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Scientific Society Journal
ISSN: 2595-8402
Journal DOI: 10.61411/rsc31879
REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
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ARTIGO ORIGINAL
Oversharenting e os limites ao poder familiar
Bianca Silva Bonardi1; Daniele Alves Moraes2
Como Citar:
BONARDI, Bianca Silva, MORAES; Daniele Alves. Oversharenting e os limites ao poder familiar. Revista Sociedade Científica, vol.7, n.1, p.722-789, 2024.
https://doi.org/10.61411/rsc202424617
Área do conhecimento: Ciências Jurídicas
Palavras-chaves: Oversharenting; Poder familiar; Conflito de princípios; Direitos Fundamentais.
Publicado: 12 de fevereiro de 2024
Resumo
O presente trabalho enfrenta a evolução da sociedade impulsionada pela tecnologia, onde observa-se que muitos pais expoem dados pessoais de seus filhos, desde antes do nascimento, em redes sociais, a partir disso, destacando questões sobre conflitos de direitos fundamentais, levando a refletir sobre os limites do poder familiar e a necessidade de resguardo à individualidade e privacidade dos filhos diante do oversharenting. A pesquisa tem como objetivo discutir os limites do poder familiar em relação ao compartilhamento de informações sobre as crianças nas redes sociais e os direitos das crianças em relação à proteção de suas informações pessoais na internet, para a partir disso, questionar se há ou não violação aos direitos da personalidade das crianças com a prática do oversharenting, bem como, refletir se limitar a prática, seria ou não uma violação dos direitos personalíssimos desses pais. Busca-se inicialmente, através do método exploratório, realizar pesquisas bibliográficas nas áreas do Direito, visando ainda o levantamento de material legislativo e jurisprudêncial brasileiro para posteriormente compará-lo ao francês. A pesquisa utilizou como material as legislações pertinentes, bem como jurisprudência relevante, além do estudo de casos reais em que ocorre oversharenting, o fenômeno a ser analisado. Com isso, foi possível concluir que a ausência de legislação específica sobre o assunto, cria uma lacuna capaz de deixar desprotegidas crianças e adolescentes expostos nas redes sociais, acarretando diversas consequências. Por conseguinte, uma solução pertinente para os conflitos que envolvem o oversharenting, é a criação de legislação regulamentando a prática deste fenômeno.
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Abstract
This work addresses the evolution of society driven by technology, where it is observed that many parents expose their children's personal data, even before birth, on social media. From this, it highlights issues related to conflicts of fundamental rights, leading to reflection on the limits of parental authority and the need to safeguard the individuality and privacy of children in the face of oversharing. The research aim to discuss the limits of parental authority regarding the sharing of information about children on social media and the rights of children in relation to the protection of their personal information on the internet. It also questioned whether there is a violation of the children's personality rights with the practice of oversharing and whether limiting the practice would or would not violate the personal rights of these parents. Initially, through an exploratory method, bibliographic research was conducted in the areas of law, aiming to gather Brazilian legislative and jurisprudential material for later comparison with French law. The research used relevant legislation, as well as relevant jurisprudence, in addition to the study of real cases involving oversharing, the phenomenon under analysis. As a result, it was possible to conclude that the absence of specific legislation on the subject creates a gap that can leave children and adolescents exposed on social media unprotected, leading to various consequences. Therefore, a pertinent solution to the conflicts surrounding oversharing is the creation of legislation regulating this phenomenon.
Keywords: Oversharenting; Parental authority; Conflict of principles; Fundamental rights.
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1. Introdução
Atualmente vivemos em uma sociedade impulsionada pela tecnologia, onde os dados armazenados em meios digitais tornaram-se um bem valioso. A revolução tecnológica, com a crescente inserção da internet e das redes sociais em nossa vida cotidiana, trouxe consigo inúmeras oportunidades e desafios. A capacidade de compartilhar informações instantaneamente com pessoas ao redor do mundo se tornou parte integrante de nossas vidas, redefinindo a maneira como nos comunicamos, interagimos e até mesmo como construímos nossa identidade.
No ambiente familiar, é notável o crescente compartilhamento de informações pessoais de crianças, desde antes do nascimento, nas redes sociais, refletindo um desejo dos pais de registrar momentos especiais. Esse comportamento suscita questões profundas envolvendo conflitos de direitos fundamentais no contexto digital, os quais são constitucionalmente protegidos em prol da dignidade humana. Embora a intenção dos pais seja frequentemente positiva, é fundamental considerar os limites do poder familiar e proteger a individualidade e privacidade das crianças, uma vez que o conteúdo compartilhado online molda suas identidades digitais, com impactos potenciais ao longo de suas vidas.
Pretende-se com esse trabalho, inicialmente, apresentar a prática do oversharenting, fenômeno recente e crescente, que se refere ao excesso de compartilhamento de informações sobre os filhos nas redes sociais, incluindo fotos, vídeos e detalhes pessoais, bem como as possíveis consequências para as crianças, já que a partir dessa prática, pode haver violação de direitos fundamentais, bem como, implicações futuras.
O tema mostra-se importante ao passo que, com o surgimento das redes sociais, promover uma comunicação instantânea com pessoas do mundo todo, em questão de segundos, é algo rotineiro. Assim, como consequência a esse fato, os pais acabam compartilhando, muitas vezes de maneira excessiva, dados e imagens de seus filhos menores nas redes sociais, fenômeno denominado sharenting, ou oversharenting. Ainda, a pesquisa busca explorar questões em profundidade, como os limites do poder familiar em relação ao compartilhamento de informações sobre as crianças nas redes sociais e os direitos das crianças em relação à proteção de suas informações pessoais na internet, para a partir disso, questionar se há ou não violação aos direitos da personalidade das crianças, bem como, refletir se limitar a prática, seria ou não uma violação dos direitos personalíssimos desses pais.
Apesar do aumento exponencial desse acontecimento, por ser um fenômeno relativamente novo, ainda existem lacunas legislativas significativas que precisam ser abordadas. A partir disso, nota-se que não há uma legislação atualmente no Brasil que trate sobre sharenting explícitamente, justificando então a importância de pesquisas sobre o assunto, para que ainda, futuramente, seja possível embasamento teórico para ampliação legislativa.
Neste contexto, surge uma série de questões complexas que merecem investigação. Como encontrar um equilíbrio adequado entre a privacidade da criança e a liberdade dos pais no contexto do oversharenting? Quais são os limites do poder familiar em relação à proteção da privacidade e dos direitos pessoais da criança? A prática do oversharenting pode configurar uma forma de violação dos direitos fundamentais dos menores envolvidos?
Nesta vereda, o tema desta pesquisa demanda diversos focos de estudo, uma vez que pode ser encarado como interdisciplinar, ao englobar desde a base constitucional, com direitos personalíssimos, até direito de família e o poder familiar. Assim, busca-se inicialmente, através do método exploratório, realizar pesquisas bibliográficas nas áreas do Direito, visando ainda o levantamento de material legislativo e jurisprudencial brasileiro para posteriormente compará-lo ao francês.
A pesquisa utilizará como material as legislações pertinentes, brasileira e internacional relacionada a esse assunto, com foco especial nas recentes mudanças na legislação francesa, bem como jurisprudência relevante, além do estudo de casos reais em que ocorre oversharenting. A partir disso, será utilizada a reflexão crítica em cima dos casos reais. O material base será obtido por meio de artigos publicados em revistas especializadas, bem como livros e anais de congressos.
Em última análise, objetiva-se não apenas entender o fenômeno do oversharenting, mas também destacar a necessidade de políticas públicas e regulamentações adequadas para proteger os direitos fundamentais das crianças em um mundo digital em constante evolução. Esta é uma questão que afeta além das famílias individuais, abrangendo a sociedade, e a presente pesquisa busca lançar luz sobre as complexidades e desafios que ela apresenta.
2. O surgimento do oversharenting
O desenvolvimento e a popularização da internet foram fundamentais para a evolução das redes sociais. Segundo Bernardo Felipe Estellita Lins, consultor legislativo da área de ciência e tecnologia, comunicação e Informática, a internet começou como um projeto militar nos Estados Unidos durante a década de 1960, com nome de Advanced Research Projects Agency Network – ARPANET. (LINS, 2013)15.
Ao longo das décadas seguintes, foi gradualmente expandida para universidades, organizações de pesquisa e, somente então, para o público em geral, então, o que surgiu originalmente de um projeto militar, evoluiu e tornou-se o que futuramente conheceríamos como a internet, que com seu crescimento, permitiu uma maior conectividade global e compartilhamento de informações de forma mais rápida e eficiente.
Ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000, houve uma disseminação significativa da internet de banda larga, tornando-a mais acessível e rápida para as pessoas comuns. Esse avanço tecnológico abriu novas possibilidades para o desenvolvimento de plataformas online interativas, como fóruns e comunidades virtuais, que mais tarde evoluíram para as redes sociais modernas.
Com o advento da internet, as pessoas aprenderam a explorar novas formas de se conectar e se comunicar. As primeiras comunidades e fóruns online já forneciam uma maneira de se reunir em torno de interesses comuns e discutir aspectos específicos. No entanto, à medida que a internet se tornava mais acessível e as tecnologias avançavam, surgiu uma demanda por plataformas que facilitassem a conexão com um número maior de pessoas e com mais facilidade.
Essa demanda crescente por conexão e interação online foi o combustível que impulsionou o sucesso das redes sociais modernas. Assim, o contexto do surgimento das redes sociais pode ser entendido como uma convergência entre o avanço tecnológico da internet e a necessidade humana de conexão e interação social. Esses dois elementos combinados deram origem às redes sociais que se tornaram uma parte integral da vida moderna, envolvendo a forma como as pessoas se comunicam, inspiram informações e constroem relacionamentos.
Conforme Marteleto (2001)24 ressalta: “A rede social, derivando deste conceito, passa a representar um conjunto de participantes autônomos, unindo ideias e recursos em torno de valores e interesses compartilhados”.
Incentivado por essa facilidade de acesso à internet e às tecnologias digitais, bem como pela cultura de compartilhamento e exposição nas redes sociais, surge o fenômeno atual nomeado como “oversharenting”, que se desenvolveu no contexto em que pais ou responsáveis legais compartilham informações, imagens e dados dos filhos nas plataformas cibernéticas, expondo muito sobre eles, como o nome, rosto, endereço, local de estudo, atividades de lazer e estado de saúde, muitas vezes de forma exacerbada, tornando-se um hábito nos dias de hoje.
O termo oversharenting, surgiu ao ser utilizado em uma manchete, com os dizeres “Você é uma mãe ou pai que é culpado de 'oversharenting'? A cura pode ser não compartilhar nada” (tradução nossa), escrita pelo jornalista Steven Leckart, no ano de 2012, com intuito de tratar da “tendência, por parte dos pais, de compartilhar muitas informações e fotos de seus filhos online”, descrito em um artigo na seção Words of the Week, do The Wall Street Journal. O autor explica:
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EU NUNCA DIRIA A NINGUÉM como criar seus filhos. Mas decidi traçar uma linha na areia com a minha. Quando se trata de meu filho, que tem 3 meses, estou eliminando totalmente as configurações de privacidade - abstendo-me. Não é que eu queira que meu filho fique escondido do mundo. Eu só quero que ele herde uma decisão em vez de uma lista de senhas e configurações padrão. Se ele participar da mídia social, eventualmente o fará em seus próprios termos, não nos meus. (LECKART, 2012)20 (tradução nossa).
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A expressão origina-se de um neologismo que une os termos "share" (compartilhar, em inglês) e "parenting" (criação de filhos, em inglês), usado desde então para descrever o hábito de compartilhar excessivamente informações e fotos de crianças nas redes sociais e outras plataformas digitais.
Assim, o autor define sharenting como:
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A prática consiste no hábito de pais ou responsáveis legais postarem informações, fotos e dados dos menores que estão sob a sua tutela em aplicações de internet. O compartilhamento dessas informações, normalmente, decorre da nova forma de relacionamento via redes sociais e é realizado no âmbito do legítimo interesse dos pais de contar, livremente, as suas próprias histórias de vida, da qual os filhos são, naturalmente, um elemento central. (EBERLIN, 2017, p. 258)12.
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Assim, essa prática de compartilhamento, que envolve pais ou responsáveis compartilhando informações e imagens de crianças em plataformas online, realmente reflete as mudanças significativas em nossa sociedade devido ao advento das redes sociais. Apesar de parecer algo inofensivo, por ser comum, é essencial equilibrar o desejo de compartilhar com a necessidade de proteger a privacidade e a dignidade das crianças, pois, à medida que essa prática se torna mais comum, surge uma necessidade crítica de considerar o impacto que uma exposição digital pode ter nas crianças a longo prazo.
Portanto, se torna relevante e oportuna a discussão sobre os limites da liberdade de expressão dos pais nesse contexto, especialmente quando as consequências recaem sobre indivíduos ainda em fase de desenvolvimento e de uma forma, muitas vezes, irreparável.
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2.1 Crianças como detentores do direito à imagem e à privacidade
Os direitos fundamentais, estão previstos constitucionalmente, de modo que, são considerados efetivos desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Além disso, esses direitos valem desde a concepção de cada indivíduo e são universais, devendo ser protegidos e respeitados em todas as circunstâncias para garantir a dignidade e o bem-estar de todas as pessoas, pois a Constituição Federal estabelece a sua promulgação um marco inicial para a vigência e a garantia dos direitos fundamentais no Brasil, sendo a base legal para a promoção da justiça, da igualdade e da dignidade de todos os cidadãos
Dessa forma, as crianças também são detentoras do direito à imagem e à privacidade, assim como os adultos. O direito à imagem refere-se ao controle que uma pessoa tem sobre o uso de sua imagem, seja em fotografias, vídeos, ou outras representações visuais, garantindo que ninguém possa utilizá-la sem consentimento.
Nesse sentido, observa-se:
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O direito à privacidade desdobra-se, com base na Constituição de 1988, na proteção do direito à honra e direito à imagem. O direito à honra consiste na preservação da reputação de determinada pessoa perante a sociedade (honra objetiva) ou da dignidade e autoestima de cada um (honra subjetiva). [...] O direito à imagem consiste na faculdade de controlar a exposição da própria imagem para terceiros. Esse controle da exposição da imagem veda tanto a divulgação quanto montagem, inclusive diante dos meios de comunicação e abrangendo tanto a pessoa física quanto a jurídica. (RAMOS, 2014, p. 513)30
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Assim, o direito à privacidade protege a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas contra divulgação ou uso não autorizado de suas informações pessoais. O autor acrescenta:
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A Constituição, com razão, reputa-os valores humanos distintos. A honra, a imagem, o nome e a identidade pessoal constituem, pois, objeto de um direito, independente, da personalidade A inviolabilidade da imagem da pessoa consiste na tutela do aspecto físico, como é perceptível visivelmente. [...] Essa reserva pessoal, no que tange ao aspecto físico-que, de resto, reflete também personalidade moral do indivíduo, satisfaz uma exigência espiritual de isolamento, uma necessida- de eminentemente moral. (SILVA, 2005, p. 209)34.
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Assim, nota-se de maneira precisa a importância dos direitos fundamentais relacionados à dignidade da pessoa humana, pois, a noção de inviolabilidade da imagem de uma pessoa abrange não apenas seu aspecto físico, visível externamente, mas também sua personalidade moral, demonstrando uma necessidade de respeito à esfera pessoal de cada indivíduo, confirmando que a imagem de alguém é parte integrante de sua identidade e dignidade.
Além disso, para o direito, não existem categorias de pessoas, o ser humano é um e a ele deve ser garantido o conjunto dos direitos fundamentais, ou seja, sem distinção, as crianças são detentoras dos Direitos Fundamentais, tanto quanto os adultos, pois estes são inerentes à todas as pessoas, inciando-se no nascimento com vida, mas posto a salvo pela lei, os direitos do nascituro, desde a concepção. (Art. 2º, Código Civil, 2002).
Ainda, o princípio do melhor interesse da criança, apresenta-se como um princípio fundamental no direito brasileiro, em que a proteção da criança é prioridade em questões relacionadas aos seus direitos e bem-estar. Ao compartilhar informações pessoais da criança, os pais devem levar em conta se essa divulgação é realmente benéfica para a criança ou se pode causar danos emocionais ou psicológicos no presente ou no futuro.
Vale lembrar que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil também traz importantes considerações sobre a proteção de dados pessoais, incluindo os dados de crianças. A LGPD estabelece regras sobre a coleta, o armazenamento, o tratamento e a divulgação de dados pessoais, visando proteger a privacidade e os direitos dos titulares de dados, incluindo crianças.
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2.2 O poder familiar
O Código Civil (CC), promulgado há 21 anos, trouxe consigo mudanças ao mundo jurídico, em se tratando de Direito de Família, adotou-se o termo “Poder Familiar”, substituindo o até então conhecido “Pátrio Poder”, ou seja, o poder do pai, o poder paterno, garantindo, expressamente, seu exercício ao pai, marido, auxiliado pela mãe, sua mulher, tanto que, em eventual conflito ou divergência de opiniões quanto a esse exercício, prevaleceria a vontade paterna, como observa-se:
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Art. 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade.
Parágrafo único. Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz para solução da divergência. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 4.121, de 27.8.1962) (Revogado) (BRASIL, 1916).
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No entanto, o CC/2002, ao tratar de Poder Familiar discorrendo entre seus artigos 1.630 e 1.638 sobre o tema, traz igualdade entre os pais, como nota-se:
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Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores.
Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade. (BRASIL, 2002)
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Assim, os filhos menores, e não emancipados, ficam sujeitos ao poder familiar, que é costumeiramente partilhado entre os pais, podendo ainda, se necessário, ser exercido com exclusividade por um dos genitores.
Nessa vereda, o exercício do poder familiar, conforme previsto no Código Civil de 2002, atribui aos pais tanto deveres quanto aos direitos em relação aos seus filhos e menores não emancipados. Esses deveres e direitos estão intrinsecamente ligados à proteção e ao bem-estar das crianças, abrangendo tanto a esfera pessoal quanto a patrimonial.
O Código Civil de 2002, ainda sobre o poder familiar, afirma:
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Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:
I - dirigir-lhes a criação e a educação;
II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior;
V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município;
VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. (BRASIL, 2002).
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Logo, compreende-se que um dos principais deveres parentais é o da direção na criação e educação dos filhos, assim, os pais têm o compromisso de orientar e supervisionar o progresso na criação e no desenvolvimento do menor, garantindo um ambiente seguro e propício ao crescimento físico e emocional das crianças. Isso inclui garantir o acesso delas a uma educação adequada, promovendo assim seu desenvolvimento intelectual e social.
A Constituição Federal de 1988 também estabelece em seu artigo 226, § 5º, que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.
Neste sentido, de acordo com Maria Berenice Dias (2013, p. 436)7 o poder familiar é “[...] intransferível, inalienável, imprescritível, e decorre tanto da paternidade natural como da filiação legal e da socioafetiva. As obrigações que dele fluem são personalíssimas.”
Assim, os direitos e deveres inerentes ao poder familiar não estão disponíveis, e podem ser classificados como personalíssimos, pois trata-se de uma relação jurídica que vincula pais e filhos, com foco na garantia do desenvolvimento e da integridade das crianças como sujeitos de direitos, sendo assim ligados a proteção e tutela da dignidade da pessoa humana.
Em vista disso, seguindo mesma linha de pensamento, Diniz (2012)8 discorre no sentindo que o poder familiar pode ser definido como conjunto de obrigações e direitos visando o interesse e a proteção dos filhos menores e não emancipados, tanto em relação a pessoa, quanto em relação aos bens desse filho.
Outro dever fundamental é o relacionado à guarda dos filhos, que em casos de discussões ou separação, os pais ainda têm a responsabilidade de tomar decisões conjuntamente sobre a guarda. Segundo Dias (2015)7, diversas legislações brasileiras, desde as mais abrangentes até as mais específicas, impõem à família o dever de sustento, educação e guarda dos filhos, obrigação que pertence aos pais enquanto sociedade conjugal, no entanto, não há de cessar com a separação, pois esses deveres dos pais em relação a prole persistem, e o ônus é de ambos os pais; apesar disso, as obrigações são individuais, assim, cada um deve contribuir de maneira proporcional com sua condição econômica.
A par disso, o Código Civil prevê a possibilidade de guarda unilateral, na qual um dos genitores detém a responsabilidade exclusiva, ou a guarda compartilhada, na qual ambos os pais compartilham igualmente a autoridade parental. A decisão sobre qual será adotada deve sempre considerar o melhor interesse das crianças, havendo discordância, cabe ao juiz decidir.
Como observa-se:
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Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:
I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar; (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 1º Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor. (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014). (BRASIL, 2002) (grifo nosso).
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Ao relacionar o poder familiar com a guarda e questões de privacidade das crianças, é possível associar ao contexto do oversharenting. Ainda que o termo sharenting não seja amplamente conhecido no Brasil, um caso compatível com a sua prática já foi levado aos tribunais Brasileiros, mais especificamente de São Paulo, em meados de 2019.
Nesse caso, um pai expressou sua preocupação com a exposição pública de seu filho, Thommie Blue, realizada pela mãe, que é uma influenciadora digital e DJ conhecida como Ammie Michelle, que em seu perfil pessoal soma atualmente 340 (trezentos e quarenta) mil seguidores.
O processo, que correu em segredo de justiça, com nº 1039830- 83.2019.8.26.0100, teve como Autor o pai do menor, requerendo a guarda unilateral com pedido de tutela de urgência. Além disso, nos autos foram discutidos aspectos quanto a exposição do menor nas redes sociais, que segundo o genitor, ocorre de maneira “exagerada e indevida contra a imagem da criança, adultizando-a e sexualizando-a, inclusive com finalidade mercantil”. (SÃO PAULO, 2020)32.
Isso, posto que até então, o infante possuia perfil próprio, administrado pela genitora, em que fazia publicidade e divulgações em forma de “permuta”, definida como uma troca que ocorre de maneira recíproca, uma acordo em que as partes que trocam entre si propriedades, bens ou serviços. (FERREIRA, 2020)17.
Assim, o genitor, ora autor da ação, requereu a Vara de Infância e Juventude, com fundamento na inocorrência das hipóteses previstas no artigo 98 do ECA/1990, a modificação liminar da guarda; a proibição da requerida de veicular a imagem do infante de forma indiscriminada e vexatória, bem como de noticiar detalhes deste processo em suas redes sociais, sob pena de multa diária. (SÃO PAULO, 2020)32.
Após muita discussão processual, ofensas trocadas e exposição midiática, a Juíza responsável pelo caso, manifesta que segue como controvertidas as questões quanto a modalidade de guarda e a fixação do regime de visitas que melhor atenda ao interesse da criança. Diante de tal, ressalta importância do laudo psicossocial para uma decisão, porém, antes mesmo da sentença final, oficia a empresa FACEBOOK SERVIÇOS ONLINE DO BRASIL LTDA, a fim de que, no prazo de 24 horas, promova a exclusão dos perfis, tanto da genitora, quanto do menor. Essa decisão, pautada no art. 19, §4º, da Lei nº 12.965/2014. (SÃO PAULO, 2020)32.
Na análise deste caso, surgem discordâncias significativas entre os pais de Thommie Blue, e a disputa não parece estar relacionada apenas ao oversharenting, mas também, a outras desavenças entre o ex-casal. Apesar disso, a exposição da criança persistiu, e o incidente está disponível publicamente em plataformas como o YouTube, incluindo registros em vídeo dos relatos da mãe sobre o processo. Como resultado, a imagem da criança agora permanecerá, eternamente na internet, associada a uma batalha legal entre seus pais. Isso destaca a complexa relação entre o poder familiar, o direito à privacidade da criança e as novas dinâmicas da era digital.
Portanto, poder familiar pode ser entendido como um direito-dever que vincula pais e filhos menores, não emancipados, sujeitos dessa relação jurídica que pode iniciar através de vínculo natural, biológico ou afetivo, inserida na esfera pessoal e patrimonial, na qual os pais devem exercer a autoridade parental a fim de garantir o desenvolvimento e a segurança da integridade dos filhos como sujeitos de direitos.
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2.3 Direitos fundamentais
Para que haja garantia da dignidade da pessoa humana, faz-se necessário discorrer além do poder familiar, ainda sobre os Direitos Fundamentais, que são entendidos como garantias básicas objetivando a proteção dos indivíduos de abusos por parte do Estado ou de outros indivíduos, conquistas dos cidadãos contra possíveis violações, podendo servir inclusive como um limite ao poder do Estado ou um indicativo do “caminho” a seguir.
Neste sentido, de acordo com Maria Berenice Dias (2015, p. 41-42)7 “Os direitos fundamentais podem ser considerados parâmetros materiais e limites para o desenvolvimento judicial do direito. [...] Os princípios constitucionais vêm em primeiro lugar e são as portas de entrada para qualquer leitura interpretativa do direito”.
Os Direitos Fundamentais possuem eficácia irradiante, de modo que os valores e princípios fundamentais consagrados na Constituição possam irradiar seus efeitos para além das normas constitucionais específicas, moldando a interpretação e o entendimento de todo o ordenamento jurídico, abarcando ainda, em sua eficácia horizontal, entes privados, devendo todos observarem e respeitarem estes Direitos. Isso devido ao fato de a Constituição Federal apresentar-se como a base do Sistema Jurídico Brasileiro, como podemos observar:
Significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a Lei Suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas. (SILVA, 2005, p. 45)34
Como consequência à eficácia irradiante que parte do fato da Constituição exercer sua supremacia, surge a capacidade de determinados princípios e normas constitucionais influenciarem a interpretação e a aplicação de outras disposições legais que não estejam diretamente vinculadas à Constituição.
No que tange os Direito Fundamentais, ainda:
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A liberdade e a igualdade foram os primeiros princípios reconhecidos como direitos humanos fundamentais, de modo a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana. O papel do direito é coordenar, organizar e limitar as liberdades, justamente para garantir a liberdade individual. Parece um paradoxo. No entanto, só existe liberdade se houver, em igual proporção e concomitância, igualdade. Inexistindo o pressuposto da igualdade, haverá dominação e sujeição, não liberdade. (DIAS, 2015, p. 45)7.
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Sendo assim, apesar de fundamental, a liberdade como direito deve existir acompanhada de igualdade, para que não haja dominação entre os sujeitos, ou seja, é necessário limites à liberdade para que seja exercida de maneira adequada.
Quanto ao âmbito familiar, a autora ainda acrescenta:
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A liberdade floresceu na relação familiar e redimensionou o conteúdo ela autoridade parental ao consagrar os laços de solidariedade entre pais e filhos, bem como a igualdade entre os cônjuges no exercício conjunto do poder familiar voltada ao melhor interesse do filho. (DIAS, 2015, p. 46)7.
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Em se tratando de direito à liberdade de expressão, está previsto pela Constituição da República Federativa do Brasil de 19881, em seu rol das garantias fundamentais, elencado pelo artigo 5°, incisos IX e X, estando dispostos em grau de paridade, não havendo um direito que sobrepõe ao outro.
Os direitos fundamentais são protegidos em diferentes níveis, como em na Constituição Nacional, da mesma forma, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 1948, bem como o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos abarcam esse tema.
Esses documentos buscam garantir que as pessoas tenham certas liberdades e proteções básicas contra a opressão e a violação de seus direitos. Além disso, eles buscam estabelecer limites para o poder dos governos e outras instituições, a fim de proteger a individualidade e o bem-estar de cada pessoa.
Neste sentindo, o autor discorre:
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Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamental acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. (SILVA, 2005, p. 178)34
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Nota-se que existem diversos direitos classificados como Direitos Fundamentais, segundo José Afonso da Silva (2005)34, eles podem ser classificados em cinco grupos, com base na Constituição Federal, sendo esses: direitos individuais, direitos à nacionalidade, direitos políticos, direitos sociais, direitos coletivos, direitos solidários.
Assim, a título de exemplo, pode-se citar além dos Direitos Fundamentais tratados neste trabalho, também o Direito à vida, à Liberdade de expressão, o Direito à privacidade, o Direito à educação, o Direito à saúde, o Direito ao devido processo legal, sendo esses apenas alguns exemplos de direitos fundamentais, pois há muitos outros listados em diversas declarações e tratados internacionais de direitos humanos. Já que a proteção e a promoção dos direitos fundamentais são cruciais para construir sociedades justas, igualitárias e respeitosas dos direitos e dignidade de todas as pessoas.
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2.4 Princípios aplicados ao caso
Ao analisar a exposição de menores na internt de um olhar voltado ao Direito, percebe-se que abarca em especial dois principios reconhecidos como fundamentais, por estarem dispostos no texto constitucional, e em Tratados Internacionais, são eles: o direito à privacidade (das crianças) e o direito à liberdade de expressão (dos pais).
Em relação ao direito à privacidade, a Constituição Federal Brasileira protege a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, incluindo crianças. O oversharenting pode comprometer a privacidade da criança ao expor sua vida pessoal de maneira excessiva e sem consentimento. As informações compartilhadas pelos pais podem ser permanentemente acessíveis online, o que pode levar a situações constrangedoras e invasivas no futuro.
Assim, conforme menciona André de Carvalho Ramos (2014, p. 192)30, “A privacidade e a identidade das crianças também devem ser protegidas, devendo o Estado adotar medidas para evitar a disseminação inadequada de informações que possam levar à sua identificação.”
O autor ainda acrescenta:
O direito à privacidade é um direito fundamental que permite que seu titular impeça que determinados aspectos de sua vida sejam submetidos, contra a sua vontade, à publicidade e a outras turbações feitas por terceiros. O direito à privacidade ou vida privada engloba, de acordo com a doutrina, o direito à intimidade. [...] a intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo de uma pessoa, suas relações familiares e de amizade, enquanto privacidade ou vida privada é mais ampla e envolve todos os relacionamentos sociais, inclusive as relações comerciais, de trabalho e de estudo. (RAMOS, 2014, p. 512)30.
Já se tratando da liberdade de expressão dos pais, essa está resguardada também como um Direito Fundamental, que garante o direito das pessoas expressarem suas opiniões e ideias sem censura ou interferência governamental. No caso dos pais, isso inclui a possibilidade de compartilhar informações sobre suas vidas e a vida de seus filhos, incluindo fotos e detalhes do cotidiano.
No entanto, é importante lembrar que a liberdade de expressão não é absoluta e pode ser sujeita a certas limitações legítimas, como proteção à privacidade e aos direitos das crianças. O oversharenting pode comprometer a privacidade da criança e, em alguns casos, pode ter impactos negativos em sua vida e bem-estar, especialmente à medida que a criança cresce e se torna mais consciente da presença de suas informações pessoais na internet.
Assim, conforme menciona André de Carvalho Ramos (2014, p. 500)30, “A liberdade de expressão consiste no direito de manifestar, sob qualquer forma, ideias e informações de qualquer natureza. Por isso, abrange a produção intelectual, artística, científica e de comunicação de quaisquer ideias ou valores.”
Logo, ao tratar de oversharenting, deve-se questionar quanto a colisão de princípios constitucionais, quais sejam: liberdade e privacidade, ambos pertencentes aos Direitos Fundamentais.
Nesse ínterim, a autora defende:
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A partir do transbordamento dos princípios constitucionais para todos os ramos do direito, passou-se a enfrentar o problema do conflito de princípios ou colisão de direitos fundamentais. Nessas hipóteses - que não são raras, principalmente em sede de direito das famílias -, imperioso invocar o princípio da proporcionalidade, que prepondera sobre o princípio da estrita legalidade. (DIAS, 2015, p. 41)7.
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Ainda, discorre o autor:
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Na ponderação em sentido amplo dos diversos direitos envolvidos, vê-se que a limitação à liberdade de expressão é perfeitamente justificável, graças ao critério da proporcionalidade. (...) O critério da proporcionalidade, então, é chave mestra da teoria externa, pois garante racionalidade e controle da argumentação jurídica que será desenvolvida para estabelecer os limites externos de um direito e afastá-lo da regência de determinada situação fática. (RAMOS, 2014, p. 105)30.
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Sendo assim, fica evidente nos casos de oversharenting ocorre uma colisão entre princípios de pais e filhos, e que para solucionar isso, talvez se faça necessário questionar os limites do poder familiar, bem como observar uma maneira para que haja uma ponderação entre esses princípios constitucionais.
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2.4.1 Princípio da privacidade
A privacidade trata-se de princípio fundamental que visa a garantia a proteção da liberdade individual e o controle sobre as informações pessoais de cada indivíduo.
O direito à privacidade abrange diversos aspectos da vida das pessoas, incluindo o controle sobre seus dados pessoais, a inviolabilidade do domicílio, a proteção das comunicações e a preservação da intimidade. Em um mundo cada vez mais conectado digitalmente, a privacidade ganha ainda mais relevância, uma vez que nossas informações pessoais estão constantemente sendo coletadas, armazenadas e compartilhadas.
O direito à privacidade vem expressamente descrito na Constituição Federal, como observa-se:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. (BRASIL, 1988)1.
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Embora a palavra "privacidade" não apareça explicitamente no texto constitucional, esse direito é garantido por meio de outros dispositivos que abordam a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
Quanto a eles ainda, o autor expõem que:
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[...] Preferimos usar a expressão direito à privacidade, num sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional em exame consagrou. Toma-se, pois a privacidade como o conjunto de informações acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições. (SILVA, 2005, p. 206)34
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Vale destacar que, ao longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) e outros tribunais têm interpretado a Constituição para adaptar seus princípios aos desafios modernos, incluindo questões relacionadas à privacidade na era digital. Como resultado, a legislação de proteção de dados e outras regulamentações têm sido atualizadas para abordar as preocupações contemporâneas sobre a privacidade e o uso de dados pessoais.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei nº 13.709/2018 4, por exemplo, é uma importante lei brasileira que busca regulamentar o tratamento de dados pessoais e reforçar a proteção à privacidade dos cidadãos, criada para proteger a privacidade e os direitos individuais dos cidadãos, estabelecendo regras para a coleta, o armazenamento, o processamento e a compartilhamento de dados pessoais.
A seção III da Lei Geral de Proteção de Dados, citada acima, trata sobre a proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes:
Art. 14. O tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse, nos termos deste artigo e da legislação pertinente.
§ 1º O tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o
consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal.
§ 2º No tratamento de dados de que trata o § 1º deste artigo, os controladores deverão manter pública a informação sobre os tipos de dados coletados, a forma de sua utilização e os procedimentos para o exercício dos direitos a que se refere o art. 18 desta Lei.
§ 3º Poderão ser coletados dados pessoais de crianças sem o consentimento a que se refere o § 1º deste artigo quando a coleta for necessária para contatar os pais ou o responsável legal, utilizados uma única vez e sem armazenamento, ou para sua proteção, e em nenhum caso poderão ser repassados a terceiro sem o consentimento de que trata o § 1º deste artigo.
§ 4º Os controladores não deverão condicionar a participação dos titulares de que trata o § 1º deste artigo em jogos, aplicações de internet ou outras atividades ao fornecimento de informações pessoais além das estritamente necessárias à atividade.
§ 5º O controlador deve realizar todos os esforços razoáveis para verificar que o consentimento a que se refere o § 1º deste artigo foi dado pelo responsável pela criança, consideradas as tecnologias disponíveis.
§ 6º As informações sobre o tratamento de dados referidas neste artigo deverão ser fornecidas de maneira simples, clara e acessível, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, com uso de recursos audiovisuais quando adequado, de forma a proporcionar a informação necessária aos pais ou ao responsável legal e adequada ao entendimento da criança. (BRASIL, 2018).
Ao abordar o oversharenting, prática que pode incluir fotos, vídeos, detalhes sobre a vida cotidiana, realizações e outras informações pessoais sobre a criança, deve-se ponderar quanto a privacidade da criança que está sendo exposta. Embora o oversharenting seja frequentemente uma forma de expressar amor e orgulho pelos filhos, também pode levantar preocupações em relação ao direito à privacidade.
Sendo assim, quando fala-se sobre direito à privacidade das crianças, abrange todos aqueles relacionados ao indivíduo e sua esfera íntima, esse conjunto de informações pertence ao individuo e com seu exclusivo controle pode decidir as condições em que serão ou não permitidas sua exposição.
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2.4.2 Princípio da liberdade de expressão
O princípio da liberdade de expressão é um dos pilares fundamentais das sociedades democráticas e dos direitos humanos. Pode-se dizer que esse direito surgiu no mundo contemporâneo em 1789, a partir da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, na França. Para a Assembleia Nacional francesa, a liberdade de expressão se traduzia no direito de manifestar livremente opiniões, inclusive sobre assuntos religiosos, bem como na salvaguarda da segurança e resistência à opressão. (FIA, 2021).
Desde então, esse princípio assegura o direito das pessoas de expressarem suas opiniões, ideias, crenças e pensamentos de forma livre, sem censura ou repressão governamental. A liberdade de expressão é essencial para a promoção da diversidade, do debate público, do progresso social e da proteção dos demais direitos individuais.
Apesar disso, a liberdade de expressão deparou-se com um caminho sinuoso ao encontrar a ditadura militar no Brasil, regime instaurado no Brasil em 1º de abril de 1964 e findou até 15 de março de 1985, em que o país esteve sob comando de sucessivos governos militares, o Ato Institucional 5 (AI-5) legalizou descaradamente a censura, levando todas as formas de expressar ideias e manifestações a serem vetadas, foram dez anos marcados por censura, tortura, prisões, repressão e mortes. (Domingues, 2015)10.
O princípio só foi de fato restaurado em 1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil. A liberdade de expressão é atualmente assegurada constitucionalmente, como observa-se:
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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. (BRASIL, 1988)1.
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Embora a liberdade de expressão seja um direito fundamental, ela não é absoluta e pode ser sujeita a certas restrições legítimas. Alguns exemplos de limitações incluem a proibição de discurso de ódio, incitação à violência, calúnia e difamação, ameaças à segurança nacional e outros tipos de expressão que possam violar direitos de terceiros.
Assim, é importante encontrar um equilíbrio entre a proteção da liberdade de expressão e a garantia de que o discurso não seja utilizado para prejudicar, discriminar ou propagar informações falsas que possam causar danos a outras pessoas ou à sociedade como um todo.
Sobre isso, o autor discorre:
A liberdade de expressão, por exemplo, é um princípio que deve ser realizado na maior medida possível, segundo as condições fáticas e jurídicas presentes. Ou seja, a liberdade de poder se exprimir deve ser otimizada. Diante disso, é fácil perceber que essa otimização pode colidir com a otimização do direito à privacidade, que também é um princípio. Há, portanto, poucos indícios de que a colisão aqui seja apenas aparente. Ora, nesse sentido, todas as colisões são aparentes, exceção feita às irresolúveis. O problema em questão, antigo no âmbito da filosofia moral, é mais complexo e merece ser discutido com um pouco mais de detalhe. Trata-se da distinção entre deveres prima facie e deveres definitivos. (SILVA, 2003, p. 618)34.
Ao tratar da liberdade dos pais, de exporem suas vidas em redes sociais, nota-se que essa liberdade enquadra em uma garantia fundamental, no entanto, se com essa forma de se expressar, for exposta ainda a vida de seus filhos menores, embarca-se em uma questão muito maior, pois pode haver a colisão de princípios.
Com a colisão de princípios fundamentais, segundo a Maria Berenice Dias (2015, p. 41) 7 “Não cabe a simples anulação de um princípio para a total observância do outro. Os princípios se harmonizam na feliz expressão diálogo das fontes.”.
Desse modo, apesar de ambos os direitos se enquadrarem como Direitos Fundamentais, terem a proteção constitucional, não há expressamente a supremacia de um sobre outro, sendo essa é uma questão complexa e delicada. Para resolver esse tipo de colisão, é necessário encontrar um equilíbrio adequado entre os dois direitos, levando em consideração as circunstâncias específicas de cada caso, considerando o contexto, o conteúdo expresso e o impacto na privacidade dos indivíduos.
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3. O conflito
O capítulo anterior buscou apresentar o fenômeno oversharenting, bem como expor os princípios relacionados a prática, discorrendo ainda sobre direitos da personalidade das crianças, em especial o direito à imagem e o direito à privacidade, além de apresentar brevemente o poder familiar. Por sua vez, o presente capítulo tem como intuito a discussão acerca do conflito entre princípios e a relação entre a liberdade de expressão dos pais e a possível violação aos direitos da personalidade dos filhos, discorrendo ainda sobre a proteção de dados dos menores, finalizando com um comparativo com foco legislativo entre Brasil e França, sobre o tema.
Ao analisar o fato de adultos compartilharem suas vidas, ideias e fotos em redes sociais, torna-se simples entender que essa prática, nada mais é do que uma forma de exercerem um direito fundamental, o da liberdade de expressão. Entretanto, quando abordamos a liberdade dos pais de utilizarem essa forma de expressão, resultando ainda, na exposição das vidas de seus filhos menores, surgem questões de maior complexidade, uma vez que isso pode acarretar conflitos de princípios, como será apresentado no decorrer desse capítulo.
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3.1 A liberdade de expressão dos pais versus o direito à privacidade da criança
A Constituição da República Federativa do Brasil, estabelece como um dos princípios mais significativos para o atual Estado Democrático de Direito brasileiro: garantir o pleno exercício da liberdade de expressão, apresentados em diversos dispositivos. Inicialmente, em seu preâmbulo, deixa explícito que a Carta Mágna foi promulgada com a destinação de assegurar o exercício de alguns direitos exemplificados, dentre eles, a liberdade.
Seguindo, a CRFB/88, em seu artigo 5º, inciso IV, determina ser livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato, e o inciso IX, do mesmo artigo, defende ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação. Logo, o direito à liberdade de expressão é um direito fundamental do indivíduo que abrange a liberdade de pensamento, opinião e ação, por meio de todos os meios disponíveis, sendo essencial para a preservação do Estado Democrático de Direito.
As plataformas digitais, por sua vez, desempenham um papel significativo, como espaços onde os indivíduos podem expressar e divulgar suas opiniões por meio de publicações e compartilhamentos nas diversas redes sociais, podendo exercer assim, sua liberdade de expressão. Dito isso, quando os pais expoem fotos, vídeos e informações sobre seus filhos nas redes sociais, estão exercendo seu direito à liberdade de expressão no ambiente digital, já que estão se manifestando e expressando suas opiniões, utilizando como ferramenta a internet.
No entanto, a jurisprudência brasileira entende que há resguardos quanto ao exercício desse direito. O escritor André de Carvalho Ramos (2014)30, destaca que a liberdade de expressão não é absoluta e deve ser exercida de maneira harmônica, observados os limites explícitos e implícitos previstos na Constituição e nos Tratados de Direitos Humanos. Sendo assim, apesar da liberdade de expressão ser um direito fundamental, ela não possui caráter absoluto, podendo então, sofrer certa limitação, desde que prevista e justificada.
Logo, para que seja realizada a ponderação da liberdade de expressão dos pais, faz-se necessário analisar o direito à privacidade das crianças. Este, trata-se de um direito fundamental, garantido constitucionalmente, disposto no artigo 5º, inciso X da CRFB/88, “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.” (BRASIL, 1988)1.
Já o Código Civil de 2002, traz em seu artigo 21, que: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma” (BRASIL, 2002). Seguindo neste dispositivo, nota-se que há, inclusive, a possibilidade de reparação civil em caso de lesão ao direito à privacidade:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts.186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (BRASIL, 2002).
No entanto, os dispositivos legais não fornecem uma definição objetiva de privacidade, por isso, é interessante recorrer à doutrina e Códigos para nortear sobre esse assunto. Assim, para Schreiber e Konder:
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Entende-se que, nos tempos atuais, o conceito de privacidade não deve corresponder apenas a um dever geral de abstenção refletido no direito de ser deixado só ou na tutela do segredo da vida íntima. Na atual concepção, o direito à privacidade representa o direito de ter o controle sobre a coleta e a utilização dos próprios dados pessoais, assim como de determinar como a sua esfera privada deve ser construída. (SCHREIBER, 2014)33.
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Assim, pode-se dizer que o direito à privacidade, oferece ao seu titular, a possibilidade de impedir que determinados aspectos de suas vidas sejam divulgados, sem seu consentimento, de maneira pública, ou ainda, que sofram interferências indesejadas por parte de terceiros.
Diante disso, sob o contexto do fenômeno Oversharenting, pode-se entender que o público, através das redes sociais, adentra a intimidade, vida privada dos usuários das redes sociais, e quando a exposição envolve menores, abarca o direito à privacidade de crianças, tendo diversas implicações alterando as relações privadas.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, também traz em seus dispositivos quanto a tutela do direito à privacidade respeito e dignidade da pessoa humana, como observa-se:
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Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. (BRASIL, 1990) (grifo nosso)
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Crianças e adolescentes, devido a sua incapacidade e a vulnerabilidade ocupam um local de dependência financeira e psicológica de seus pais ou responsáveis, de forma que estes, passam a ocupar um lugar perigoso, capaz de reduzir os menores, tratando-os apenas como extensões de si.
Ora, torna-se necessário, para que seja realizada a ponderação, analisar brevemente o princípio da prioridade absoluta, que faz parte da Doutrina da Proteção Integral, e “estabelece primazia em favor das crianças e dos adolescentes em todas as esferas de interesse. Seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo, social ou familiar, o interesse infantojuvenil deve preponderar” (MACIEL, 2017, p. 49)23.
Em 1990, com o Decreto nº 99.710, o Brasil promulgou a Convenção sobre os Direitos da Criança 5, que defende:
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Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.
[...]
Os Estados Partes se comprometem a assegurar à criança a proteção e o cuidado que sejam necessários para seu bem-estar, levando em consideração os direitos e deveres de seus pais, tutores ou outras pessoas responsáveis por ela perante a lei e, com essa finalidade, tomarão todas as medidas legislativas e administrativas adequadas. (BRASIL, 1990).
..
A Convenção sobre os Direitos da Criança é um passo importante, pois através deste tratado fundamental, é possível observar o compromisso do Brasil em proteger e promover os direitos das crianças, reconhecendo que elas são sujeitos de direitos e merecem cuidado e proteção especiais para garantir seu bem-estar. Isso implica que os Estados Partes da Convenção devem adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas para garantir que os direitos das crianças sejam respeitados, levando em consideração os direitos e deveres dos pais, tutores ou outras pessoas responsáveis por elas perante a lei.
Por um lado, o direito à liberdade de expressão garante o às pessoas a oportunidade de expressarem suas opiniões, ideias e pensamentos sem censura ou interferência governamental. Esse direito é tido como essencial para promover o pluralismo, a diversidade de ideias e o debate público livre.
No entanto, nem sempre ela é soberana. Como nota-se:
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a liberdade de expressão e de manifestação de pensamento não pode sofrer nenhum tipo de limitação prévia, no tocante à censura de natureza política, ideológica e artística. [...] a inviolabilidade prevista no inciso X do art. 5º, traça os limites tanto para a liberdade de expressão do pensamento como para o direito à informação, vedando-se o atingimento à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas e o discurso de ódio. (MORAES, 2021)27.
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Por outro lado, o direito à privacidade protege a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas contra divulgação ou uso não autorizado de suas informações pessoais. Ele é fundamental para garantir a dignidade e a autonomia individual, ainda mais, se tratando de crianças.
Sobre esse empasse entre direitos fundamentais, o autor discorre:
a “regra de colisão” geral da Constituição é a seguinte: a liberdade de expressão e comunicação pode ser exercida, mas seu titular que violar direitos referentes à intimidade, honra, imagem e vida privada de outros responderá pelos danos causados. É a “liberdade com responsabilização posterior”: não se admite restrição sob qualquer forma (art. 220, caput), mas responsabiliza-se aquele que abusa. (RAMOS, 2014, p. 113)30.
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Isso significa dizer, que apesar da liberdade de expressar o que sente ser um direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988, para seu exercício deve haver cautela, pois, ela deixa de valer quando há violação de princípos, como a proteção da dignidade da pessoa humana. Ainda sobre o tema, observa-se:
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As características da liberdade de expressão construídas pela jurisprudência (direito não absoluto, que deve ser ponderado com o direito à dignidade, à honra e à imagem, além de outros direitos fundamentais) podem ser aplicadas à sua atual dimensão no mundo digital. Com efeito, uma das características essenciais da internet é a viabilização de espaços para que o usuário possa manifestar, de forma imediata, rápida e em padrões nunca antes imaginados, ideias e pensamentos a respeito de si próprio ou de terceiros. (EBERLIN, 2017, p. 258)12.
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E ainda acrescenta:
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[...] é um hábito dos dias atuais e constitui uma das vertentes do direito de se expressar livremente. Os pais, contudo, ao exercerem essa liberdade, expõem, sem o consentimento dos filhos, dados a respeito destes que, no futuro, podem não corresponder ao seu desejo. A liberdade de expressão dos pais, portanto, colide com interesses relativos à privacidade dos filhos, cujo incômodo com a divulgação de dados pessoais pode surgir apenas quando a criança atingir a maturidade. (EBERLIN, 2017, p. 257)12.
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Logo, ao mesmo tempo que o autor destaca a importância da liberdade de expressão no ambiente digital, ressalta também que essa liberdade não é absoluta e deve ser equilibrada com outros direitos fundamentais, como a dignidade, a honra e a imagem das pessoas. No entanto, o autor também observa que o hábito de compartilhar informações sobre os filhos, embora seja um exercício da liberdade de expressão dos pais e até mesmo exercício do Poder Familiar, pode colidir com os interesses de privacidade das crianças.
Em vista disso, Diniz (2012) discorre no sentindo que o poder familiar pode ser definido como conjunto de obrigações e direitos visando o interesse e a proteção dos filhos menores e não emancipados, tanto em relação a pessoa, quanto em relação aos bens desse filho. Ou seja, o exercício desse Poder conferido aos genitores, deve sempre ter como objetivo principal o bem estar do menor.
Assim, quanto a da colisão entre direitos fundamentais encontra uma possível solução com a ponderação, observando no caso concreto, qual dos interesses apresenta maior relevância diante das circunstâncias, para que este prevaleça.
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3.2 Por que sharenting pode ser um problema?
Os pais podem cometer sharenting por várias razões, muitas das quais podem ser motivadas por intenções legítimas e positivas, buscando documentar memórias através das redes sociais ou até para manter vínculos familiares, quando estão separados geográficamente, ou como uma expressão de carinho e orgulho.
Ainda assim, essa exposição exacerbada apresenta alguns problemas e desafios, que muitas vezes, os responsáveis pelo menor, podem não estar plenamente conscientes das implicações legais, e não perceber os riscos e consequências que o compartilhamento excessivo de informações pode representar para seus filhos.
Os dados apontados pelo relatório “Digital 2023” realizado pela instituição We Are Social 40 mostram que:
As pessoas estão, de fato, passando mais tempo nas redes sociais do que nunca. [...] que é o número mais alto que já vimos. E talvez o mais importante, é que este aumento ocorreu apesar do declínio no tempo total gasto na utilização da Internet […]. Na verdade, as redes sociais representam agora a maior parte de sempre do tempo total online, com quase 4 em cada 10 minutos passados online atribuíveis a atividades nas redes sociais. Para efeito de comparação, estes números mostram que o usuário típico da Internet em idade ativa passa agora 30% mais tempo a utilizar as redes sociais todos os dias do que assistindo televisão. (KEMP, 2023) (tradução nossa).
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O aumento significativo no tempo que as pessoas passam nas redes sociais é uma tendência notável e tem implicações importantes em várias áreas, podendo se relacionar com o fenômeno oversharenting, de modo que, fato dos dados apontarem que as pessoas estarem gastando mais tempo do que nunca, nas redes sociais, indica que essas plataformas desempenham um papel central em suas vidas, explicando o grande aumento de exposição de menores na internet, já que este “universo” agora ocupa uma posição de mural da vida real.
De acordo com dados Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, a exposição de crianças e adolescentes na internet, está entre os cinco tipos de violações mais denunciados ao Disque 100, canal de denúncia de violações de direitos humanos, criado para receber denúncias de diversos tipos de abusos e violações, incluindo abuso infantil, violência contra idosos, racismo, homofobia, tráfico de pessoas e outros, facilitando o acesso das pessoas que desejam relatar abusos e violações.
Embora algumas razões para exposição dos menores, realizada pelos responsáveis, possam ser compreensíveis, a privacidade e a segurança das crianças devem ser priorizadas, e os pais devem agir conscientes ao compartilhar informações sobre seus filhos nas redes sociais. É essencial encontrar um equilíbrio entre o desejo de compartilhar momentos especiais e a responsabilidade de proteger os direitos e a segurança dos menores.
Esse compartilhamento se dá de maneira simples, muitas vezes através de fotos que são capazes de expor o local de estudo, as atividades de lazer e o estado de saúde do menor, além de claro, a imagem da criança ou adolescente. Nessa busca por mostrar momentos agradáveis ou compartilhar dificuldades vividas com seus filhos, os pais acabam divulgando na internet aspectos íntimos e delicados da vida das crianças e adolescentes, muitas vezes sem considerar as possíveis repercussões e riscos por trás desse comportamento.
Em 2014, a Pesquisa Nacional sobre Saúde Infantil do CS Mott Children's Hospital, da Universidade de Michigan, realizou um estudo baseado nos benefícios e preocupações relacionados ao compartilhamento de informações de menores de idade nas mídias sociais, a partir da análise de uma amostra de pais de crianças e adolescentes de 0 a 4 (quatro) anos de idade.
Constatou-se a partir do estudo, que a maioria dos pais que utilizam as redes sociais (74%) conhece outro genitor que partilhou excessivamente informações sobre uma criança nas redes sociais. 56% dos pais, confessam que postaram informações sobre seu filho, que poderia gerar constrangimento futuro. Além disso, a maioria diz ter postado informações pessoais que poderiam identificar uma localização da criança (51%).
Alguns dos riscos com essa alta exposição, variam de estigmatização da criança que tem a vida exposta, com base nas informações compartilhadas por seus pais, até violência e exploração infantil. Já do ponto de vista jurídico, o sharenting levanta várias questões e desafios que podem envolver princípios e áreas do direito, como privacidade, proteção de dados, direitos da criança e direito de imagem.
Para mitigar esses problemas, muitos especialistas recomendam que os pais adotem uma abordagem mais cautelosa em relação ao compartilhamento de informações sobre seus filhos, antes da exposição. Isso pode incluir obter consentimento informado da criança, sempre que possível, antes de compartilhar informações sobre ela nas redes sociais, evitar o compartilhamento de informações muito pessoais ou embaraçosas e limitar a visibilidade das postagens para um círculo restrito de amigos e familiares nas redes sociais. Além disso, os pais devem estar cientes dos riscos e perigos da exposição excessiva na internet e educar-se sobre as medidas de segurança online para proteger seus filhos. É importante frisar que a segurança e o bem-estar das crianças devem ser a principal consideração ao compartilhar informações sobre suas vidas online.
Em resumo, embora os pais tenham o direito à liberdade de expressão, é importante que esse direito seja exercido de forma responsável e cuidadosa, levando em conta os interesses e o bem-estar da criança. O equilíbrio entre a liberdade de expressão e a proteção da privacidade e dos direitos das crianças é essencial para garantir um ambiente seguro e respeitoso na era digital.
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3.3 Proteção de dados das crianças: imagem do menor como objeto de monetização.
O século XX caracterizou-se como um período de significativas transformações no Direito Internacional, com avanços como a consagração de direitos humanos. A partir de então, o direito da criança também passa a ser debatido, com objetivo princial de abolir o trabalho infantil. No entanto, a evolução do direito das crianças e adolescentes no Brasil é uma história marcada por avanços significativos apenas nas últimas décadas. “Pode-se dizer, portanto, que a ideia de crianças como detentores de direitos é recente na jurisdição internacional,tendo em vista que a ideia de infância é um conceito moderno” (ROSSI, 2008, p. 47)31.
Em 1927, o Brasil promulgou o Código de Menores, que segundo a Agência Senado (2015) “foi a primeira lei do Brasil dedicada à proteção da infância e da adolescência. [...] foi anulado na década de 70, mas seu artigo que prevê que os menores de 18 anos não podem ser processados criminalmente resistiu à mudança dos tempos.”
Apenas em 1988, com Constituição Federal, crianças e adolescentes voltaram a ser foco de legislações no país, já que a Carta Magna representou um marco importante ao reconhecer a criança como sujeito de direitos e estabelecer a proteção integral como princípio fundamental.
Já em 1990, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma legislação abrangente que estabelece os direitos fundamentais das crianças e adolescentes no Brasil, garantindo a proteção contra a negligência, a exploração, a violência e o abuso, bem como o direito à educação, à saúde, à convivência familiar e comunitária.
Além disso, em 2015, o Brasil aprovou o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016)22, que reconhece a importância dos primeiros anos de vida da criança e estabelece diretrizes para a formulação de políticas públicas voltadas para essa fase, visando promover o desenvolvimento integral das crianças com até 6 (seis) anos de idade, considerando esse período como crucial para o seu crescimento e formação.
O ECA, em seu artigo 3º, atribui às crianças e adolescentes:
todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (BRASIL, 1990).
Ou seja, há proteção legal que assegura as crianças seus direitos fundamentais, no entanto, o mesmo Estatuto acrescenta em seu artigo 6º que,
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Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. (BRASIL, 1990) (grifo nosso)
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Assim, ao mesmo tempo que a referida legislação garante as crianças e adolescentes todos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, ela descreve que as crianças possuem uma “condição peculiar.
Dessa forma, segundo Roberto Rossi (2008)31, reconhecer essa peculiaridade é importante pois coloca as crianças e adolescentes como sujeito de direitos em condições políticas de absoluta prioridade, a condição peculiar tem fundamento no entendimento das crianças como seres humanos em fase de desenvolvimento, assim, a personalidade infantil passa a ter conteúdos distintos dos da personalidade de um adulto, demanda-se então, uma especificação destes direitos, para que a dignidade humana detes cidadãos especiais seja respeitada.
Destaca-se que, de acordo com a autora:
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Os direitos da personalidade são absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis. São absolutos, ou de exclusão, por serem oponíveis erga omnes, por conterem, em si, um dever geral de abstenção. São extrapatrimoniais por serem insuscetíveis de aferição econômica, tanto que, se impossível for a reparação in natura ou a reposição do status quo ante, a indenização pela sua lesão será pelo equivalente. São intransmissíveis, visto não poderem ser transferidos à esfera jurídica de outrem. Nascem e se extinguem ope legis com o seu titular, por serem dele inseparáveis. Deveras ninguém pode usufruir em nome de outra pessoa bens como a vida, a liberdade, a honra etc. São, em regra, indisponíveis, insuscetíveis de disposição [...] (DINIZ, Maria Helena, 2012, p. 135)
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Assim, quando se fala em direito de imagem do menor relacionado com oversharenting, deve-se atentar que existem existem conteúdos que podem ser nocivos, ao deixarem as crianças em situações vulneráveis. Apesar de nocivo, esse excesso de compartilhamento da vida de uma criança, pode ser entendido, socialmente, como o simples exercício do poder familiar.
Em um mundo cada vez mais interligado, os dados pessoais emergiram como uma commodity contemporânea. As informações geradas por meio de plataformas de redes sociais e pela navegação na internet são empregadas para aperfeiçoar experiências mais personalizadas, adaptar conteúdo relacionado à saúde e educação, melhorar serviços sociais e monitorar riscos de saúde, incluindo pandemias.
Há casos, em que a exposição do menor torna-se fonte de renda para a família, substituindo o compartilhamento sentimental, onde a documentação da vida da criança tem o público-alvo aqueles que a possuem em seu convívio, para uma vertente do sharenting cujo objetivo é a monetização dessas publicações com a imagem da criança sendo comercializada (DUARTE, 2020)11. Colocando a criança em uma situação de ainda mais vulnerabilidade.
Observa-se que:
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O conceito de sharenting contempla também aquelas situações em que os pais fazem a gestão da vida digital de seus filhos na internet, criando perfis em nome das crianças em redes sociais e postando continuamente informações sobre sua rotina. Nessa situação, os pais não estão tão somente administrando as suas próprias vidas digitais, mas também criando redes paralelas em nome de seus filhos. (FOLLONE, MELLO, 2020, p.113)18.
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Nesse contexto, a monetização da imagem de uma criança refere-se ao processo de obter lucro por meio da exposição e exploração da imagem, aparência, talento ou identidade de uma criança. Isso pode acontecer de várias maneiras através das redes sociais, com publicidades, parcerias ou merchandising, que é quando a imagem de uma criança é usada para criar produtos relacionados a essa criança, como brinquedos, roupas ou acessórios, que são vendidos para gerar lucro.
A monetização da imagem de uma criança é uma questão sensível e deve ser tratada com cuidado, já que os responsáveis legais da criança geralmente estão envolvidos na tomada de decisões relacionadas à monetização da imagem da criança e devem garantir que os interesses e o bem-estar da criança sejam sempre priorizados, bem como, o direito à própria imagem.
Larissa Manoela (22 anos) é uma atriz e cantora brasileira que se tornou muito conhecida desde a infância devido à sua atuação em programas de televisão e peças de teatro. Seu caso é um exemplo notável e recente de como a monetização da imagem de uma criança pode acontecer no mundo do entretenimento e quantos problemas pode provocar.
A atriz começou sua carreira artística muito jovem, com apenas 08 (oito) anos de idade, ao interpretar a personagem Maria Joaquina na versão brasileira da série de TV "Carrossel". Essa oportunidade de trabalho na televisão a lançou para a fama e, desde então, Larissa Manoela tem continuado a atuar em novelas, filmes e peças de teatro, além de desenvolver uma carreira de cantora e marcas de produtos com sua imagem e nome.
Ao se tornar uma figura pública desde a infância, tem sido envolvida em campanhas publicitárias, muitas delas direcionadas ao público infantil. Ela se tornou embaixadora de várias marcas e produtos, o que é uma forma de monetizar sua imagem como celebridade mirim. Além disso, há um enorme merchandising relacionado à Larissa Manoela, capitalizando sua imagem e popularidade, antes mesmo dela entender ou escolher por isso.
É importante observar que, durante sua carreira precoce, a exploração da imagem de Larissa Manoela estava sujeita a regulamentações brasileiras de trabalho infantil e leis que visam proteger os direitos e o bem-estar das crianças envolvidas na indústria do entretenimento.
Além disso, seus pais aparentemente desempenhavam um papel fundamental na tomada de decisões relacionadas à monetização de sua imagem e na garantia de que seu desenvolvimento saudável e equilibrado. No entanto, recentemente, a atriz ganhou projeção em noticiário nacional ao denunciar o uso inadequado de seu patrimônio pelos pais. Vejamos:
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A ascensão das redes sociais e da monetização da imagem pessoal tornou-se um terreno fértil para a exploração econômica de jovens talentos, muitas vezes sem a devida proteção e supervisão. Celebridades mirins são frequentemente transformadas em marcas, com suas vidas pessoais se tornando um produto para ser comercializado e consumido em massa. Esse contexto levanta questões cruciais sobre a privacidade, o direito à autodeterminação e o papel dos pais na tomada de decisões financeiras em nome dos filhos. (MENEZES, 2023)25.
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Notoriamente, a monetização da imagem pessoal em redes sociais permitiu a exploração econômica de talentos mirins, frequentemente sem proteção adequada. No âmbito jurídico, a dinâmica entre pais e filhos é regulamentada pelo conceito do Poder Familiar, já abarcado anteriormente, que inclui desde o cuidado, a educação e a representação legal dos menores, até mesmo a gestão dos bens dos filhos, uma vez que, embora estes não detenham plena capacidade civil, podem possuir propriedades e gerar renda, como no caso de Larissa Manoela. Entretanto, é importante ressaltar que tal administração não confere aos pais o direito de se apropriarem indevidamente dos ganhos ou propriedades pertencentes aos filhos.
O autor ainda acrescenta que:
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No caso de Larissa Manoela, a suposta criação de uma empresa que concentra a maior parte de seu patrimônio e rendimentos em nome dos pais pode suscitar questões graves de abuso do poder familiar e exploração econômica. A legislação brasileira já reconhece a possibilidade de destituição dos pais da administração dos bens em caso de abuso, e esse mecanismo pode ser acionado para proteger os interesses de pessoas que estejam em situações como a relatada pela atriz. (MENEZES, 2023)25.
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Portanto, nota-se que nos últimos anos houve com avanços significativos na proteção dos direitos das crianças em áreas como combate à exploração sexual infantil, erradicação do trabalho infantil e inclusão de crianças com deficiência. Porém, a nação ainda enfrenta desafios significativos na garantia dos direitos das crianças, que requerem esforços contínuos para garantir que todas as crianças brasileiras desfrutem de seus direitos fundamentais.
3.4 Comparação legislativa entre Brasil e França
Importante, antes de iniciar este tópico, destacar que até a presente data, o conceito de sharenting não estava explicitamente regulamentado por leis específicas em nenhum dos países analisados, França e Brasil. No entanto, essa comparação se deu a partir de um projeto de lei francês que tem por objetivo a proibição aos pais de compartilharem fotos de seus filhos nas redes sociais, sem a permissão das crianças. A proposta “anti-sharenting” está em debate na Câmara Alta do país e trouxe destaque ao tema em todo o mundo.
Este projeto de lei é pioneiro no mundo e foi bem recebido por psicólogos infantis e especialistas em mídia social, Bruno Studer, o político francês por trás do projeto de lei, ressalta, com base em uma investigação realizada pelo Gabinete do Comissário para Crianças e Jovens da Austrália em 2015, que cerca de 50% das fotos compartilhadas inocentemente nas redes sociais acabam em fóruns de abuso sexual infantil (Khatsenkova, 2023).
Segundo o site francês Deutsche Welle (2023), blogueira alemã Toyah Diebel lançou em 2019 o projeto #deinkindauchnicht, traduzido como: seu filho também não, com a ideia de gerar incômodo e trazer reflexões aos pais que praticam sharenting, no sentido de: uma foto sua assim, você jamais postaria. Seu filho também não.
Segundo o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), em 2018 a Comissão da Infância do Governo da Inglaterra publicou um estudo que concluiu que antes mesmo de uma criança completar 13 (treze) anos de idade, sua a foto é compartilhada on-line 1.300 vezes, a partir dessa idade, ela passa a ter permissão legal para criar seu próprio perfil em redes sociais, como exemplo, produtos da Meta, como o Instagram e o WhatsApp.
Além disso, o Conselho Francês de Associações para os Direitos das Crianças (Cofrade), destaca que a Agência da União Europeia para a Cooperação Policial (Europol) e a Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) alertaram já em 2020 para a proliferação de conteúdos de abuso sexual infantil online e a prevalência de auto- conteúdos produzidos pelos próprios jovens ou por aqueles que os rodeiam.
Conforme Khatsenkova (2023) explica, o projeto de lei, inclui disposições para a responsabilização dos pais no que diz respeito ao direito à privacidade de seus filhos, uma vez que esses menores não possuem a capacidade de dar consentimento para a publicação de suas imagens. Além disso, visa a aplicação de análises a pais que são influenciadores digitais e obtêm lucro por meio do compartilhamento das imagens de seus filhos. Nesse contexto, a proposta é que os ganhos resultantes do uso comercial da imagem das crianças sejam depositados em uma conta que a criança terá acesso quando atingir a idade de 16 anos. O projeto também prevê a possibilidade de impor restrições aos pais em casos de compartilhamento excessivo ou prejudicial de imagens, incluindo a eventual exclusão de continuar compartilhando essas imagens.
Segundo a advogada Isabella Paranaguá, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, seção Piauí – IBDFAM-PI:
Deve haver um amparo do Estado sobre as crianças e adolescentes, sob o olhar do direito infantojuvenil aliado ao Direito de Família. Ter a intimidade exposta de forma indiscriminada pela prática do sharenting pode caracterizar violação dos direitos fundamentais da criança ou do adolescente. Assim, cada caso precisa ser analisado individualmente para dar as devidas constatações.
A advogada ainda acrescenta que “apesar do livre planejamento familiar ser um direito constitucional, isso não quer dizer que as crianças e os adolescentes são mera extensão da vida dos seus pais. Portanto, eles não podem gozar de maneira deliberada dos direitos dos filhos” (PARANAGUÁ, 2023).
Para fazer uma comparação legislativa entre a França e o Brasil nesse contexto atual, é necessário considerar as leis de proteção de dados pessoais em vigor em ambos os países. A França possui o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (RGPD) como uma das bases legais para a proteção de dados pessoais, já o Brasil, por sua vez, tem a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)4.
Como principais características, pode-se dizer que o RGPD se aplica não apenas às empresas localizadas na União Europeia (UE), mas também a qualquer empresa em todo o mundo que processe dados pessoais de residentes da UE. Além disso, enfatiza a importância do consentimento informado e claro para o processamento de dados pessoais, o que poderia se aplicar ao oversharenting, pois envolve o compartilhamento de dados de crianças, bem como concede aos titulares de dados (inclusive crianças) o direito de acessar, retificar e excluir seus dados pessoais.
Já a LGPD se aplica a todas as organizações que operam no Brasil ou que processem dados de cidadãos brasileiros, independentemente de sua localização. Além disso, estabelece que o tratamento de dados pessoais deve ser limitado à finalidade para a qual foram coletados, o que poderia ser relevante em casos de oversharenting, e assim como o RGPD, a LGPD4 concede aos titulares de dados, incluindo crianças, direitos como o acesso, retificação e exclusão de seus dados pessoais.
É importante observar que, em ambos os países, a proteção da privacidade e dos dados pessoais é um direito fundamental, e as leis vigentes buscam proteger as informações pessoais das pessoas, independentemente da idade. No entanto, a questão do oversharenting, por envolver crianças e adolescentes, necessita de uma lei específica, não apenas visando a proibição da prática, de maneira extremista, mas sim, regulamentando, para que ela possa ocorrer de maneira saudável, em especial para o menor exposto.
Há 32 anos, em meados de 1991, Nevermind era lançado, o álbum da banda estadunidense de rock Nirvana que rapidamente se tornara um sucesso de vendas. Ele continha em sua capa a foto de um bebê de 04 (quatro) meses, submerso em água, próximo a uma nota de dólar americano.
Segundo a BBC News (2021), Spencer Elden, criança da referida capa, depois de adulto, processou a banda por suposta exploração sexual, também alega que a imagem de nudez constitui pornografia infantil e quanto isso o afetou quando menor, por ter seu corpo exposto de uma forma tão ampla, pois as imagens mostravam a o corpo de Spencer nu e exibiram lascivamente seus genitais.
Elden ainda acrescenta em seu processo que a exposição de seu corpo na capa causou danos emocionais e interferiu em seu desenvolvimento, causando forte abalo emocional. A título de indenização, pede-se US$ 150 mil dólares (cerca de R$ 750 mil reais). Em 2022, o juiz Fernando Olguin, de Los Angeles-EUA, determinou que o homem, Spencer Elden, demorou muito tempo para ingressar com a referida ação, por esse motivo, arquivou a ação judicial contra a banda. (BBC News, 2021).
Apesar deste caso não se enquadrar explicitamente na prática de sharenting, pode-se observar as graves consequências que a exposição de menores pode gerar futuramente, em que uma decisão é capaz de afetar a vida inteira de alguém que ainda nem possui o poder de consentir.
Diante todo o exposto, fica visível a urgência da regulação pelos Estados, da forma como genitores e responsáveis pelas crianças agem diante do ambiente virtual, pois a exposição vai além do exercício saudável do Poder Familiar, e pode ter consequências futuras imprevisíveis e irreparáveis. Dessa forma, a iniciativa da França deve servir de alavanca para que países envolvidos com a causa da proteção infantil também criem suas leis específicas, visto que a tendência é que a sociedade se torne cada vez mais digital.
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4. Estudo de casos
À medida que a internet se tornou uma oportunidade de trabalho viável, oferecendo um potencial de ganhos consideráveis, alguns pais passaram a compartilhar de maneira mais frequente e detalhada – para não dizer invasiva, sobre a vida de seus filhos, vendo nisso um nicho de conteúdo. Nota-se esse fato ao observar descrições de perfis em redes sociais e hashtags, que funcionam como recurso de agrupamento capaz de indentificar grupos ou conteúdos específicos, através do símbolo "#" antes de uma palavra ou expressão, com o objetivo de facilitar a pesquisa pelo assunto com o qual esse símbolo se relaciona, ou seja, palavras-chave associadas a uma informação presente na postagem. (FERREIRA, 2020)17.
Como resultado, percebe-se um aumento considerável na presença de crianças nas redes sociais, mesmo as com menos de 13 anos-idade mínima atual para ter permissão de criar um perfil próprio. Essa presença é facilitada principalmente pela aprovação e influência dos pais, que começam a compartilhar a vida cotidiana de seus filhos por meio de suas próprias redes sociais ou, em cenários cada vez mais comuns, criam perfis para divulgar o dia a dia das crianças, ficando sob responsabilidade e administração dos pais. Alguns perfis são criados antes mesmo da criança nascer, tornando-se um “diário virtual” da criança que está sendo gestada.
Nesse sentido, o autor discorre:
A ideia de sharenting, também, abarca as situações em que os pais fazem a gestão da vida digital de seus filhos na internet, criando perfis em nome das crianças em redes sociais e postando, constantemente, informações sobre sua rotina. É o caso da mãe que, ainda grávida, cria uma conta em uma rede social para o bebê que irá nascer. Tal rede social será alimentada com fotografias, recordações sobre aniversários, primeiros passos, primeiros dias escola, amigos, animais de estimação, relacionamento com familiares e várias outras informações. Nesse caso, os pais não estão tão somente administrando as suas próprias vidas digitais, mas também criando redes paralelas em nome de seus filhos. (EBERLIN, 2017, p. 258)12. (grifo nosso).
Antes desse tipo de perfil se popularizar, a internet contava com blogs e fóruns online, nos quais, mães e pais trocavam experiências, dicas e conhecimento quanto à criação dos pequenos. No entanto, o que se vê atualmente, é crianças frequentemente exibidas por suas realizações, aparência ou habilidades de entretenimento, muitas vezes para uma audiência que inclui inclusive outras crianças, o que leva a conclusão de que a troca entre pais é algo deixado no passado.
Nesse cenário, a autora optou por agregar o presente estudo com quatro casos, sendo que cada um deles possui sua particularidade. O primeiro, Virgínia e as Marias, com destaque a prática do sharenting associada a monetização da imagem da criança, assunto tratado anteriormente, uma vez que a genitora das infantes desse caso é considerada uma das influenciadoras com mais visibilidade no país. O segundo, Sandy, Lucas Lima e Theo, trazendo uma interessante comparação, visto que, apesar dos genitores do menor serem nacionalmente conhecidos pelo trabalho na música, a criança cresceu sem exposição e com raras aparições públicas, por opção dos pais. O terceiro, Melody, cantora com atualmente 16 (dezesseis) de idade, construiu sua fama apesar de ter pais sem fama, com destaque ao sharenting relaxionado com a adultização e monetização da criança por influência dos pais. Por fim, o quarto e útimo caso analisado, traz uma família norteamericana extremamente exposta em todas suas facetas, de grande influência mundial, as jovens Kardashan cresceram em um reality e atualmente seus herdeiros crescem em uma série.
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4.1 Virgínia e as Marias
Virgínia Fonseca é uma influenciadora digital e empresária brasilo-estadunidense, que, aos 24 anos, acumula um impressionante número de seguidores. Sua trajetória começou aos 16 anos, quando ingressou no YouTube, e logo nas primeiras produções conquistou mais de 100 mil inscritos em seu canal.
Atualmente, ela compartilha sua rotina com detalhes em suas redes sociais, estabelecendo uma conexão com seus fãs, criando uma sensação de amizade íntima com todos eles. Esse relacionamento próximo faz com que a maior parte de seus seguidores se sinta profundamente ligada a ela e seja diretamente impactada por tudo o que ela compartilha na internet, inclusive sua rotina com as filhas. (EXTRA, 2023)14
Atualmente, os números de seguidores em seus perfis pessoais são notáveis, contabilizando 44,3 milhões no Instagram, 37,3 milhões no TikTok e 11,5 milhões no YouTube. Além de sua carreira nas redes sociais, Virgínia construiu uma vida ao lado do cantor e empresário, Zé Felipe, filho do renomado cantor sertanejo Leonardo. O casal possui duas filhas encantadoras, Maria Alice, que tem 2 (dois) anos de idade, e Maria Flor, que completou 11 (onze) meses de vida.
Veja:
Figura 1: Virgínia. Fonte: Montagem a partir de imagem coletada no perfil de Virgínia Fonseca no Instagram. Disponível em: https://www.instagram.com/virginia/. Acesso em: 20 set. 2023.
Embora sejam ainda muito jovens, as crianças já têm uma presença ativa no Instagram, com um perfil criado antes mesmo do nascimento de Maria Alice. Esse perfil foi originalmente estabelecido para documentar a gestação da primogenita e foi continuamente atualizado e gerenciado pela mãe. Inicialmente, o perfil levava o nome "mariaalice", mas após o nascimento da caçula, o nome do perfil foi modificado para incluir a presença da jovem herdeira, passando a ser chamado de "mariasbaby".
É relevante destacar que, após o parto da segunda filha, Virgínia também lançou no mercado uma linha de produtos de beleza destinados às crianças. (EXTRA, 2023)14. A linha recebe o mesmo nome dado ao perfil das menores: MARIA’SBABY – by Virgínia Fonseca. A partir do site são comercializados produtos para criança, tais como cosméticos de pele e cabelo, pelúcias e kits que receberam os nomes das pequenas.
Contando com 7,7 milhões de seguidores, o perfil do Instagram das Marias além publicar fotos e compartilhar momentos das crianças, possui link próprio para divulgação da marca, como observa-se: