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ISSN: 2595-8402

DOI: 10.61411/rsc15567

Publicado em 04 de dezembro de 2023

REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 6, NÚMERO 1, ANO 2023

 

ASPECTOS CONTEMPORÂNEOS DA CIDADANIA CORPORATIVA: UM CAMINHO PARA A AUTORREGULAÇÃO

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Ílina Cordeiro de Macedo Pontes

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Universidade Federal da Paraíba, Cidade, João Pessoa, Brasil
ilinacmpontes@gmail.com

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RESUMO

O presente artigo tem como objetivo tratar aspectos atuais da cidadania corporativa e seu papel no surgimento da autorregulação por parte de empresas privadas. A realidade contemporânea de atuação dos cidadãos indivíduos é bastante limitada. Há uma disseminação de apatia política que abarca a maior parte dos cidadãos. Nesse mesmo contexto, as empresas se apresentam cada vez como atores políticos perante a sociedade. Entretanto, há grandes divergências doutrinárias quanto à possibilidade de as empresas serem consideradas, de fato, cidadãs. Nesse sentido, o trabalho envereda por diversas teorias, contra e a favor, da transposição da categoria de cidadania para o âmbito corporativo. Em face da ausência de uma pacificação doutrinária a respeito do conceito, averiguou-se os aspectos práticos a ele conectados, como a responsabilidade social corporativa e o compliance. Verificou-se, assim, que ambos apontam para um caminho de autorregulação desses entes privados.

PALAVRAS-CHAVE: Cidadania corporativa. Cidadania. Autorregulação

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ABSTRACT

This papes aims to analyse current aspects of corporate citizenship and its role in the emergence of enterprises’s self-regulation. There is nowadays a dissemination of political apathy which involves the majority of citizens. In this same context, companies are increasingly presenting themselves as political actors. However, there are great scholarships differences whether the companies can be considered as citizens. So, this paper approaches many theories, in favour or against the use of citizenship concept to corporations. In the absence of a common ground about the concept, the practical aspects connected to it, such as corporate social responsibility and compliance, were examined. It was verified, therefore, that both point to a way of self-regulation of these private entities.

Keywords: Corporate citizenship. Citizenship. Self-Regulation

 

 

1.INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, as empresas têm atribuído a si próprias, cada vez mais, um papel social. Novos termos atrativos sempre surgem, a fim de que essas entidades apresentem suas atividades, enquanto geradoras de impactos positivos, no meio em que estão inseridas. Nesse âmbito, um dos conceitos mais recentes utilizados têm sido a cidadania corporativa.

Apesar de facilmente declarada em meios abertos de comunicação à sociedade, o termo ainda está longe de ser considerado de forma unânime. Diante disso, o presente trabalho tem por escopo averiguar as características e consequências jurídicas do conceito, a partir de uma revisão bibliográfica sobre a temática, além de sugerir as características concretas atuais.

Dessa forma, na primeira parte, é abordado o crescimento da apatia do cidadão, em paralelo ao crescimento do protagonismo social corporativo. Nesse ponto, tem-se como base as categorias de cidadãos apresentadas por Bruce Ackerman.

Em um segundo momento, o trabalho apresenta as principais ideais no que concerne ao real papel político das empresas. Nesse sentido, são revisitadas teorias clássicas de cidadania, a fim de averiguar sua compatibilidade com as atividades empresariais, a partir de autores concentrados, especialmente, na área de administração.

No terceiro tópico, são identificadas as principais características atuais da cidadania corporativa e seus contornos jurídicos. São, portanto, considerados seus aspectos interno e externo, ou seja, a responsabilidade social corporativa e o compliance, além de seus efeitos para uma construção de autorregulação das empresas.

O trabalho, portanto, apresenta um panorama geral do conceito de cidadania corporativa, dentro de um meio onde os cidadãos não possuem tanto interesse pela vida pública. Além disso, aponta as características atuais desencadeadas por esse conceito e seu papel na efetivação de uma visão autorregulatória corporativa.

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2. O CIDADÃO COMUM COMO PRESSUPOSTO DA CIDADANIA CORPORATIVA

Atualmente, no âmbito corporativo, o termo cidadania corporativa ou cidadania empresarial usufrui de um protagonismo incontestável. Em atividades de marketing, normas internas e relatórios, o conceito surge como categoria própria, apresentando-se bem estruturado. Entretanto, no âmbito acadêmico, ainda se discute a real possibilidade de as empresas serem consideradas como cidadãos.

Em paralelo a esse cenário, os cidadãos indivíduos vêm adquirindo apatia em relação às decisões políticas. Participar da vida pública foi relegada à atividade de segundo plano, além de que o meio político se apresenta como sinônimo de atitudes corrompidas para a sociedade em geral.

Nesse contexto, interessante destacar que Bruce Ackerman, ao tratar especificamente da realidade norte-americana, identifica três espécies atuais de cidadãos, o público, o perfect privatist e o cidadão comum1[1].

Para o cidadão público, não há nada mais importante do que a cidadania pública, sendo que “a vida privada representa um plano inferior de existência” 2[1]. ​​ O perfect privatist, por sua vez, acredita que aquilo que é bom para a nação, apenas pode ser o que é bom para ele3. Por último, o cidadão comum “dá valor à cidadania sem permitir que ela ultrapasse os limites, invadindo a esfera dos valores de sua vida pessoal”4[1].

O autor, de certa forma, admite a impossibilidade de o cidadão público prevalecer atualmente. Para ele, caso alguém demonstre desinteresse na política, não se deve condená-lo, já que “a esfera política simplesmente não domina nossa consciência moral da maneira como ocorria na geração da Revolução” 5[1].

Entretanto, mesmo considerando que o cidadão comum não seja o problema por si só, desencadeia três consequências, ou seja, a disseminação da apatia, da ignorância e do egoísmo 6[1]. Desse modo, as características afloram, com mais intensidade, em meios onde esses cidadãos se sintam inoperantes diante da letargia do grupo.

Sendo assim, dentro de um contexto cidadão de apatia, o cidadão comum tende, cada vez mais, a se afastar da vida pública, camuflado pelo sentido de impotência de seu esforço individual, no contexto de uma apatia grupal.

Importante ressaltar que, apesar de ter como pano de fundo a realidade norte-americana para tratar a questão da democracia dualista, resta nítido que não é uma realidade tão distante da brasileira ou da maior parte dos países.

Como um dos exemplos mais notórios e recentes, a participação dos ingleses na votação do Brexit. Muitos, principalmente jovens, votaram a favor da saída do Reino Unido da Europa sem considerar os impactos econômicos e políticos da decisão. Logo após, foram acometidos pelo arrependimento, em virtude da ampla divulgação das consequências da decisão. Em outubro de 2017, 47% dos votantes acreditavam que a opção foi errônea, em face de 42% que afirmaram manter a posição anterior 7[8].

A grande porcentagem de arrependimentos indica a inexistência de debates substanciais prévios e de discussões sobre os impactos concretos da saída do Reino Unido da Europa. Além disso, muitos votaram sem a verificação de opções, de maneira impulsiva, levando em conta interesses e valores individuais.

No presente trabalho, sugere-se que a apatia cidadã, em relação às decisões públicas, cresce à medida que aumenta o protagonismo das empresas privadas nas questões democráticas do país.

É possível se questionar, assim, se as empresas aparentam querer ocupar esse vácuo social. Não só vendem conforto para os indivíduos, como almejam vender uma espécie de conforto cidadão. Em outras palavras, as empresas direcionadas a facilitar a vida de seus clientes, tentam também assumir as tarefas que lhes eram cabíveis, porém não mais desejadas.

A tendência mencionada pelo autor é amplamente detectada em nossa sociedade atual. Nesse sentido, surgem mecanismos de preenchimento do lugar do eleitor enquanto cidadão.

As empresam aparentam chamar para si a responsabilidade do engajamento político. Como o seu papel é vender bem-estar e diante do mal-estar que a vida pública causa ao cidadão comum, nada mais convidativo ao âmbito corporativo que a assunção da categoria de cidadão.

O conforto de não se preocupar com questões da vida pública é utilizado como comércio de bem-estar aos cidadãos. Gera-se, assim, um círculo vicioso no qual os

cidadãos se sentem cada vez mais compelidos a buscarem satisfação fora do âmbito político, enquanto as empresas incrementam o seu protagonismo na vida pública.

Portanto, nesse meio, as empresas, a partir de diversas novas nomenclaturas, como a cidadania corporativa, incorporam posições anteriormente restritas aos indivíduos e aos entes estatais.

Importante destacar, por fim, que os termos “cidadania corporativa” e “cidadania empresarial” são usados em português como sinônimos. Optou-se, entretanto, pela uniformização, ao longo texto, utilizando apenas “cidadania corporativa”, em virtude de ser a única nomenclatura utilizada em inglês, corporate citizenship, e em francês, citoyenneté corporative.

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3.POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS A RESPEITO DO CONCEITO DE CIDADANIA CORPORATIVA

Há, todavia, divergências quanto ao conceito de cidadania corporativa, de fato, corresponder a atividades de um cidadão. Diversos autores, principalmente concentrados no campo da administração, têm direcionado esforços no empreendimento de averiguar se a empresa pode ser considerada cidadão, avaliando teorias clássicas de cidadania individual.

Em seu estudo sobre a possibilidade de enquadramento da empresa nessa categoria, Jeremy Moon, Andrew Crane e Dirk Matten8 [6]criticam autores que se utilizam da amplitude de teorias acerca da cidadania, a fim de artificialmente considerar as empresas como atores políticos. De fato, a diversidade da abordagem facilita o

processo de escolha para, retoricamente, viabilizar um arcabouço teórico que agregue as atividades empresariais.

 Jeremy Moon et alii averiguaram quatro modelos clássicos de cidadania. A partir dos modelos de minimalismo liberal, republicanismo cívico, democracia desenvolvimentista e democracia deliberativa, os autores avaliaram as categorias de natureza da cidadania, base da cidadania, natureza da participação pelos cidadãos, potencial como metáfora para cidadania corporativa, base normativa para uma cidadania corporativa, condições para aplicar a metáfora da cidadania às corporações9[6].

 Concluíram que a cidadania corporativa, na verdade, constitui uma metáfora. Além de que o comportamento das empresas jamais pode se igualar à metáfora utilizada10[6].

 Nesse sentido, a metáfora não se iguala ao seu objeto, mas se apresenta apenas como meio de explicação para facilitar a compreensão de uma categoria. Interessante destacar que o uso de metáforas é algo corriqueiro no âmbito empresarial, assim como no jurídico. A personalidade jurídica, por exemplo, também é uma metáfora para aproximar as empresas de indivíduos, no que concerne aos seus direitos e obrigações.

 Os autores Ingo Pies, Markus Beckmann e Stefan Hielscher11[7], dedicaram-se à avaliação do conceito de cidadania corporativa, a partir da ideia de cidadania de Aristóteles. Afirmam que, à primeira vista, pode ser impossível pensar em como a empresa se igualaria ao cidadão aristotélico, livre e homem, em um contexto de polis grega, completamente diferente do atual.

 A partir de uma perspectiva ordonômica, agregada à definição funcional de cidadania aristotélica, o indivíduo participa, não apenas do jogo básico de interações sociais, mas também do meta-jogo do estabelecimento de regras pelo legislativo e na administração judicial, como também no meta-meta-jogo de definir as regras (deliberação)12[7]. Nessa linha, importante destacar:

The ordonomic approach takes a rational-choice perspective on the analysis of interdependencies between institutions and ideas or, more specifically, on the analysis of interdependencies between social structure and semantics. Under the ordonomic approach, “social structure” refers to the incentive properties of formal and informal rule arrangements (institutions), whereas “semantics” refers to the terminology of public and organizational discourse and the underlying thought categories (ideas) that determine how people perceive, describe, and evaluate social interactions and, in particular, social conflicts as well as their possible solutions. (...) A specific contribution of the ordonomic perspective on governance is the distinction among three social arenas: the basic economic game of business, the meta game of political governance, and the meta-meta game of public discourse13[7].

Ainda com base na visão ordonômica, o conceito aristotélico de cidadania política foca na habilidade de um ator para assumir um papel construtivo em processos de elaboração de regras e de deliberação. Para os autores, as empresas podem e devem assumir papéis políticos, não apenas enquanto burgueses no jogo dos negócios, mas também como cidadãos em processos discursivos e regulatórios de governança [13] 14.

No que concerne à teoria aristotélica, quaisquer cidadãos, sejam eles indivíduos ou empresas, buscarão sempre interesses próprios15[7]. Esses interesses, entretanto, tendem a convergir para o bem comum, quando os indivíduos e corporações percebem que seu aperfeiçoamento depende da cooperação de toda a comunidade.

Os autores defendem vigorosamente que a cidadania corporativa pode ser conceituada, a partir desse paradigma de racionalidade de escolha, em face de duas razões. A primeira diz respeito ao fato de que o modelo apresentado introduz um papel político da empresa, como um conceito compatível com as teorias de empresa já consolidadas. Em segundo lugar, a tese apresentada não expõe uma requisição normativa de que as empresas devam assumir um papel político. Na verdade, explica a cidadania corporativa como uma estratégia racional de interesse próprio das empresas16[7].

Para Corinne Gendron17[3], por sua vez, o termo constitui uma utopia econômica, além de que a utilização de um conceito político para atores econômicos significa transgredir as bases do capitalismo moderno e sua regulação, que consiste na independência dessas duas esferas.

De acordo com a autora, a teoria da cidadania corporativa abrange duas problemáticas. Em primeiro lugar, ela restringe o perímetro de obrigações da empresa ao de uma pessoa física. Em segundo lugar, ela justifica uma ação política que se apresenta oculta e ilegítima. O uso da metáfora gera um quadro teórico que legitima e formaliza a ação política da empresa, além de participar da construção de uma utopia de empresa cidadã, que afasta a representação clássica da empresa “econômica”18[3] .

Além disso, a representação do conceito de cidadania corporativa, além de conter uma perspectiva antropomórfica da empresa, veicula uma certa problematização da regulação econômica que confunde as categorias tradicionais da política e da economia19[4].

Observa-se que a visão da autora é extremamente pessimista no que concerne à possibilidade de assunção de atividades políticas por parte das empresas. Ressalte-se que o termo cidadania corporativa não necessariamente iguala pessoas jurídicas como indivíduos. Conforme será observado no tópico a seguir, algumas atividades que integram o conceito atual de cidadania corporativa implicam a realização de tarefas completamente novas, próprias da sociedade atual, como a autorregulação.

Longsdon e Wood20 [9]chamam a atenção para um aspecto importante acerca dessa discussão. Para elas, é importante considerar no debate que são distintos o conceito de cidadania, enquanto status legal, e o conceito de cidadania, enquanto atividade desejável. Os requisitos mínimos para se identificar um cidadão são bastante diferentes daqueles para se denominar um bom cidadão. E, isso tem se tornado mais importante em sociedades caracterizadas pela apatia e individualismo radical dos cidadãos.

Verifica-se, portanto, que, apesar de a maior parte dos estudos não alcançarem um enquadramento para a empresa dentro das teorias clássicas de cidadania, é fato que esse entendimento permanece em aberto.

Diante das estruturas de governos contemporâneos, em que Estados convivem com a ascensão do protagonismo de entes privados, torna-se, pelo menos até o momento, impossível averiguar o cenário atual com base em teorias assentadas sobre realidades anteriores.

​​ As discussões quanto à possibilidade de se considerar as empresas como cidadãs, com base em teorias sedimentadas acerca do conceito de cidadania, ainda se mantêm inacabadas. Apesar de haver divergência quanto ao real significado do conceito, analisar-se-á, em seguida, quais suas consequências atuais. Em outras palavras, abordar-se-á o que as consequências práticas dessa nomenclatura.

4.  ASPECTOS INTERNO E EXTERNO: AUTORREGULAÇÃO

Diante da impossibilidade atual de se pôr um termo e conclusão aos debates sobre as empresas serem cidadãs, importante compreender o que envolve, atualmente, esse conceito.

No presente trabalho, foram identificadas duas características práticas, atreladas à ideia de cidadania corporativa, ou seja, a responsabilidade social corporativa e o compliance. Considera-se a primeira enquanto aspecto externo e a segunda como aspecto interno do termo central de estudo do presente trabalho.

Advoga-se que a responsabilidade social corporativa se apresenta como reflexo externo da cidadania corporativa. Entretanto, conforme apontam Longsdon e Wood21[9], os termos têm sido usados indistintamente.

Antes de abordar as diferenças entre os termos e a justificativa para enquadrar a responsabilidade social corporativa enquanto aspecto externo da cidadania corporativa, necessário averiguar seu conceito.

O termo responsabilidade social corporativa foi inicialmente proposto entre os anos 1950 e 1960, como uma espécie de autorregulação dos negócios, ao tentar assegurar o controle dessas atividades sem depender das incertezas das éticas individuais ou da coercibilidade do autoritarismo do governo. A sua articulação doutrinária foi, por um lado, argumento de autoridade, por outro lado, um apelo a interesses próprios e, em parte, orientada à justiça22[9].

Em termos econômicos, a responsabilidade social corporativa, de acordo com Marc T.Jones e Matthew Haigh 23​​ envolve dois aspectos. O primeiro corresponde a uma maior internalização das externalidades negativas, enquanto o segundo diz respeito a maior geração de externalidades positivas. Portanto, em termos práticos, traduzidos a partir de uma linguagem econômica, envolve contribuições ao meio social em que está inserida, bem como a contenção de consequências negativas da produção empresarial, como a poluição ao meio ambiente.

Ainda de acordo com Jones e Haigh24[4], a responsabilidade social corporativa é baseada em valores éticos e morais, definidos por um sistema alheio ao corporativo. Portanto, no presente artigo, considerou-se a responsabilidade social corporativa como aspecto externo da cidadania, devido ao fato do conceito ser moldado, a partir de questões éticas e morais, advindas de opiniões externas às atividades empresariais.

Ressalte-se que Jones e Haigh25[4], todavia, avaliam o conceito de cidadania corporativa, a partir da propensão da empresa a assumir atividades de fornecimento próprias do Estado. Mencionam, por exemplo, que algumas companhias ocidentais de petróleo, localizadas em Serra Leoa e Nigéria, têm instituído programas de educação básica, saúde e saneamento básico para as comunidades locais.

Nesse ponto, para o autor, a cidadania implica a própria assunção de questões básicas devidas pelo governo, por parte das empresas. No presente artigo, entretanto, defende-se que a discussão acerca da possibilidade de uma empresa ser cidadã não envolve, por parte delas, assunção de atividades estatais.

Ressalte-se, novamente, que o acordo, ou não, em relação à possibilidade de a empresa ser considerada como um cidadão não afasta a importância do estudo da categoria da cidadania corporativa. Havendo base ou não em uma teoria cidadã, o conceito já foi incorporado à rotina das empresas e merece a devida análise de seus efeitos legais.

A adoção da cidadania corporativa implica que os seus usuários demonstrem o devido cumprimento das leis. Nesse sentido, em relação ao seu aspecto interno, o termo compliance vem sendo tanto usado quanto o conceito de cidadania corporativa. Sugere-se, no presente trabalho, que o primeiro integra o segundo, ou seja, o compliance apresenta-se como um dos aspectos legais no âmbito interno da empresa que integra o conceito de cidadania corporativa.

Deve-se esclarecer que não há uma definição precisa do que venha a ser o compliance. É comum encontrar definições genéricas, considerando que o termo significa o cumprimento de normas. Por exemplo, para Luis Roberto Antonik26[2], o termo compliance tem origem na língua inglesa, to comply, verbo utilizado para indicar o ato de respeitar regras, instruções, normas, diretrizes ou a um comando.

Averiguando alguns documentos voltados ao compliance, como o Summary of World Bank Group Integrity Compliance Guidelines (2010), pode-se compreender que envolve medidas preventivas, a cargo das empresas, a fim de assegurar o cumprimento de normas e evitar a prática de condutas ilícitas, como corrupção, suborno, práticas anticompetitivas, entre outras.

Entretanto, é um esforço que parte dos próprios entes privados, uma atividade prévia de identificação de riscos e implantação de programas internos que inibam a ocorrência de condutas ilegais. Nessa linha, importante destacar:

É por isso, inclusive, que o Estado incentiva sua adoção. Ao pensar sobre os motivos pelos quais a Administração incentiva os programas de compliance, nota-se que se trata de uma espécie de compartilhamento de uma atividade própria do poder público com os agentes privados. Ou seja, entende-se que a sociedade tem algo a ganhar se for criado um incentivo para que as próprias empresas sejam parcialmente responsáveis por garantir o cumprimento da legislação.

Evidentemente, o Estado não abdica dessa atividade (e nem poderia fazê-lo), mas conscientemente confere aos agentes privados um papel maior na observância da lei, criando incentivos palpáveis para as empresas que desenvolverem um programa efetivo de compliance27[5].

Interessante perceber que o compliance, enquanto maneira de as empresas de autorregularem, é incentivado pelo próprio Estado, conforme afirmado pelos autores anteriormente.

Nesse ponto, a fim de orientar as atividades das empresas, surgem códigos de conduta, normas internas, por elas próprias produzidas, em conjunto ou individualmente.

Por fim, conforme anteriormente afirmado, de acordo com Corinne Gendron28[3], os riscos de uma cidadania corporativa envolvem também uma certa problematização da regulação econômica que confunde as categorias tradicionais de economia e política. Desse modo, resta nítido que novas configurações estão surgindo, como a autorregulação das empresas.

No presente trabalho, entretanto, não se admite que a situação seja completamente catastrófica. De fato, as relações de regulação, assim como as relações entre Estado, entes privados e economia têm se modificado a partir das últimas décadas do século passado. Portanto, resta aguardar as consequências desses novos contornos, enquanto construtores de novos meios autorregulatórios.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de cidadania corporativa ganha, atualmente, cada vez mais protagonismo em paralelo ao crescimento da apatia dos cidadãos. Nesse ponto, enquanto as empresas, progressivamente, apresentam-se como atores políticos preocupados com as questões sociais, a maior parte dos indivíduos passa a se encaixar na categoria de cidadão comum, preocupados apenas eventualmente com as questões públicas.

 Entretanto, ao averiguar as posições doutrinárias a respeito do conceito de cidadania corporativa, as respostas foram as mais divergentes possíveis. Identificou-se que, enquanto cada vez mais estudos apontam para a tentativa de incorporar esse novo conceito a uma das teorias existentes acerca da cidadania, mais distante são as respostas relacionadas aos problemas atuais.

 Dessa forma, a partir de um viés prático, o presente trabalho identificou dois aspectos atuais que envolvem o conceito de cidadania corporativa e que se distanciam da necessidade de se averiguar a identificação desse termo com a atividade cidadã.

 Certo que o novo termo aparenta refletir novas relações que surgem na sociedade moderna, sobrepondo-se sobre conceitos de regulação anteriormente assentados. Enquanto o novo termo abre espaço para garantir seu lugar na sociedade, enquanto meio de definição de estruturas regulatórias, ainda é cedo para definir se as consequências serão positivas ou negativas.

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6 REFERÊNCIAS

1

ACKERMAN, Bruce. Nós, o Povo Soberano – Fundamentos do Direito Constitucional. Tradução Mauro Raposo de Mello. Del Rey: Belo Horizonte, 2006. p.323.

2

​​ Ibid., p.324.

3

​​ Ibid., p.326.

4

​​ Ibid., p.326.

5

​​ Ibid., p.322.

6

​​ Ibid., p.327.

7

​​ WEAVER, Mathew. Labour flags up Brexit poll suggesting public regrets decision. The Guardian. 13 out 2017. Disponível em:< https://www.theguardian.com/politics/2017/oct/13/labour-flags-up-brexit-poll-which-suggests-public-regret-decision>. Acesso em: 13 nov. 2017.

8

​​ MOON, Jeremy. CRANE, Andrew. MATTEN, Dirk. Can Corporations be Citizens? Corporate Citizenship as a Metaphor for Business Participation in Society. Business Ethics Quarterly, Vol 15. N° 3, Jul. 2005, p. 429-453. Disponível em: < https://www.cambridge.org/core/journals/business-ethics-quarterly/article/can-corporations-be-citizens-corporate-citizenship-as-a-metaphor-for-business-participation-in-society/94BE660412D17EE62D5393739181B512>. Acesso em: 30 out. 2017. (DOI:10.5840/beq200515329). p. 429.

9

​​ Ibid, p. 447.

10

​​ Ibid., p. 433.

11

​​ PIES, Ingo. BECKMANN, Markus. HIELSCHER, Stefan. Concept of Corporate Citizenship Developed in Comparison With the Aristotelian Idea of Individual Citizenship. Business & Society. Vol. 53. N. 2, 2014, p. 226–259. Disponível em:< http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0007650313483484>. Acesso em: 10 out. 2017. (DOI: 10.1177/0007650313483484). p.227.

12

​​ Ibid., p. 240.

13

​​ Ibid., p.230-231.

14

​​ Ibid., p. 247.

15

​​ Ibid., p. 248.

16

​​ Ibid., p. 248.

17

​​ GENDRON, Corinne. L’entreprise citoyenne comme utopie économique : vers une redéfinition de la démocratie? Lien social et Politiques. N° 72, p. 57–74, 2014. Disponível em: < https://www.erudit.org/en/journals/lsp/2014-n72-lsp01577/1027206ar.pdf>. Acesso em: 20 out. 2017. (DOI: 10.7202/1027206ar). p.71.

18

​​ Ibid., p.71.

19

​​ JONES, Marc T. HAIGH, Matthew. The Transnational Corporation and New Corporate Citizenship Theory- A Critical Analysis. Journal of Corporate Citizenship. Vol. 2007. N° 27. Greenleaf Publishing, set. 2007, p.51-69. (DOI: https://doi.org/10.9774/GLEAF.4700.2007.au.00007). p.65-66.

20

​​ WOOD, Donna J.; LOGSDON, Jeanne M. Theorising Business Citizenship. In: Jörg Andriof. Malcolm McIntosh (orgs). Perspectives on Corporate Citizenship. Taylor and Francis: Sheffield, 2001. p.88.

21

​​ Ibid., p.86.

22

​​ Ibid., 84.

23

​​ JONES; HAIGH, op.cit., p.61.

24

​​ JONES; HAIGH, op.cit., p.61.

25

​​ JONES; HAIGH, op.cit., p.65.

26

​​ ANTONIK, Luis Roberto. Compliance, Ética, Responsabilidade Social e Empresarial- Uma visão prática. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. p.47.

27

​​ MENDES, Francisco Schertel. CARVALHO, Vinicius Marques. Compliance – Concorrência e Combate à Corrupção. São Paulo: Trevisan, 2017. p.31.

28

​​ GENDRON, op.cit., p.65-66.

www.scientificsociety.net

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