mostra a percepção social dos MB e MOBs a cerca do sítio de geodiversidade Afloramentos rochosos da praia de Itaguaçu, ponto ITA, indicando um conhecimento da cultura local e uma curiosidade desses participantes em saber como se formaram as feições que moldam as pedras-bruxas.
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Social perception of geodiversity: heritage identity and relationships of belonging
Abstract
Geoconservation is a set of steps aimed at identifying and managing geoheritage during this process, local communities are absent from stages such as selection and evaluation. Concerned about this absence and the understanding of the importance of these communities in conserving this geoheritage a discourse emerges that uses the abstract perception of this heritage as an auxiliary basis for characterizing the social role attributed to geological objects. It is understood that the social role attributed to these objects, especially their selection and evaluation by communities outside the geosciences, needs to be assessed and considered in geoconservation strategies. Thus, the existence of recognition and the social role of the Itaguaçu beach viewpoint as a heritage site for local residents are questioned. The objective was to analyze the social perception and recognition of the Itaguaçu beach viewpoint, ITA point, as a heritage site by local residents. As a theoretical basis, the research is based on studies of social geoconservation, identification of the perception of heritage based on the inclusion of local communities in all stages of geoconservation and the values attributed to geological-geomorphological objects through their social appropriation. It is based on qualitative research, with direct application of mixed forms as the data collection strategy and data analysis using thematic and categorical content analysis. The corpus consists of 15 participants, 7 of whom live in the MB neighborhood of Itaguaçu and 8 from other MOB neighborhoods in Florianópolis. The results point to the recognition of the ITA point as a heritage site, as well as the motives and values, and a connection of personal belonging with the place through historical-affective and identity relationships with the point and its symbolic landscape. As a contribution, this work shows the social perception of MB and MOBs around the geodiversity site Rocky outcrops of Itaguaçu beach, point ITA, indicating knowledge of the local culture and the participants' interest in the formation of the features that shape the witch-stones.
Keywords: Geodiversity; Social geoconservation; Abstract perception; Belonging; Itaguaçu Beach; Florianópolis.
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1. Introdução
Os termos geodiversidade e geoconservação evoluíram em paridade com o de biodiversidade [1] e vêm se estabelecendo e constituindo um quadro de pesquisas que se consolida e se diversifica [2]. A geoconservação configura-se como um conjunto de estratégias para conservação dos elementos das geodiversidade através da sua identificação, proteção e gestão [3]. Representam diretrizes recentes nas ciências da Terra, com pouco mais de 30 anos [4]; [5].
Os objetivos da geoconservação seguem dois campos não excludentes. Um campo de conservação puramente física com base em locais considerados relevantes como resultado dos processos de inventário e valoração científicos [6]; [7] e outro com base nas diretrizes dos geoparques em que existe um processo de integração de todo o patrimônio circundante, e os critérios de valoração, deve incluir as relações entre a cultura e as feições físicas, caso existam [8].
Os primeiros podem ser exemplificados com Sharples [6]; [7] ao considerar (a) proteger/conservar e assegurar a manutenção da geodiversidade, (b) prevenir e minimizar riscos de degradação locais de interesse relevante para a geoconservação, (c) reduzir os impactos adversos em locais considerados importantes para a geoconservação, (d) contribuir para a manutenção da biodiversidade e dos processos ecológicos dependentes da geodiversidade e (e) auxiliar na divulgação e interpretação da geodiversidade para visitantes e usuários locais. Esta base está relacionada à geodiversidade e embora existam relações com a biodiversidade, deve ser daquela porção considerada de interesse relevante e a sua divulgação serve ao conhecimento e importância do local em termos da história evolutiva da Terra, em seu aspecto científico.
A segunda abordagem restringe-se aos territórios de geoparques, e apresenta diretrizes para o envolvimento social das comunidades inseridas nesses territórios, considerando além dos critérios científicos, educativos os fatores culturais no processo do planejamento das estratégias de geoconservação e sua relação como desenvolvimento sustentável local [8]. As estratégias dependem dos processos de inventariação e da sua valoração conforme diretrizes estabelecidas pela Unesco.
Independente da abordagem adotada existe um consenso com relação às etapas de geoconservação e seu objetivo em proteger e/ou conservar as feições patrimoniais ameaçadas por pressões antrópicas e/ou naturais [8]; [7]. Bem como o entendimento de que essas estratégias conservacionistas por si mesmas não constituem garantias de conservação [9].
Sob essa perspectiva, para que haja uma relação de pertencimento [10] que justifique o envolvimento dos moradores locais num processo de conservação e/ou preservação de um patrimônio [11] é preciso um processo histórico para criar vínculos com fatos, mudanças ao longo de um tempo, onde se estabelecesse relações pessoais que despertassem memórias, afetos e apegos com o lugar [12]. Tendo em vista que isso reside no processo de escolha do que será considerado patrimônio [13].
Partindo da visão supracitada, observa-se um avanço no que concerne à categoria patrimônio através da inserção de categorias resultado das ações humanas, uma vez que a cultura passa a ter respaldo [14]; [15]. Ação essa ampliada no Artigo 216 da Constituição Federal de 1988, no qual se passa a valorizar também a imaterialidade das formas de expressões, dos modos de fazer, dos saberes, as diferentes celebrações e aos locais onde a sociedade realiza suas atividades cotidianas e enraízam sua herança cultural [16]. Com isso a categoria patrimônio passou a ser visto por uma dimensão tangível (material) e uma intangível (imaterial) [13] e a ser denominado de patrimônio cultural [16].
Esse “patrimônio” apresenta distintas adjetivações que o coloca nas mais diferentes áreas, por isso podemos ter patrimônio econômico, industrial, genético, arquitetônico, cultural, artístico, etnográficos, ecológico, paisagístico, cênico, utilitários, religiosos, dentre outros [14]; [16]. Sua natureza distinta abrange tanto o coletivo como o individual e está vinculado a um processo histórico, construído no tempo por intermédio ou indicação de alguém ou ente público [17].
As dimensões material e imaterial do patrimônio cultural [16] são conceitualmente entendidas como complementares, uma vez que o significado atribuído à parte material representa sua imaterialidade e é indissociável para a compreensão do caráter do bem perante a sociedade [18].
O patrimônio cultural brasileiro apresenta diferentes adjetivações, como já mencionado anteriormente, e podemos abstrair da Constituição Federal brasileira (CF) [16] e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) [14] as seguintes categorias que representam conjuntos urbanos ou sítios com valores: arqueológico, paisagístico, artístico, histórico [16]; [14], paleontológico, ecológico, científico [16] e etnográfico [14].
A inclusão dos patrimônios intangíveis (imateriais) [16]; [19] passa a fazer parte dos processos de inventários dos quadros patrimoniais brasileiros [20]. Permitindo o início de um processo de socialização das escolhas patrimoniais dando voz às comunidades locais ao lado de especialistas [21]. O que não se percebe com as etapas de geoconservação do patrimônio geológico.
Apesar dos trabalhos cada vez mais detalhados da geodiversidade, elementos abiótico da natureza, e pedidos para que os geossítios, sítios de geodiversidade ou locais de interesse patrimonial sejam protegidos e/ou conservados [22] a relação entre geocientistas e a sociedade no que tange às estratégias de geoconservação aponta um paradoxo. A seleção e a avaliação do geopatrimônio são realizadas sem a participação das comunidades locais [23] [24] [25] [26] [27] [28]. Contudo, ao final do processo, esses especialistas, indicam a necessidade de ações da sociedade geral para a conservação do geopatrimônio por eles selecionado [29].
Sobre esse contexto emerge um discurso de inclusão dos diferentes atores sociais em todas as etapas de geoconservação [30]. Que vem se aprimorando e apontando como ponto basilar da integração entre geocientistas e sociedade geral, a percepção social da natureza [31] [32]. Cerne para o fomento de políticas públicas, constituição de instrumentos legais de conservação da natureza através da sociedade geral [33]; [30].
Sendo assim, o papel social atribuído aos objetos geológicos em especial sua seleção e avaliação por comunidades fora das geociências precisa ser avaliado e considerado nas estratégias de geoconservação [34] [13]. Esse papel social da geoconservação está representado no Sistema de classificação integrado do geopatrimônio de Pena-Reis e Henriques [33] [34] pela sua componente social, a percepção abstrata. Essa, avalia como as comunidades locais percebem o geopatrimônio do seu entorno, gerando devolutivas para sua conservação [30].
O papel social que as comunidades locais atribuem ao geopatrimônio inicia pelo conhecimento dos motivos que levam uma pessoa a visitar um lugar [30] [35]. Uma vez que esses expressam relações pessoais com o local e/ou com outros frequentadores [10] o que pode representar experiências positivas ou negativas [35]. Informações sobre como os moradores locais se relacionam com suas áreas de lazer, podem indicar relações de pertencimento [12]; [37]; [10] [38] base para ações de preservação e/ou conservação para com o lugar [11], [13]; [30].
Conservar ou preservar um patrimônio requer além de um transmissor(a) que haja também um receptor(a). Por isso, Chagas [39] esclarece a noção de transmissão e recepção como conceitos fundamentais á noção de patrimônio. A transmissão é o fato de passar algo diacronicamente de um tempo para outro, de uma geração para outra e a recepção ligada à noção de que precisa existir alguém para receber esse patrimônio. Por isso, ele afirma que:
Não basta transmitir (voluntária ou involuntariamente), é preciso que alguém receba (voluntária ou involuntariamente). Todo e qualquer patrimônio só se constitui quando se estabelecem vínculos entre o transmitir e o receber, sabendo que receber implica o compromisso de uma nova transmissão (p. 4) [39].
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Nesse sentido o papel social da geoconservação não é apenas de estabelecer estratégias para o desenvolvimento local, mas o de garantir que haja pessoas comprometidas na perpetuação da noção abstrata daquele patrimônio [30]. Esses patrimônios precisam “evocar no espectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o espectador, o representante” [40]. Uma vez que os “bens culturais não têm em si sua própria identidade, mas a identidade que os grupos sociais lhes conferem” [41]. Residindo a necessidade de se compreender as relações sociais sincrônicas e diacrônicas com esse patrimônio [39].
Com base na apropriação social do patrimônio [9] e o entendimento sobre a seleção do patrimônio e seu reconhecimento pela comunidade local [30] através da ressonância [39]; [40] parte-se do inventário da geodiversidade do município de Florianópolis realizado por Covello (2018) [42] em que foi selecionado o ponto Afloramentos rochosos da praia de Itaguaçu e levantado questionamento acerca da existência de um reconhecimento por parte dos moradores locais desse ponto como patrimônio. A pesquisa teve como objetivo analisar a percepção social e o reconhecimento do ponto mirante da praia de Itaguaçu, ponto ITA, como patrimônio por moradores locais.
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2. Descrição e localização da área de estudo – Ponto mirante da praia de Itaguaçu- ponto ITA
O bairro de Itaguaçu, onde se situa o ponto do mirante da praia de Itaguaçu (Figura 1), doravante chamado de ponto ITA, localiza-se na porção continental do município de Florianópolis, no distrito sede Continente [43] e população de 1017 homens e 1097 mulheres num total de 2114 habitantes [44].