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ISSN: 2595-8402

Journal DOI: 10.61411/rsc31879

REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
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ARTIGO ORIGINAL

Depoimento especial nos crimes sexuais contra menores e impossibilidade do exame cruzado: uma proposta de compatibilização dos princípios da proteção integral da criança e do adolescente com o direito ao contraditório

Lucas Andreucci da Veiga1

 

Como Citar:

DA VEIGA, Lucas Andreucci. Depoimento especial nos crimes sexuais contra menores e impossibilidade do exame cruzado: uma proposta de compatibilização dos princípios da proteção integral da criança e do adolescente com o direito ao contraditório.

Revista Sociedade Científica, vol.7, n. 1, p.3530-3545, 2024.

https://doi.org/10.61411/rsc202470417

 

DOI: 10.61411/rsc202470417

 

Área do conhecimento: Direito.

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Sub-área: Direito Processual Penal.

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Palavras-chaves: depoimento especial; revitimização; standards probatórios; valoração.

 

Publicado: 15 de agosto de 2024.

Resumo

A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente inauguraram uma nova visão sobre os menores enquanto titulares de direitos, sob a ideia de proteção integral. Nesse contexto, a Lei 13.431/2017 instituiu o depoimento especial como meio de prova que minimizasse os efeitos sobre criança ou adolescente convocado a se manifestar sobre violência física, psicológica, sexual ou institucional testemunhada ou sofrida. Em todos os casos se busca salvaguardar os interesses desses indivíduos em formação contra a revitimização. Especificamente quanto àquelas vitimadas por condutas sexuais penalmente típicas, a preocupação se volta a evitar que, com a colheita da versão no âmbito da persecução penal, se promova uma nova violência, agora institucional. No entanto, tal necessária proteção acaba limitando o contraditório para o acusado, o que tem interferência na valoração da prova. Há, em conflito, dois princípios: a proteção integral da criança e do adolescente em oposição ao direito ao contraditório. Mediante pesquisa bibliográfica qualitativa e análise de fontes normativas, busca-se uma solução interpretativa que permita manter a proteção ao menor contra a revitimização, ao mesmo tempo que não se prejudica o direito do acusado ao contraditório. É dentro dessa perspectiva, do valor que o depoimento especial terá para a emissão de um juízo de fato, que se coloca a concepção de standards probatórios, propondo-se, ao final, o alcance valorativo do resultado probatório obtido com o depoimento especial.

 

 

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Special testimony in sexual crimes against minors and the impossibility of cross-examination: a proposal to make the principles of full protection of children and adolescents compatible with the right to adversarial proceedings.

Abstract

The Federal Constitution and the Child and Adolescent Statute inaugurated a new vision of minors as holders of rights, under the idea of ​​full protection. In this context, law 13,431/2017 established special testimony as a means of proof that minimized the effects on children or adolescents called upon to speak out about physical, psychological, sexual or institutional violence witnessed or suffered. In all cases, we seek to safeguard the interests of these individuals in formation against revictimization Specifically regarding those victimized by criminally typical sexual conduct, the concern is to avoid that, with the collection of the version within the scope of criminal prosecution, new violence, now institutional, is promoted. However, this necessary protection ends up limiting the adversarial process for the accused, which interferes with the assessment of the evidence. There are two conflicting principles: the whole protection of children and adolescents as opposed to the right to an adversarial process. Through qualitative bibliographical research and analysis of normative sources, an interpretative solution is sought that allows the protection of minors against revictimization to be maintained, while at the same time not harming the accused's right to adversarial proceedings. It is within this perspective, of the value that the special testimony will have for the issuance of a judgment of fact, that the conception of evidentiary standards is placed, proposing, in the end, the evaluative scope of the evidentiary result obtained with the special testimony

Keywords: special testimony; revictimization; evidentiary standards; valuation.

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1.Introdução

É indiscutível que uma das grandes conquistas da Carta de 1988 foi a elevação da proteção da criança e do adolescente do sistema infraconstitucional para o plano constitucional [1], atribuindo, no artigo 227, o dever de proteção não só à família, mas também ao Estado. [2] A diretriz supralegal inspirou a elaboração e adequação de leis e códigos para inscrever a ideia, estampada já no artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, de proteção integral daqueles seres humanos que se encontram em processo de formação e desenvolvimento, assegurando o exercício de diversos direitos inscritos no ordenamento jurídico dos quais são efetivamente titulares.

A ideia de proteção integral impõe prestigiar “a proteção aos interesses do menor sobre qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado.” [3] A lei 10.010/2009 complementou prescrições do Estatuto da Criança e do Adolescente, inserindo no diploma diversos dispositivos, evocando uma miríade de princípios ligados à proteção dos menores. Destaca-se aqui a ideia de “interesse superior da criança e do adolescente”, assim definido no novel inciso IV do parágrafo único do artigo 100:

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“A intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”.

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Isto significa que não pode a Administração, sob uma perspectiva de dever de prestação positiva, alegar insuficiência de recursos para não conferir a assistência mínima à uma criança ou adolescente, tampouco alegarem os pais miserabilidade para entregar um filho ao trabalho infantil. Sob o viés negativo, infere-se a proibição ao Estado de ser ele próprio o vetor da lesão ao interesse do menor.

Essa proteção evidencia também se quando se tem uma situação de violência experienciada por um infante. A primeira providência, e a mais importante, é o acolhimento, uma prestação positiva. Em um segundo momento advém a necessidade de apuração da responsabilidade do potencial ofensor, providência a demandar instauração do devido processo legal, exsurgindo o primeiro problema: o processo penal brasileiro, historicamente, não concebe a vítima como um sujeito de direitos.

Tradicionalmente o legislador e o sistema de justiça criminal voltam sua atenção à proteção das garantias processuais do acusado, relegando o ofendido a um plano secundário [4]. A pouca preocupação com a vítima levava, e ainda leva, muitas vezes, à perpetuação da violência. A primeira, oriunda do fato criminal (vitimização primária); a sequente, perpetrada no curso da apuração daquele “pelas instâncias formais de controle social que constituem o sistema de justiça” [5] (vitimização secundária).

Na especificidade dos delitos sexuais, frequentemente a escuta da vítima é a prova necessária à plena elucidação dos fatos levados a juízo, principalmente quando o evento ocorre na clandestinidade. E quando se está diante de um menor, juridicamente vulnerável e faticamente vulnerado, a situação fica ainda mais delicada. Ordinariamente, inquiria-se à maneira como se faz com os adultos, mediante o exame cruzado, valendo-se os atores do sistema de justiça criminal da linguagem típica das lides forenses. Considerando a natureza dos fatos, invariavelmente as indagações se voltavam a perguntas diretas sobre a sexualidade pretérita do ofendido e os eventos em si, tornando ainda mais vexatório à vítima a exposição da sua intimidade, já tão violada.

Foi nesse contexto, constatada a ausência de previsão legal de mecanismos para proteger os infantes levados a se manifestar em juízo a respeito de atos sexuais ilícitos contra si perpetrados ou por si presenciados, que adveio a lei 13.431/2017. Expôs-se na justificativa do projeto de lei apresentado pela Deputada Federal Maria do Rosário justamente os pontos alhures destacados: proteção integral dos direitos das crianças e adolescentes face à lacuna legislativa, denotando preocupação com recorrência da vitimização secundária na inquirição desde as fases iniciais da persecução até o depoimento final em juízo.

Um dos pressupostos do depoimento especial é evitar o contato do menor não só com o apontado ofensor, mas também com os participantes do sistema de justiça criminal, à exceção de um psicólogo. Funciona este como uma espécie de mediador, buscando de forma menos invasiva obter respostas às dúvidas que permeiam o fato antijurídico posto sob escrutínio da Justiça.

Mas, em lado antagônico ao da vítima, há o imputado. E este também é titular de direitos, dos quais se destaca o devido processo legal, consubstanciado na ampla defesa e no contraditório, efetivado este em audiência pela possibilidade de a defesa técnica proceder ao exame cruzado da vítima e das testemunhas. E isto é incompatível com a finalidade do depoimento especial.

O ponto de partida da investigação implica na aceitação da coexistência do depoimento especial com a preservação do direito ao contraditório pelo acusado, buscando-se compatibilizar ambos. Ou seja: garantir um direito inerente à proteção integral dos menores sem que isso implique tornar mais onerosa a resistência do arguido.

Procedeu-se assim análise qualitativa da matéria, buscando-se, pelo emprego do método dedutivo no cotejamento das fontes primárias (leis) com as secundárias (doutrina), possível solução ao impasse. Consultou-se sobretudo a literatura impressa, constitutiva de doutrina específica sobre a proteção integral da criança e do adolescente e princípios jurídicos, com destaque aos de índole processual penal. Avançou-se na apreciação dos textos legais e comentários científicos sobres seus dispositivos, identificando-se sua compatibilização com o arcabouço principiológico no atual cenário do ordenamento jurídico brasileiro. A conclusão final deriva da interpretação sistemática da revisão bibliográfica, conduzindo a uma possível superação da colisão de princípios.

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2.Os princípios constitucionais em colisão

O sistema jurídico é composto por uma interação dialógico entre princípios e regras, cada qual com características particulares: aqueles são dotados de maior grau de generalização, estas, mais concretas, permitem aplicação direta. Ademais, “os princípios são standards juridicamente vinculantes, radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na ideia de direito (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com conteúdo meramente funcional.” [6]

Nesse sentido, princípio é “regra matriz de um sistema, da qual brotam as demais normas, e serve para dar uniformidade ao conjunto.” [7] E cumprindo tal função orientativa, os princípios se irradiam por todo o sistema, servindo inclusive à interpretação das regras no caso concreto, o que nem sempre é tarefa simples, visto que, ao se apreciar a forma de um determinado ato processual, o arcabouço principiológico pode indicar comandos gerais antagônicos. Haverá então o que se denomina colisão de princípios.

Essa aparente incompatibilidade, a ser solucionada pelo julgador, não se resolve pela regra de exclusão, um vale e o outro não, mas pela via da ponderação, porventura um prevalecendo sobre o outro no caso concreto, mas jamais o eliminando. Um primeiro elemento a ser observado é a posição no sistema normativo. Se dois princípios defluem de um mesmo texto legal, ambos possuem o mesmo patamar hierárquico. Se assim não for, prevalece aquele emanado da Constituição Federal, partindo daí a verificação da posição de cada qual na pirâmide normativa concebida por Kelsen.

Tanto a proteção integral da criança, prevista no artigo 227 da Constituição Federal (CF/88), como o direito ao contraditório insculpido no artigo 5º, LV, CF/88, possuem dimensão constitucional. Não há, pois, hierarquia entre ambos, relegando-se o juízo de ponderação ao caso concreto. Orientam o sistema infraconstitucional, erigindo-se regras a partir de suas prescrições. Defluem, ademais, do metaprincípio da dignidade da pessoa humana.

De um lado, a proteção integral do menor levou à promulgação da lei 13.431/2017, prevendo o depoimento especial do menor, o que veda sua arguição direta pelo representante processual do acusado; de outro, alguns anos antes, a lei 11.690/2008 alterou o artigo 212 CPP/41, modificando a sistemática das inquirições em juízo e estabelecendo o cross examination como meio de se contraditar a fonte pessoal de prova.

Eis o cerne da investigação: evidenciado o conflito principiológico na contraposição de regras procedimentais antagônicas, visto que cada uma visa preservar um valor erigido pela Constituição Federal de 1988, como fundamental, há de se buscar uma solução apta a compatibilizar a proteção integral da criança e do adolescente sem que isso implique, pela mitigação do contraditório, no sacrifício da miríade de direitos ínsitos à condição de acusado. Em outros termos, pode-se colocar a questão enquanto proposição dilemática sob o viés da proporcionalidade: “[h]á necessidade de se observar que a contraposição entre os bens jurídicos envolvidos, de um lado a liberdade, restringida pela pena; de outro, o interesse tutelado pela norma, deve manter coerência com a hierarquia constitucional de valores.” [8]

A dimensão da proteção integral da criança e do adolescente (bem jurídico protegido) já foi enfrentada na introdução. Para escorreitamente apreciar sua anteposição ao contraditório (que tem como finalidade a proteção do bem jurídico e a liberdade do imputado), necessário fixar alguns pontos.

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3.O contraditório na formação da prova

O devido processo legal, princípio reitor da persecução penal, tem assento constitucional. Sob a perspectiva do imputado, exibe duas facetas: direito à ampla defesa e ao contraditório, o primeiro exclusivo do acusado e o remanescente titularizado por ambas as partes. [9] Interessa, aqui, o contraditório na formação da prova, a informação e a reação, a atividade dialética desenvolvida entre as partes sobre o elemento de cognoscibilidade, cujo produto (prova) será objeto de valoração pelo magistrado. [10]

A palavra prova é plurívoca. Não obstante, destacam-se três significados, indistintamente empregados: (I) atividade probatória; (II) meio de prova; (III) resultado probatório. [11] A atividade probatória é praticada pelas partes, segundo as diretrizes legais, observando-se os meios de prova permitidos, como a prova oral. Disso advém o resultado probatório, a ser valorado pelo juiz.

O contraditório se insere como um requisito ínsito à inquirição (atividade probatória) das fontes pessoais de prova ouvidas em juízo (meio de prova), sendo as palavras capturadas no ato (resultado probatório) destinadas à formação da convicção do julgador (valoração do resultado probatório).

Não por outra razão que o CPP/41 inscreve em seu artigo 155:

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“[o] juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial”.

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Excepciona, sim, as provas pré-constituídas, desde que sobre elas se permita a realização do contraditório diferido. Nesse sentido, “pressuposto para que algo seja considerado prova é a sua submissão ao contraditório.” [12]

Quanto às fontes pessoais de prova, independentemente da sua qualificação jurídica (testemunha, informante, ofendido, colaborador, acusado, etc.), extraem-se as informações pelo seu exame cruzado, constituindo este método dialético a efetivação do contraditório.

O próprio CPP/41, a despeito da existência de contraditório na perquirição das fontes pessoais de prova, não confere igual valor a todas as declarações obtidas pela confrontação. E o primeiro fator distintivo é a posição processual ocupada. O acusado possui interesse ínsito, sendo natural sua intenção de não ser punido, desobrigando-se explicitamente do dever de falar e implicitamente subtraindo-se lhe o compromisso com a verdade, conforme dispõe o artigo 186 CPP/41. No lado oposto, segundo o artigo 201 CPP/41, as declarações do ofendido tampouco são tomadas sob compromisso, isto significando que o conteúdo de suas declarações há de ser valorado com ressalva.

Além disso, a lei aponta personagens que, por implicações no plano psicológico, não estão submetidas ao compromisso de dizer a verdade, quais sejam, os menores de quatorze anos e aqueles portadores de transtorno mental, na previsão do artigo 208 CPP/41. Nesse mesmo sentido, à luz do artigo 206 CPP/41, considerar-se-ão informantes as pessoas cujo depoimento pode ser legalmente dispensado ou que, na linha do artigo 214 CPP/41, por circunstâncias objetivas ou liames subjetivos, possam ter sua imparcialidade afetada, como o caso dos réus colaboradores.

O compromisso, terminologia legal do codex, deve ser compreendido não enquanto inafastável formalidade, mas pela lógica subjacente, como decorrência do dever de depor, do qual, regra geral, são desobrigados os informantes. Isto implica “o dever de dizer a verdade; afinal a Justiça não deve ser palco de manifestações inconsequentes.” [13] É notar que aqueles desprovidos do dever de depor o são justamente pelo menor grau de confiabilidade de suas declarações. Não obstante, são todos arguidos mediante exame cruzado, efetivando-se sim o contraditório pleno, conquanto a resultante probatória deva se revestir de diminuto valor.

Situação diferente ocorre no depoimento especial. Neste se obsta o exame cruzado, enfraquecendo-se o contraditório na formação da prova. A razão da limitação da defesa tem sua nobre razão de ser. Mas há consequências jurídicas da opção.

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4.Standards de prova e o valor probatório do depoimento especial

Não se descura que o princípio da prova legal (ou tarifada), pelo qual se atribuía aprioristicamente um valor a determinada prova, foi sucedido pelo livre convencimento: “[o] julgador não está mais vinculado a regras abstratas: deve determinar o valor probatório de cada meio de prova específico mediante uma apreciação livre e discricionária.” [14]

Isto não significa que o magistrado atribua igual valor a todo e qualquer elemento produzido no curso da persecução penal, mas que deve fundamentar o porquê da preponderância de um ou alguns sobre os remanescentes.

Especificamente quanto à declaração da pessoa ofendida, “no plano material está contaminada (pois faz parte do fato criminoso) e, no processual, não presta compromisso de dizer a verdade (também não pratica o delito de falso testemunho), [sendo] natural que a palavra da vítima tenha menor valor probatório.” [15] Mas pode o julgador, dentre o acervo coligido, racionalmente decidir com base naqueles elementos que conduzam a um grau mais elevado de probabilidade de que os fatos tenham ocorrido de uma maneira, inclusive a versão do ofendido, motivando as razões de seu convencimento na decisão. Pela lógica do livre convencimento motivado, inexiste hierarquia de tal prova perante as demais, a despeito da menor dose de segurança de que a palavra da vítima corresponda à verdade. Gera-se, de um lado, potencial de suspeita quanto a se ter atingido uma decisão justa; de outra parte, o total desprestígio ao resultado probatório poderia favorecer a impunidade.

É da conjuminação dessas noções, de livre convencimento do magistrado no contexto do esquema de decisão com a necessidade de motivar a opção por determinada parcela do acervo como justificadora, que exsurge o socorro aos denominados standards probatórios como critérios racionais para valoração da prova, tendente ao atingimento de uma decisão justa. Em outras palavras, há de se definir qual resultado probatório é dotado, isolada ou conjuntamente, de um elevado grau de confiabilidade para elevar a probabilidade de que a imputação seja considerada verdadeira. Afinal, “a definição dos standards probatórios no processo penal tem por objetivo distribuir os erros de forma a favorecer sistematicamente a posição do acusado.” [16], enquanto decorrência de uma escolha axiológica consubstanciada na presunção de inocência.

O próprio Código de Processo Penal (CPP/41) indica isto ao prescrever diversas formas de absolvição em seu artigo 386:

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“IV- Estar provado que o réu não concorreu para a infração penal;

V- não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal;

[...]

VII – não existir prova suficiente para a condenação.”

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Enquanto o primeiro constituiria altíssimo grau de certeza quanto à negativa de autoria, os últimos são traduzíveis como níveis de insuficiência probatória para corroborar a imputação deduzida pelo Ministério Público. Em outros termos, há um indicativo de ao menos dois níveis em que não se atinge um standard probatório permissivo à prolação de um édito condenatório.

Dê-se um passo para trás. O objetivo do processo penal é a reconstrução histórica do fato juridicamente relevante. Neste âmbito é preciso fixar que realidade e verdade, não são sinônimas. Realidade “é fruto da nossa experiência, a realidade é o presente e esta é a sua realidade”, enquanto verdade “cumpre a função de um indicador epistêmico e serve ao propósito de distinguir [...] um tipo de processo baseado na pesquisa e demonstração dos fatos penalmente relevantes, sob a inspiração de limites éticos.” [17] Assim, “o Standard Probatório precisa ser alcançado para que dada hipótese acusatória seja tomada como suficientemente provada (considerada juridicamente verdadeira).” [18]

Há, explicitou-se, ressalvas previstas no próprio CPP/41 quanto ao nível de confiabilidade do resultado probatório obtido a partir de determinadas fontes pessoais de prova. São fatores pré-existentes à tomada de depoimentos redutores da respectiva confiabilidade:

  1. Relação direta com o fato (ofendido e acusado);

  2. Vínculo objetivo ou subjetivo com uma das partes;

  3. Circunstância pessoal, como idade ou nível de discernimento.

A despeito de tais condicionantes, permite-se o exame cruzado. O menor grau de confiabilidade não decorre dos limites da atividade probatória, mas da própria fonte de prova.

Especificamente quanto ao depoimento especial, além de já vir acompanhado de ao menos uma das elencadas ressalvas prévias quanto à fonte de prova, não se concretizou em efetivo contraditório na formação da prova, pois ausente o exame cruzado. Mesmo as perguntas formuladas pelas partes são repassadas ao auxiliar do juízo responsável pela mediação entre elas e o ofendido, podendo aquele as reformular livremente. Perceba-se que no processo penal, quando a condenação se estrutura nas declarações prestadas pela vítima menor, o standard deveria ser mais, e não menos rigoroso.

A mitigação da possibilidade do contraditório no depoimento especial, firmada na legítima proteção integral da criança e do adolescente, é uma dessas situações dilemáticas em que se sacrifica um princípio para salvaguardar outro, limitando-se aquele. Embora absolutamente legítimo, isto tem consequências. Na medida em que a prova não pode ser adequadamente contraditada, mediante o cross examination, se antepõem série de ressalvas quando da sua valoração.

Assim, de um lado, se o princípio do contraditório foi mitigado na colisão havida com a proteção integral da criança e do adolescente, de outro haverá compensação mediante uma elevação do standard probatório, conferindo menor dose de crédito na valoração do resultado do ato processual, visto que as declarações do ofendido, pela ausência de contradição e pelo interesse discursivo inerente do enunciador, possuem menor grau de confiabilidade.

Em casos tais, a palavra da vítima, além de ser harmônica, para ser considerada juridicamente verdadeira, deve ser corroborada. E isto vale inclusive quando não exista – e não poderia existir, prova materiais do fato, a exemplo da conduta que não deixa vestígios, ou prova direta, como a observação de uma testemunha. Neste contexto, uma vez comprovados “os elementos circunstanciais passíveis de serem provados e que, se somados, mostrem-se premissas fáticas suficientes para se inferir a ocorrência do crime sem saltos lógicos ou presunções de veracidade”, [19] ​​ pode o julgador entender como verdadeira a palavra da vítima, pois superado o standard de prova pela existência de elementos de corroboração e conferido o aceitável grau de probabilidade da ocorrência do fato criminoso que sua versão, isoladamente, não permitiria. Acresça-se ser imprescindível que os elementos de corroboração devem ser suscetíveis de contraditório, até porque a fonte pessoal de prova não o foi plenamente.

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5.Considerações finais

O ofendido, no âmbito do processo penal, assumiu a condição de titular de direitos que historicamente se lhe negava. Como consectário desse novo status, além de possuir participação mais ativa no curso da instrução, implementaram-se medidas de proteção, sobretudo voltadas a evitar a sua revitimização.

No caso dos menores, sobretudo potenciais vítimas de delitos sexuais, o cuidado é ainda maior. Limita-se a quantidade de vezes que deverão se pronunciar sobre o fato. Al lado, a forma como se deve arguí-los, mediante depoimento especial, prestigia o princípio da proteção integral constitucionalmente consagrado.

Sob a perspectiva do acusado, o resguardo que cerca o ofendido acaba por limitar o seu direito ao contraditório, também com assento constitucional.

Essa colisão de princípios, solvida pela ponderação, não afasta a legalidade da prova advinda do depoimento especial, conquanto mitigado o contraditório, mas, de outro lado, o resultado de tal prova, ao ser submetido a valoração pelo julgador, possui menor dose de confiabilidade pela ausência de submissão da fonte pessoal ao exame cruzado.

Assim, a palavra da vítima colhida sob a forma de depoimento especial não é apta, por si, a qualquer juízo condenatório. Além das ressalvas legais de comprometimento em vistas da condição de ofendido e menoridade, a impossibilidade de arguição direta pelo representante processual da parte contrária mitiga o contraditório, invocando compensação para não prejudicar direito também fundamental do imputado.

É nesse ponto que a perspectiva de standard probatório assume relevância. Ao reconhecer a limitação ao contraditório na formação da prova, impede-se que a declaração da vítima menor sirva, isoladamente, à motivação de um juízo condenatório, mesmo que coerente e harmônico o relato. A mera ausência de contradições ou paradoxos não confere higidez ou maior valia a tal prova oral.

Reconhece-se, portanto, que a versão da vítima arguida em depoimento especial não é suficiente, uma vez que não se permitiu efetivo contraditório pela ausência do exame cruzado. É este o sacrifício, a elevação do standard probatório, exigível para se garantir a proteção integral do menor quando da tomada de suas declarações.

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6.Biografia

Lucas Andreucci da Veiga. Doutorando em Processo Penal na PUC-SP, Mestre em Direito Penal pela USP. Autor de diversos artigos científicos. Advogado Criminal.

https://orcid.org/0000-0002-0674-5658

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7.Declaração de direitos

O autor declara ser detentor dos direitos autorais da presente obra, que o artigo não foi publicado anteriormente e que não está sendo considerado por outra(o) Revista/Journal. Declara que as imagens e textos publicados são de responsabilidade do autor, e não possuem direitos autorais reservados a terceiros. Textos e/ou imagens de terceiros são devidamente citados ou devidamente autorizados com concessão de direitos para publicação quando necessário. Declara respeitar os direitos de terceiros e de Instituições públicas e privadas. Declara não cometer plágio ou auto plágio e não ter considerado/gerado conteúdos falsos e que a obra é original e de responsabilidade dos autores.

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PUC-SP, São Paulo, Brasil. lucasandreuccidaveiga@gmail.com


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