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Scientific Society Journal  ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​​​ 

ISSN: 2595-8402

Journal DOI: 10.61411/rsc31879

REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
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ARTIGO ORIGINAL

Internações hospitalares decorrentes de transtornos mentais e comportamentais na rede de saúde pública no município de Porto Velho-ro (2019-2023)

Leila Matos da Silva Jacob1; Isabela Matos Augusto Jacob2; Vanessa Oliveira dos Reis3

 

Como Citar:

JACOB, Leila Matos da Silva.; JACOB, Isabela Matos Augusto; REIS, Vanessa Oliveira. Internações Hospitalares Decorrentes de Transtornos Mentais e Comportamentais na Rede de Saúde Pública no Município de Porto Velho-RO (2019-2023). Revista Sociedade Científica, vol.7, n. 1, p.3683-3711, 2024.

https://doi.org/10.61411/rsc202471817

 

DOI: 10.61411/rsc202471817

 

Área do conhecimento: Psicologia.

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Palavras-chaves: DATASUS; Saúde Mental; Pandemia; Internações hospitalares.

 

Publicado: 20 de agosto de 2024.

Resumo

Este estudo reúne dados epidemiológicos sobre internações hospitalares relacionadas a transtornos mentais e comportamentais em Porto Velho-RO, no período de 2019 a 2023. Reconhecendo a crescente importância da saúde mental, especialmente durante a pandemia por COVID-19, buscou-se analisar o impacto do contexto pandêmico nessas internações. Trata-se de pesquisa de natureza quantitativa, empregando-se uma metodologia de estudo agregado observacional longitudinal retrospectivo. Os dados foram coletados do DATASUS, utilizando-se filtros específicos para casos de internação hospitalar, conforme o CID-10, Capítulo V - Transtornos Mentais e Comportamentais. A busca e o processamento dos dados foram realizados por meio dos softwares TabNet (DATASUS) e Excel (Microsoft), respectivamente. Os resultados evidenciam que o risco relativo demonstrou maior probabilidade de internações durante a pandemia, agravado pelo isolamento social. Homens têm maior propensão à internação na adolescência e na vida adulta jovem. Além disso, há uma preocupação especial com a população jovem, destacando-se a urgência de intervenções, desde a infância, para prevenir o agravamento dos transtornos mentais. A predominância de internações clínicas ressalta a importância dos hospitais como locais de acolhimento, com ênfase na necessidade de abordagens integradas, que incluam suporte psicossocial e prevenção precoce, a fim de mitigar os impactos na saúde mental da população. Espera-se que este estudo possa oferecer insights valiosos sobre a magnitude e tendências das internações por transtornos mentais na região, auxiliando no planejamento e implementação de políticas de saúde mental mais eficazes.

 

 

1.Introdução

​​ A preocupação acerca de transtornos mentais e comportamentais no Brasil vem de uma conquista recente da política de saúde mental, por meio de uma reforma psiquiátrica iniciada pelo Movimento em Saúde Mental (MTSM), no final da década de 70, impulsionado por trabalhadores da área, visando à reforma da assistência psiquiátrica no país (Coelho; Parente, 8). ​​ Inicialmente o Movimento ficou marcado por características totalmente excludentes daqueles tidos como “loucos” pela sociedade, deixando-os marginalizados dos programas de saúde. Além disso, esse processo foi marcado pela assistência unicamente à doença, esquecendo-se, assim, de compreender o paciente em sua totalidade (Freitas, 15).

Frente aos avanços dessa reforma ao longo dos anos, o Brasil obteve também progressos no aparato legal e na estruturação de serviços psicossociais fundamentais na materialização dos direitos de pacientes psiquiátricos e na introdução direta desses pacientes nos programas de saúde. Assim, em 2011, o Ministério da Saúde (MS) instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que incluiu a prevenção, promoção e reabilitação nos seus vários níveis de complexidade da Atenção à Saúde Primária à Alta. Com isso, foram integrados os seguintes componentes: atenção primária, atenção psicossocial especializada, atenção de urgência e emergência, atenção hospitalar e estratégias de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial (Brasil, 6).

Sem dúvida, dentre esses componentes, os Centros de Atenção Psicossocial Especializada (CAPS) se destacam como a principal porta de entrada, acolhimento e direcionamento de pacientes psiquiátricos. Esses Centros são serviços substitutivos ao modelo de internação asilar, em regime de atendimento ambulatorial o individuo com transtorno mental grave e persistente, antes estigmatizadas como “loucos” e, na modernidade, denominados “doentes mentais” (Nery et al., 26).

No presente estudo, destaca-se a atenção hospitalar, que oferece internações para o tratamento de casos graves de transtornos mentais, segundo o Capítulo V - Transtornos Mentais e Comportamentais da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10) de 1989. Essa caracterização é útil tanto para o conhecimento epidemiológico quanto para o planejamento em saúde.

Diante de uma grave crise social, como a pandemia do Coronavírus, é fundamental a apreensão com o estado de saúde mental de uma população ou de toda a sociedade, considerando que a crise é pode afetar vários níveis de intensidade; a exemplo, no período pandêmico, a população enfrentou grandes mudanças, tais como distanciamento social, dificuldades econômicas, confinamento, luto e medo, responsáveis por atingir diretamente a saúde mental dos indivíduos (Faro et al., 13).

​​ Nesta perspectiva, com este estudo objetiva-se conhecer o número de internações hospitalares por transtornos mentais e comportamentais em Porto Velho, no período estudado, a fim de obter conclusões epidemiológicas acerca do tema e realizar futuros planejamentos de saúde de forma satisfatória, podendo avaliar o período pandêmico e pós-pandêmico na rede pública e suas influências no meio social.

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2.Referencial teórico

O cuidado com a saúde mental é um aspecto fundamental, embora ainda haja negligência em entender sua dinâmica. É um elemento que nos permite fazer os ajustes necessários diante das complexidades das emoções sociais. ​​ Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), saúde se define como um estado de “completo bem-estar físico, mental e social”; logo, a saúde não está relacionada apenas à ausência de afecções e enfermidades. Nesse viés, embora a saúde mental seja intrínseca a cada indivíduo, é imprescindível considerar sua influência na saúde pública.

No cenário mundial vivenciado durante a pandemia do Covid-19, foi necessário reorganizar os recursos financeiros e a redistribuição de leitos de internação hospitalar, para que, além de atender à alta demanda de infecções pelo Coronavírus, a saúde pública fosse capaz de dar a devida atenção para a saúde ​​ mental, não só no meio de internação, mas também atuando na atenção primária, com ​​ mecanismos de prevenção e promoção de saúde mental, visto que se enfrentava uma ​​ crise social atípica, que modificou completamente o estilo de vida dos indivíduos.

Segundo Wang et al. (34), estudos tem demonstrado que assim como pandemia, ​​ as medidas que foram adotadas para contê-la apresentam impactos na saúde mental da população, influenciando diretamente no aumento de patologias relacionadas a transtornos mentais e comportamentais. No entanto, não é recente que o número de doenças relacionadas à saúde mental tenha aumentado. De acordo com a OMS (29), a depressão foi considerada como “mal do século XXI” mesmo antes do início da pandemia, no final de 2019. ​​ 

Voltando a atenção para a internação em si, com a abordagem da crise e considerando os conceitos de Kaplan (21), Laplanche e Pontais (23) e Knobloch (22), é possível ter-se uma compreensão abrangente desse fenômeno complexo. A crise, conforme definida por Kaplan (21), é um período de desorganização em um sistema aberto, desencadeado por circunstâncias que ultrapassam a capacidade do indivíduo ou do sistema de manter a homeostase.

No cerne da crise está o trauma, conforme destacado por Laplanche e Pontais (23). Esse elemento é caracterizado por sua intensidade e pela incapacidade do indivíduo para responder de maneira adequada, resultando em efeitos patogênicos duradouros na organização psíquica. O trauma não é apenas um desafio aos limites normais, mas uma experiência limite, que, de acordo com Knobloch (1998), extravasa o delimitado.

Knobloch (1998) enfatiza a ideia de ruptura durante a crise. Nesse estado de desorganização intensa, as condições da realidade são redistribuídas de maneira abrupta, estabelecendo um estado inédito, que vai além dos limites estabelecidos anteriormente. Essa ruptura não é apenas física, mas também afeta aspectos emocionais e psíquicos.

Assim, integrando essas perspectivas, pode-se conceber a crise como um fenômeno multifacetado, originado por eventos traumáticos que desafiam a capacidade de adaptação do indivíduo ou do sistema. ​​ 

De acordo com Dell' Aqua e Mezzina (1988), é possível categorizar como "situações de crise" aquelas que satisfazem, no mínimo, três dos cinco parâmetros preestabelecidos de maneira arbitrária: presença de sintomatologia psiquiátrica intensa, ruptura significativa nos aspectos familiares e/ou sociais, resistência ao tratamento, recusa persistente de contato e a ocorrência de eventos alarmantes no contexto de vida, tudo isso associado à incapacidade pessoal de lidar com tais situações.

Excluindo-se a situação de crise mencionada anteriormente, uma abordagem significativa e principal para o ingresso de um paciente em sofrimento psíquico são os CAPS. Localizados estrategicamente na rede de atenção psicossocial, os CAPS desempenham um papel essencial, oferecendo acompanhamento integral ao paciente e monitorando sua evolução.

Conforme estabelecido pelo Protocolo municipal da rede de cuidado de saúde mental de Porto Velho (Nery et al., 26), os CAPS seguem um sistema próprio, que compreende as etapas de acolhimento, avaliação e classificação de risco do paciente, em consonância com sua atuação RAPS. Tal sistema está delineado de acordo com o fluxograma ilustrado na Figura 1:

Diagrama, Linha do tempo

Descrição gerada automaticamente

Figura 1 - Fluxograma 01: acolhimento, avaliação e classificação de risco

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Frente a uma situação de crise, deve-se realizar o manejo do paciente para redes de urgência e emergência, para posterior internação, caso seja necessário. Além disso, outra medida fundamental é a recaptação na atenção básica, conforme o Fluxograma apresentado na Figura 1, em que o paciente será reavaliado no CAPS, para continuidade do tratamento, prática essencial no cuidado de saúde mental no município, interferindo diretamente nos futuros números de casos de internação hospitalar decorrente de transtornos mentais (Nery et al., 26).

Dessa forma, o padrão de internações hospitalares segue a seguinte linha de pensamento: a internação psiquiátrica será indicada somente quando forem esgotados os demais recursos extra-hospitalares para o tratamento ou manejo do problema, tendo como objetivo principal a estabilização do paciente grave, minimizando riscos, levantando necessidades psicossociais, ajustando o tratamento psicofarmacológico e a reinserção social desse paciente. Assim, cabe ao profissional médico realizar uma análise criteriosa e ética, caso a caso, para verificar quando a internação psiquiátrica é necessária (Galera; Cardoso, 16).

O livro O alienista, escrito por Machado de Assis, publicado em 1882, faz referência ao primeiro hospício criado no Brasil, o Hospício Dom Pedro II, onde pessoas com algum distúrbio mental eram internadas e recebiam um tratamento rígido, o qual, obviamente, não rendia bons resultados e foi cessado algum tempo depois. Atualmente, é importante que as pessoas que precisam de acompanhamento médico o recebam de forma ágil, para não haver necessidade de medidas mais invasivas e que não tenham eficácia em uma doença mental, como era o caso da internação hospitalar no passado.

Durante a pandemia, houve uma queda na demanda por atendimento clínico de doenças como câncer e insuficiência renal crônica, pois o sentimento de pânico e o medo de se expor ao Coronavírus fez com que algumas pessoas deixassem de dar a devida atenção a problemas que precisam de cuidados sérios (Umbelino; Machado, 2020).

Nesse contexto, as internações por transtornos mentais também sofreram influências, seja por pressão da pandemia e medidas restritivas e também o luto, seja pelo não atendimento correto em detrimento das restrições de distanciamento. Os hospitais públicos e particulares se encontravam superlotados, em decorrência da Covid-19, dando menos abertura para o tratamento de doenças consideradas não emergentes quando comparadas a esse vírus fatal.

Da mesma forma, isso acontece com as afecções de cunho mental, que podem ser colocadas em segundo plano quando se trata da necessidade de um atendimento preferencial. Entretanto, a pandemia não impediu que o número de internações hospitalares por saúde mental continuasse alta, tendo em vista que o isolamento social privou a população de realizar grande parte das atividades que antes faziam parte da rotina (Weaver; Wiener, 36). Outro fator importante e considerado na pesquisa de Crepaldi et al. (6) é o luto. Perdas em massa em um curto período de tempo e as restrições aos processos de despedida dificultaram a vivencia do luto.

A Covid-19 é reconhecida como uma crise significativa tanto do ponto de vista epidemiológico quanto psicológico. Desse modo, considerando o percurso pandêmico e pós-pandêmico do Covid-19 na cidade de Porto Velho-RO, no período de janeiro de 2019 a dezembro de 2023, procedeu-se um levantamento do número de internação por nosocômio, a fim de verificar se a pandemia influenciou nesses números.

Os procedimentos de tratamentos ofertados pelos hospitais da rede pública de saúde constam na Tabela 1, identificados com seus códigos na base de dados do DATASUS:

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Tabela 1 - Código e Procedimento DATASUS - CID 10 - Cap. V. Transtornos Mentais e Comportamentais