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ISSN: 2595-8402

DOI: 10.61411/rsc14462

Publicado em 04 de dezembro de 2023

REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 6, NÚMERO 1, ANO 2023

 

FAIXAS REGULADORAS NO MERCADO DE ARTE: ANÁLISE DA REGULAÇÃO DO SETOR A PARTIR DE UMA TEORIA DA VISIBILIDADE

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Ílina Cordeiro de Macedo Pontes

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Faculdade Internacional da Paraíba, João Pessoa, Brasil

ilinacmpontes@gmail.com

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RESUMO

O presente trabalho tem como escopo avaliar a regulação do mercado de arte, a partir da teoria da visibilidade de Andrea Brighenti. Nesse sentido, buscou-se compreender de que maneira a visibilidade opera como regulação desse setor. Inicialmente, enveredou-se pela compreensão do conceito de visibilidade, na tentativa de apreender sua relação com a incidência da regulação jurídica nos diversos meios sociais. Em seguida, o foco no mercado de arte permitiu compreendê-lo como um campo próprio, permeado por relações singulares econômicas e de visibilidade. Entretanto, após a conclusão de que não há normas suficientes e específicas voltadas a esse campo econômico, discutiu-se acerca da proliferação de uma nova faixa de visibilidade nesse setor, correspondente à emanação de normas autorreguladoras.

Palavras-chave: Mercado de arte. Visibilidade. Autorregulação.

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ABSTRACT

This paper aims at analysing the art market regulation, acccording to the visibility theory from Andrea Brighenti. So, it researched in which ways the visibility act as a regulation tool of this field. Initially, it reached this theory’s comprehension in order to understand its relation with the juridic regulation in different social fields. Then, the focus on the art market enabled the comprehension of it as a unique field permeated by different economic and visibility relations. However, after concluding that there are not sufficient neither efficient rules targeting this economic field, it was discussed the emergence of a new visibility threshold in this sector, relating to the creation of self-regulation rules.

Keywords: Art market. Visibility. Self-Regulation

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1. INTRODUÇÃO

Em um mundo onde prevalece a importância da imagem e daquilo que aguça a visão, a compreensão da visibilidade parece se encaixar perfeitamente. Diante disso, há algum tempo, diversos filósofos e sociólogos se engajaram nos estudos acerca do tema.

Nesse campo, Andrea Brighenti propõe estudar a visibilidade enquanto uma categoria dos estudos sociais. Para ele, referido elemento não é homogêneo, mas firmado a partir de diversas faixas capazes de abarcar diferentes consequências, advindas da visualidade nas relações sociais.

O presente artigo tem como referencial a teoria do sociólogo, a fim de tratar a relação do direito enquanto faixa de visibilidade no mercado da arte. Portanto, objetiva-se compreender de que maneira a visibilidade opera como regulação no campo econômico artístico. Busca-se, assim, afastar as discussões acerca do papel do objeto de arte na sociedade, focando, na verdade, na compreensão da visibilidade em relação aos agentes que operam em seu mercado.

Desse modo, tendo em vista que não se partirá de um conceito de visibilidade unicamente atrelado a imagens, mas como um campo de relações complexas entre aquilo que se vê e o que é visto, o foco do trabalho recairá nas condutas dos agentes e tentativas de regulação do mercado de arte.

Para isso, em primeiro lugar, é demonstrado o conceito de visibilidade e suas faixas, de acordo com o sociólogo Andrea Brighenti. Sendo assim, demonstra-se que o direito é capaz de incidir enquanto faixas de visibilidade nos diversos meios sociais, a fim de ressaltar a existência de condutas ilícitas, a partir do seu reconhecimento.

Em seguida, brevemente, apresenta-se o mercado de arte enquanto campo próprio, com faixas de visibilidade singulares. Além disso, tendo em vista que esse meio econômico se apresenta como objeto de estudos reduzidos na doutrina brasileira, o presente artigo almeja compreender de que forma ele é atingido pelo campo de visibilidade jurídico. Nessa linha, as normas serão tratadas enquanto faixas de visibilidade nessa seara.

Em terceiro plano, diante da constatação de que a visualidade de práticas ilícitas não necessariamente impõe consequências na área jurídica, a ponto de formar uma faixa de visibilidade que incida no mercado de arte, averígua-se o surgimento de uma nova prática de autorregulação. Sendo assim, tenta-se compreender de que maneira essa nova faixa de visibilidade se insere no mercado e a sua forma diferenciada em relação à faixa de visibilidade jurídica.

Portanto, o presente trabalho, partindo do pressuposto de que a visibilidade é essencial para que se firmem as estruturas jurídicas em determinado ambiente social, buscará compreender o universo normativo no mercado de arte e as suas novas tendências de autorregulação.

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2. O CAMPO DA VISIBILIDADE E SUAS FAIXAS

Convém, inicialmente, abordar o conceito de faixas de visibilidade, utilizado como base para o desenvolvimento do presente trabalho, no que concerne à relação entre o direito e a regulação do mercado de arte. Para isso, será necessário perquirir a definição de visibilidade.

De acordo com o autor referencial do presente trabalho, Andrea Brighenti, a visibilidade deve ser estudada enquanto categoria da teoria social. Deve-se apreendê-la como elemento independente, ensejador de relações, um campo diverso, mas, ao mesmo tempo, atrelado à realidade social.

Dessa forma, deve ser compreendida como inerente a todas as relações sociais. Não é algo, entretanto, que se resume ao campo de visão do indivíduo, ou seja, à sua visualidade. Abarca, na verdade, a projeção que ganha o campo de visão do ser ou do meio social em que está inserido.

Portanto, não basta que algo esteja inserido no campo da visão para se tornar visível a determinado grupo social. O que gera o campo da visibilidade são as consequências do processo advindo da visão.

Assim, estudar a categoria da visibilidade compreende entender a projeção de interações, estabelecidas entre os indivíduos e os diversos elementos em seu campo de visão. É imprescindível, desse modo, tentar entender qual a relação que eles travam no meio social, por intermédio do campo visual.

A visibilidade corresponde, assim, às consequências da relação do indivíduo com aquilo que lhe é visível. Frise-se, todavia, que não basta ser visível para configurar uma relação de visibilidade. Para caracterizar a visibilidade, deve-se reconhecer alguma espécie de consequência ou relação advinda daquilo que é visto.

Nesse sentido, uma teoria da visibilidade consiste em uma teoria de receptividade e perceptividade. Receptividades e perceptividades são afetações recíprocas entre diferentes composições sociais (...)1[3].

Desse modo, apenas existe enquanto resultado de relações bilaterais e multilaterais de visualidade na cena social. Além disso, ainda de acordo com o sociólogo, pode-se observar a seguinte descrição, a seguir destacada:

Visibility is neither a thing nor a symbol. Rather, it is an element within which procedures for visibilisation and styles of visibilising are enacted, repeated and contested. These styles and procedures ultimately correspond to modes of existence, which are neither collective (or universal) nor individual, but singular 2​​ [3].

Seria, portanto, uma forma de reflexão sobre o mundo, um elemento, segundo o autor, a partir do qual se instauram diversos feixes de visibilidade extremamente mutáveis. Feixes que se estabelecem de forma singular e não universal.

Além disso, o visual é, normalmente, associado a algo homogêneo, como se fosse reduzido a uma única tela. Todavia, a visibilidade deve ser compreendida enquanto um campo de conexões, eventos, mecanismos, associações, regimes, estratégias, práticas, ritmos. Nele, formam-se faixas, fronteiras e territórios direcionados aos mais diversos objetivos: foca atenção, estabelece respeito mútuo, afirma hierarquia, coordena ações, envia comandos, cria resistência. É por intermédio dessas configurações de visibilidade que as relações sociais são estabilizadas e os efeitos de poder são determinados3 [3].

Além disso, para Andrea Brighenti, a visibilidade está associada a questões de democracia, vigilância e reconhecimento. Reconhecimento é uma forma de visibilidade social, com consequências cruciais na relação entre minorias e maioria. Cabe destacar, entretanto, que a visibilidade não está ligada ao reconhecimento de forma linear. Está sujeita a diversas faixas, devendo existir uma visibilidade mínima4 [3].

O campo da visibilidade é, portanto, segmentado. O alcance do que é visível e invisível varia severamente entre os diferentes membros do corpo social. A forma como um indivíduo vê um grupo, por exemplo, não é idêntico à forma como o grupo o vê ou como outras pessoas o enxergam.

Portanto, relevante ideia apontada por Andrea Brighenti é a da existência de faixas de visibilidade, afastando a concepção de que o campo da visibilidade seja uniforme para todos.

Nesse sentido, admite-se, no presente trabalho, que a produção normativa, conforme será observado posteriormente, representa uma faixa de visibilidade que visa a tornar visíveis comportamentos e condutas reprováveis no meio social. Entretanto, para que a norma seja eficaz é preciso que as condutas sejam visíveis dentro do meio social em que estão inseridas. Assim, não basta que sejam praticadas de forma explícita, há também a necessidade de que a sociedade as considere enquanto condutas reprováveis e ensejadoras da devida incidência normativa.

Importante mencionar ainda que o campo da visibilidade também engloba oposições. Os seus efeitos variam entre empoderamento, a partir do reconhecimento, ou retirada de poder, como no controle. Desse modo, da mesa forma, em que se há concessão de poder, há também retirada de poder5 [3].

Cabe ressaltar ainda que a dicotomia visibilidade/invisibilidade não corresponde linearmente à inclusão/exclusão. De acordo com o autor, há diversos casos em que a visibilidade não acarreta reconhecimento como, por exemplo, em regimes totalitários. Os estilos de visibilização correspondem a certos regimes de visibilidade, que são constituídos pelo domínio do público, e como os corpos adentram esse domínio6 [3].

Da mesma forma, “visibility is double-edge sword: it can be empowering as well as disempowering7 [3]. Ainda na mesma linha de pensamento, pode-se observar o seguinte trecho do mesmo autor:

Another reason why inclusion and exclusion do not correspond to visibility and invisibility in a linear way is the fact that there are several cases in which visibility does not lead to recognition. We know that all sorts of totalitarism destroy intimacy and its invisibility. The styles of visibilisation thus correspond to certain visibility regimes, which are constitutive of the domain of the public, and how bodies enter this domain8 [4].

A visibilidade não é uniforme. Os indivíduos possuem campos de visibilidade diversos, sociedades apresentam faixas diferenciadas de visibilidades relacionadas a seus integrantes e aos fenômenos nela existentes.

Desse modo, advoga-se, no presente trabalho, que a norma jurídica atua como uma faixa de visibilidade, determinando as condutas que devem ser visíveis ao campo de atuação jurídico e atuando de modo a regular a convivência em sociedade, além de estabelecer os fenômenos que devem ou não ser realçados. Nessa linha, atua enquanto faixa de reconhecimento daquelas condutas que merecem, ou não, a incidência de sanções jurídicas.

Portanto, para finalizar e resumir o que foi apontado, deve-se ressaltar que a visibilidade constitui um campo de interações que agrega diversas faixas de visibilidade e reconhecimento, conforme se pode observar do trecho destacado a seguir:

To understand visibillity as a field entails essentially two things. First, visibility is always intervisibility, it is a relational and positional quality. Second, visibility is an aspect of social life that enables us to introduce thresholds of relevance and selective attention (inscribing and projecting them). (...) every social struggle necessarily comes with its own politics of visibility: for instance, social movements can be described as contentious moments in the structuring of the field and the distribution of visibilities in the field9 [4].

Sendo assim, o campo de visibilidade é formado por relações bilaterais ou multilaterais, de maneira que o que se vê se imiscui naquilo que é visto. Além disso,

nele são estabelecidas faixas de visibilidade ligadas à importância e ao reconhecimento de determinado fenômeno ou grupo no meio social.

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3. O CAMPO DO MERCADO DA ARTE E SUA FAIXA DE VISIBILIDADE NORMATIVA

Assume-se, no presente trabalho, que o mercado da arte constitui um campo de visibilidade em constante interação com os demais, ou seja, com o mercado econômico, com o direito e com a sociedade em geral.

Nele, há elementos ligados por relações de visibilidade e invisibilidade, como também diferentes faixas de visibilidade. Do mesmo modo, possui relação de visibilidade e invisibilidade com os outros meios mencionados anteriormente.

É possível, de acordo com Pierre Bourdieu, demonstrar como a visibilidade opera de diferentes formas em relação aos elementos do mercado de arte, para quem está dentro e para quem está fora, conforme trecho destacado a seguir:

Por lo echo de que las obras que constituyen el capital artístico de uma sociedade exigen códigos desigualmente complejos y refinados, por lo tanto susceptibles de ser adquiridos com mayor o menor facilidade y rapidez mediante um aprendizaje institucionalizado o no, ellas se caracterizan por niveles de emisión diferentes: la legibilidade de uma obra de arte para um individuo particular es, pues, función de la distancia entre el nível de emisión, definido como el grado de complejidad intrínseco del código exigido por la obra, y el nível de recepción, definido com el grado em el cual este individuo domina el código social, él mismo más o menos adecuado al código exigido por la obra10[1].

Mesmo que não se esteja alinhado completamente à teoria de Bourdieu, é praticamente incontestável que a obra de arte, responsável pela geração de um mercado econômico faz surgir um campo próprio, no qual ocorrem relações singulares.

Ainda de acordo com Bourdieu, o processo de autonomização do campo artístico acompanhou o surgimento e crescimento de uma categoria distinta de artistas e intelectuais profissionais que reconheciam exclusivamente as regras de tradição artística recebida de seus predecessores- regras que proporcionavam pontos de partida ou de ruptura- cada vez mais propensas a liberar sua produção e produtos de qualquer subordinação externa, como por exemplo, a relação de dominação que a Igreja exercia sobre as atividades11[1].

Reitere-se, desse modo, impossível afastar a concepção de que o mercado de arte gera um campo próprio, com elementos singulares e faixas de visibilidade diversas. Portanto, o campo artístico, mais especificamente o mercado de arte, apresenta-se, atualmente, enquanto um meio próprio. Nele, desenvolve-se, inclusive um mercado econômico singular, com relações peculiares.

Nesse sentido, conforme aponta Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, a arte tem adquirido um aspecto, progressivamente mais econômico, segundo se pode observar do trecho destacado a seguir:

Cada vez mais a arte aparece como uma mercadoria entre as outras, como um tipo de investimento de que se espera alta rentabilidade. A idade romântica da arte cedeu o passo a um mundo no qual o preço das obras é mais importante e mediatizado do que o valor estético: hoje é o preço mercantil e o mercado internacional que consagram o artista e a obra de arte. É o tempo da “art business”, que vê triunfar as operações de especulação, de marketing e de comunicação. Se o capitalismo incorporou a dimensão estética, esta se acha cada vez mais canalizada ou orquestrada pelos mecanismos financeiros e mercantis12 [6].

Ao mesmo tempo em que o campo artístico aparenta adquirir novas feições, com o surgimento de um mercado de arte cada vez mais intenso, relações concebidas nesse âmbito apresentam-se, muitas vezes, negligenciadas pelo direito. ​​ Além da obra de arte não ser visível para toda a sociedade, o mercado por ela gerado também é pouco visível ao direito.

 Inegável também que o Direito nele incide enquanto faixa de visibilidade normativa. Além das diversas faixas de visibilidade presentes no mercado de arte, como aquelas representadas pelos diferentes graus de interpretação das obras de arte e pelas relações entre os seus entes, é compreensível que apresente uma faixa de visibilidade jurídica.

Referida faixa é responsável por desencadear consequências jurídicas, a partir da interação entre os entes do mercado e do direito com as condutas nele existentes. A norma jurídica apresenta-se como uma faixa de visibilidade nesse campo, capaz de tornar visível algumas práticas ilícitas consideradas corriqueiras pelos membros desse meio.

Como exemplo, pode-se mencionar a Portaria n° 80, de 7 de março de 2017, do Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural (IPHAN). Referida norma é destinada a comerciantes e leiloeiros de obras de arte e antiguidades. Elenca, por exemplo, as infrações administrativas decorrentes da inexistência de inscrição desses profissionais no Cadastro Nacional de Negociantes de Antiguidades e Obras de Arte – CNART e da ausência de envio de informações necessárias ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), quando realizadas operações acima de dez mil reais em dinheiro.

Ressalte-se que a portaria previu, de forma inédita no Brasil, a configuração de infração administrativa, caso os profissionais mencionados não adotem mecanismo de controle para prevenir a lavagem de dinheiro ou o financiamento do terrorismo por meio de obras de arte, conforme a redação do III, art. 2º:

Art. 2º São infrações administrativas praticadas por comerciantes e leiloeiros de Antiguidades e Obras de Arte de qualquer natureza, nos termos do que dispõem os artigos 26 e 27 do Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, e os artigos 9º, inciso XI, 10, 11 e 12 da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998:

(...)

III – Não adotar procedimentos e controles internos para prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo por meio de obras de arte e antiguidades.

Sanção -Multa de dois mil reais (R$ 2.000,00)13[2].

Referida norma visa a combater uma das principais práticas existentes no mercado, o sigilo. Apresenta-se como elemento inerente a grande parte das transações de objetos de arte. É bastante comum não se saber a identidade daquele que compra a obra, nem o objetivo que ele possui com aquele objeto.

Todavia, é inegável que a visibilidade jurídica nesse ambiente apresenta uma área de atuação ínfima. O direito pouco consegue se inserir nesse mercado, em parte devido à relação de invisibilidade que mantém com esse campo. Seus operadores desconhecem ou ignoram as condutas praticadas no mercado de arte.

Desse modo, o campo de visibilidade gerado por essas relações é praticamente inexistente, de forma, muitas vezes, intencional, por parte de seus membros.

Muitos dos mecanismos do mercado da arte são invisíveis para grande parte da sociedade. Ressalte-se que isso ocorre, muitas vezes, de forma intencional, por exemplo, as compras de obras valiosas são normalmente realizadas da forma mais discreta o possível.

Destaque-se ainda que o mercado da arte é amplamente utilizado para prática de condutas ilícitas, como a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo. Sendo assim, não há qualquer interesse por parte de alguns de seus membros em chamar atenção do campo jurídico para esse setor.

Desse modo, não há uma visão jurídica do que é considerado ilegal no mercado de arte. Sendo assim, tanto a faixa de visibilidade externa possui dificuldades para adentrar o mercado de arte, quanto seus atores são incapazes de reivindicar uma visibilidade jurídica às relações econômicas que mantêm. Além disso, a norma se apresenta apenas como uma faixa de visibilidade, incapaz de trazer à tona todas as condutas, transações e significados que envolvem o objeto de arte.

Portanto, a visibilidade jurídica enquanto reconhecimento não será sempre desejada, como exemplifica alguns entes do mercado de arte. As condutas que não são objeto de incidência da faixa de visibilidade normativa almejam sempre permanecer no campo da invisibilidade.

Todavia, conforme será observado no próximo tópico, novas faixas de autorregulação começam a surgir nesse meio. Dessa forma, a dificuldade no desenvolvimento de uma faixa de visibilidade jurídica capaz de abarcar um grande número de condutas, gera uma faixa de visibilidade reguladora distinta daquela emanada pelo Estado.

​​ Cabe, por fim, o questionamento, sobre a faixa de visibilidade emanada de meios privados de regulação visa ao afastamento ou agregação da faixa de visibilidade normativa estatal.

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4. FAIXAS DE VISIBILIDADE AUTORREGULADORAS NO MERCADO DE ARTE

Segundo verificado anteriormente, a norma jurídica insere-se no meio social enquanto faixa de visibilidade. Além disso, a relação de visibilidade não é uniforme em todas as estruturas sociais.

No mercado de arte, mencionada faixa aparenta penetrar com mais dificuldade. Nele, as condutas ilícitas são praticadas à margem de sanções jurídicas. Justamente por constituir um campo de relações específicas e permeado pelo sigilo, a visibilidade conferida aos entes estatais é inexpressiva. Com exclusão da portaria do IPHAN mencionada anteriormente, além de ser bastante recente, não há qualquer norma no ordenamento jurídico brasileiro que tenha como objeto o mercado da arte especificamente.

​​ Além disso, mesmo que as condutas sejam visíveis, o aparato estatal não lhes confere a devida visibilidade, preferindo direcionar suas atividades para outras áreas.

Ressalte-se, todavia, que práticas ilícitas são regularmente noticiadas. Como exemplo, pode-se mencionar a polícia federal, por intermédio da Operação Lava-Jato, apreendeu diversas obras de arte utilizadas como parte de um longevo processo de lavagem de dinheiro. Atualmente, 38 delas integram a exibição “ Obras sob a guarda do MON”, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba14 [7].

Na Europa, recentemente, o bilionário Yves Bouvier, marchand e proprietário da empresa tradicional de armazenamento de obras de arte, a Natural Le Coutre, foi preso preventivamente em Mônaco. O empresário foi acusado de integrar um antigo esquema de lavagem de dinheiro com o russo Dmitry Rybolovlev, dono de clube de futebol no mesmo país, além de fraudar os valores nas transações de obras, a fim de aumentar as suas comissões. Entretanto, foi liberado, após o pagamento da fiança de dez milhões de euros15[10].

Em 2006, um elaborado furto de obras de arte no Museu Chácara do Céu, no Rio de Janeiro permanece sem desfecho, tendo sido objeto do livro “A Arte do Descaso-A História do Maior Roubo a Museu do Brasil”. De acordo com a autora, foram levados dois quadros de Picasso, um de Claude Monet, um de Henri Matisse e outro de Salvador Dalí, totalizando uma perda de dez milhões de dólares16 [9].

Sendo assim, pode-se destacar dois aspectos no tocante à visibilidade de práticas ilícitas no mercado de arte. Em relação ao primeiro, pode-se afirmar que algumas condutas são bastante visíveis à sociedade e ao direito, como ocorre nos grandes roubos a museus noticiados em todo mundo. Por outro lado, o segundo aspecto demonstra que, apesar de serem visíveis, não geram consequências no campo da visibilidade jurídica, mantendo, assim, o mercado da arte, isento da incidência de faixa normativa mais intensa.

Resta claro, desse modo, que aquilo que é visível não necessariamente gera consequências no campo da visibilidade. Nesse sentido, se determinada conduta é considerada existente, mas é incapaz de gerar sanções no campo jurídico durante anos, significa que não há incidência da faixa de visibilidade jurídica no meio em destaque.

Importante ressaltar ainda que o mercado da arte é reconhecidamente permeável à prática de condutas ilícitas, pela doutrina, conforme se pode observar do trecho escrito pelos autores Thomas Christ e Claudia von Selle:

In comparison with other trade sectors, the art market faces a higher risk of exposure to dubious trade practices. This is due to the volume of illegal or legally questionable transactions, which is noticeably higher in this sector than in other globally active markets. Far more serious than shady dealings in a legal grey area, the sector’s shadow economy encompasses issues ranging from looted art, professional counterfeiting and fake certificates to the use of art sales for the purpose of money laundering17 [5].

 

Portanto, os casos mencionados anteriormente, além do trecho destacado acima, apenas atestam que o visível não implica que determinado fato ou relação sejam inseridos no campo da visibilidade jurídica. No caso do presente trabalho, o mercado de arte, permeado por condutas ilícitas, atesta a ausência de incidência de uma faixa de visibilidade jurídica eficiente.

Nesse meio, todavia, tem crescido o número de documentos que visam a promover a autorregulação do mercado, por parte de galerias, museus, casas de leilão, entre outros. Os documentos mencionados, produzidos por entes privados, constituem códigos de conduta, códigos de boas práticas, diretrizes, entre outros.

Nessa seara, podem ser exemplificados os seguintes: Antique Tribal Art Dealers Association (ATADA): Trade Practices and Guarantee, Article X, Amended Bylaws of the Antique Tribal Art Dealers Association, Inc. (1997, amended 2007); Association of Art Museum Directors (AAMD): New Report on Acquisition of Archaeological Materials and Ancient Art Issued by Association of Art Museum Directors (2008); Association of Art Museum Directors (AAMD): Art Museums and the Identification and Restitution of Works Stolen by the Nazis (2007) - Position Paper (Not Guidelines)18 [5].

Deve-se mencionar, em particular, o “Guidelines on combatting Money Laundering and Terrorist Financing” (2017), de iniciativa do grupo Responsible Art Market. Nos objetivos do documento, pode-se observar que é direcionado a expor mecanismos de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, conforme se pode observar a seguir:

These Guidelines aim to:

  • raise awareness in the art market of the threats and risks of money laundering and terrorist financing;

  • provide a general framework and understanding of “risk based” anti-money laundering and terrorist financing measures, including the key elements of client, artwork and transaction due diligence;

  • help Art Businesses:

  • implement “risk based” anti-money laundering and terrorist financing measures appropriate to the size and nature of their business;

  • identify “red flags” (indicators of suspicious activity) and take appropriate action in response19 [8].

Nesse sentido, resta nítido que surge uma nova faixa de regulação no mercado de arte, originada a partir do reconhecimento de existência de práticas ilícitas em excesso nesse meio, por parte das próprias entidades nele existentes. Referida faixa de regulação forma-se, entretanto, à parte da faixa de regulação jurídica, a partir de um novo espectro de visibilidade.

Isto é, uma nova estrutura formada a partir de uma visualidade diversa passa a surgir. É um campo de visibilidade originado a partir de entes privados em uma relação de visualidade com práticas ilícitas. A visualidade adquire novos contornos, ao desencadear a formação de documentos que visam a inibir a ocorrência de crimes, por parte de instituições privadas.

Contrapõe-se, assim, à ideia de um faixa de visibilidade jurídica, que surge do reconhecimento do direito de que existem práticas ilícitas nesse ambiente econômico e a partir da adoção de medidas que possam inibir a sua ocorrência.

Desse modo, uma nova faixa de visibilidade, conforme demonstra o documento destacado anteriormente, chama a atenção dos entes do mercado de arte para o reconhecimento da possível prática de condutas ilícitas.

Cabe, todavia, o questionamento acerca de essa prática autorreguladora ser um reconhecimento da presença de condutas ilícitas em excesso no mercado de arte ou se se configura como uma tentativa de afastar a faixa de visibilidade normativa desse setor. Demonstrando, assim, que os entes possuem a consciência das práticas ilícitas e que eles mesmos podem inibi-las, sem o auxílio do direito.

Caso se configure apenas como uma modalidade de afastar a faixa de visibilidade jurídica apta a aplicar sanções, representa o fato de que o reconhecimento não necessariamente gera efeito em diversos campos de visibilidade.

Desse modo, o reconhecimento, enquanto parte da faixa de visibilidade autorreguladora, a partir da implantação dos documentos mencionados, não atesta a visibilidade jurídica nesse setor.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho, foi empreendida a tentativa de se compreender os fenômenos regulatórios no mercado de arte, tendo como base a teoria da visibilidade, mais especificamente os estudos de Andrea Brighenti.

A partir do estudo da visibilidade, compreendeu-se que o Direito se apresenta enquanto faixa de visibilidade nos diversos meios sociais. Nesse sentido, mencionada faixa está proximamente ligada ao fenômeno do reconhecimento, em especial, de práticas ilícitas.

Avaliando o mercado de arte como um campo próprio, com relações econômicas e de visibilidade peculiares, discutiu-se a incidência nele de uma faixa jurídica de regulação. A partir da ínfima preocupação em se elaborar normas específicas, concluiu-se pela inexistência de faixas jurídicas de visibilidade no mercado de arte aptas a ensejar consequências para as atitudes ilícitas nele praticadas.

Diante da inexpressividade da faixa jurídica no mercado de arte, surge um fenômeno autorregulatório, produzido pelos próprios entes, com a produção de códigos de conduta, de boas práticas, entre outros. Todavia, o trabalho alcança, finalmente, o questionamento acerca dessa nova faixa de visibilidade produzida no mercado de arte. Seu objetivo seria afastar a incidência de uma faixa jurídica de regulação, demonstrando a capacidade de seus membros de se autorregularem ou, de fato, apresentam uma preocupação com a ausência de uma repreensão jurídica eficiente nesse setor?

Apesar de não haver uma resposta de imediato ao questionamento, restou comprovado que o reconhecimento da existência de práticas ilícitas no mercado de arte não necessariamente indica relações de visibilidade, principalmente, com o direito.

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6. REFERÊNCIAS

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  • THE ECONOMIST. Brush with the Law. March 5th, 2015.Disponível em: < http://www.economist.com/news/business/21645762-well-known-middleman accused-fleecing-wealthy-clients-brush-law >. Acesso em: 12 set. 2017.

 

 

1

​​ BRIGHENTI, Andrea Mubi. Visibility- A Category for the Social Sciences. 2007. Disponível em: < https://www.academia.edu/4094565/Visibility._A_Category_for_the_Social_Sciences>. Acesso em: 15 ago. 2017, p. 44.

2

​​ Ibid., p. 70.

3

​​ Ibid., p. 39.

4

​​ BRIGHENTI, Andrea Mubi. Visibility- A Category for the Social Sciences. 2007. Disponível em: < https://www.academia.edu/4094565/Visibility._A_Category_for_the_Social_Sciences>. Acesso em: 15 ago. 2017. p. 329.

5

​​ Op.cit., 2010, p. 39.

6

​​ Op.cit., 2010, p. 52.

7

​​ Op.cit., 2007, p. 335.

8

​​ Op.cit., 2010, p. 52.

9

​​ Op.cit., 2010, p. 44.

10

​​ BOURDIEU, Pierre. El Sentido Social del Gusto- elementos para uma sociologia de la cultura. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010, p. 76.

11

​​ Ibid., p. 87.

12

​​ LIPOVETSKY, Gilles. SERROY, Jean. A estetização do mundo - Viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 45.

13

​​ BRASIL. Portaria n° 80, de 7 de março de 2017, do Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural (IPHAN). Disponível em: < http://portal.iphan.gov.br/legislacao?categoria=11&busca=80&de_data=&ate_data>. Acesso em: 28 nov. 2023.

14

​​ MUSEU OSCAR NIEMEYER. Obras sob a Guarda do MON. 2017. Disponível em:< http://www.museuoscarniemeyer.org.br/exposicoes/exposicoes/obraguardamon>. Acesso em: 10 mar. 2017.

15

​​ THE ECONOMIST. Brush with the Law. March 5th, 2015.Disponível em: < http://www.economist.com/news/business/21645762-well-known-middleman-accused-fleecing-wealthy-clients-brush-law >. Acesso em: 12 set. 2017

16

​​ TARDÁGUILA, Cristina. A Arte do Descaso: a História do Maior Roubo a Museu do Brasil. Intrínseca: Rio de Janeiro, 2016. (Versão Digital), p. 14.

17

​​ CHRIST, Thomas; SELLE, Claudia Von. Basel Art Trade Guidelines- Intermediary Report of a Self-Regulation Initiative. Working Paper Series n. 12. Basel: Basel Institute of Governance, 2012, p. 12.

18

​​ Ibid., p. 07.

19

​​ RESPONSIBLE ART MARKET. Guidelines on combatting Money Laundering and Terrorist Financing. 2017. Disponível em: < http://responsibleartmarket.org/guidelines/guidelines-on-combatting-money-laundering-and-terrorist-financing/>. Acesso em: 10 set. 2017.

www.scientificsociety.net

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