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ISSN: 2595-8402

DOI: 10.61411/rsc10594

Publicado em 02 de dezembro de 2023

REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 6, NÚMERO 1, ANO 2023

 

DÓ, RÉ, MI, FÁ SONS E SENTIDOS: A LEITURA MUSICAL E UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE LETRA/MÚSICA E ACORDES MAIORES E MENORES

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Ranieri Júnior Barbosa de Oliveira¹; Vlader Nobre Leite²; Roberto Remígio Florêncio³

 

¹Universidade de Pernambuco (UPE), Petrolina, Brasil

ranierijunior.adv@hotmail.com

²Universidade de Pernambuco (UPE), Petrolina, Brasil
vladernobre@gmail.com

³IF Sertão Pernambucano, Petrolina, Brasil

betoremigio@yahoo.com.br

 

RESUMO

A leitura musical se mostra enquanto uma leitura de mundo e uma leitura sensorial, é através dela que conseguimos compreender a música, construir significados e nos expressar enquanto sujeitos. Desse modo, surgem interpretações da música, a partir da leitura musical, que possibilitam o sujeito sentir diversas sensações, como a tristeza, a alegria, a nostalgia, ânimo, concentração e muitas outras, a partir do uso de acordes maiores e menores nas músicas. Pretende-se, neste estudo, através da pesquisa bibliográfica, analisar e comparar como se forma a leitura musical, e como ela é impactada pelo uso de acordes maiores e acordes menores nas músicas. Constatou-se que o uso de acordes maiores e acordes menores está diretamente ligado aos sentimentos e emoções provocados ao ouvir uma canção. Dado isso, através da análise de três canções (“Creep”, “Ave Maria Sertaneja” e “Dois Rios”), conseguiu-se atestar que o uso desses acordes é crucial para trazer completitude e significado às músicas, provocando, no sujeito que as ouve, sensações e emoções, contribuindo na imersão musical.

Palavras-chave: Leitura musical; Interpretação musical; Acordes maiores; Acordes menores.

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.ABSTRACT

The musical reading reveals itself as a reading of the world and a sensory reading, it is through it that we can understand music, build meanings and express ourselves as a human being. In this way, interpretations of music arise, from the musical reading, which enable the human being to feel various sensations, such as sadness, happiness, nostalgia, cheerfulness, concentration and many others, from the use of major and minor chords in the songs. It is intended, in this study, through bibliographical research, to analyze and to compare how the musical reading is formed, and how it is impacted by the use of major and minor chords in the songs. It was found that the use of major chords and minor chords is directly linked to the feelings and emotions provoked when we are listening to a song. Given that, through the analysis of three songs (“Creep”, “Ave Maria Sertaneja” e “Dois Rios”), it was possible to attest that the use of these chords is crucial to bring completeness and meaning to the songs, causing, in the listener, sensations and emotions, contributing in the musical immersion.

Keywords: Musical reading; Musical interpretation; Major chords; Minor chords.

 

1 INTRODUÇÃO

A música é uma forma de arte que acompanha a humanidade desde os tempos mais remotos. Ela possui um papel fundamental na cultura e na sociedade, sendo capaz de transmitir emoções, expressar ideias e contar histórias, transcendendo fronteiras culturais, linguísticas, geográficas e sociais. Sua relevância é incontestável, sendo uma forma de expressão coletiva e individual.

Partindo do viés individual, quando há o contato com a música, seja ela na forma apenas instrumental ou com letras (no idioma nativo ou não), há a ocorrência de uma interpretação que atribui valoração de sentido, a partir dos sentimentos, sensações e impressões que surgem diante do ato de ouvir, conectando-se às emoções subjetivas, fazendo existir experiências únicas para cada sujeito, bem como há uma valoração “genérica” do significado da música, ou seja, apesar da expressão e interpretação individual, também existe a construção do sentido coletivo na interpretação da música. Diante desse contexto, estamos diante de uma leitura, tanto individual quanto social. Posto isso, entende-se que, ao ler, os sujeitos mobilizam vários saberes e habilidades, pois “ler é, na sua essência, olhar uma coisa e ver outra” [27].

De acordo com Martins (1994), a leitura é uma atividade que envolve a compreensão e interpretação, visando à construção de significados, logo não se resume à decodificação de palavras, mas sim à capacidade de relacionar ideias, fazer inferências e estabelecer conexões entre diferentes informações e múltiplas linguagens. Assim, a leitura envolve “a compreensão, a interpretação, a reflexão crítica e a reconstrução do sentido do texto”[28]. Nesse sentido, Martins afirma que “a leitura é um processo de interação entre o leitor e o texto” (1994, p. 17), ou seja, é uma atividade que requer a participação ativa do leitor; trazendo essa reflexão à leitura musical, a relação é estabelecida entre a interação do leitor/ouvinte com a música/texto.

Insta também mencionar que a pretensão da presente pesquisa é versar sobre a leitura musical,como uma compreensão de mundo e uma leitura “sensorial”, a partir das emoções e sentimentos1 que ocorrem quando realizado o ato de ouvir música, afastando, assim, a clássica” leitura de partitura, que é feita por músicos, de forma técnica, para executar com precisão o ato de tocar um instrumento.

Desse modo, far-se-á uma análise da leitura musical enquanto uma leitura sensorial e leitura de mundo, que consiste em “um conjunto de experiências acumuladas pelos indivíduos e que, de alguma forma, interferem na sua relação com a leitura” [28]. Em outras palavras, refere-se à forma pela qual cada pessoa enxerga e interpreta o mundo à sua volta, impactando diretamente na sua compreensão e na sua interpretação, reafirmando que tal leitura é fundamental, uma vez que permite que se reconheçam as diferentes perspectivas e implícitos presentes na música. Assim, ao compreender a relação entre sua própria visão de mundo e as informações assimiladas, o leitor/ouvinte é capaz de vivenciar as ideias apresentadas.

Embora Martins (1994) não utilize o termo “leitura sensorial”, a autora destaca a importância da percepção sensorial, uma vez que afirma que ao ler, é necessário envolver os sentidos, como a visão e a audição (indispensável para a realização da leitura musical), para identificar os elementos que compõem a obra, como as palavras (nos casos de músicas com letras), as ideias e a carga simbólica que trazem as músicas. Além disso, Martins (1994) destaca a importância da imaginação na leitura, que permite que o leitor experimente as sensações provocadas pela melodia/música. Com isso, esta pesquisa volta-se para responder se a leitura musical se comporta como uma leitura semelhante às demais e como ela se faz mesmo diante de leitores que não possuem conhecimento científico musical, e como essa leitura se faz de modo intuitivo e espontâneo, de acordo com a percepção de mundo e sensorial de cada indivíduo.

Compreender a leitura musical também como uma leitura de mundo é crucial para compreender a magnitude do impacto musical intrínseco em cada ser que a escuta, visto que ela permite que o ouvinte compreenda a cultura e a história por trás de cada composição e se conecte com as emoções e experiências do compositor e as experiências que o próprio ouvinte/leitor se imagina quando está imerso na música. Cumpre lembrar também que, assim como na literatura, há uma grande importância entre a obra e o contexto, onde essa relação pode ser observada de diversas formas. Segundo Eagleton (2012, p. 18) [11], a obra é “uma espécie de termômetro da vida social e histórica”, pois reflete as tensões e contradições da sociedade em que é produzida. A obra é, então, entendida como um produto cultural que está inserido em um determinado contexto sócio-histórico, e que é influenciado por esse contexto em sua produção. Essa influência pode se dar de diversas formas: pelas condições de produção da obra, pela visão de mundo do autor, pelas demandas do mercado editorial ou pelas correntes estéticas e ideológicas de sua época.

Nesse viés, entende-se por gênero canção sendo um gênero híbrido, de caráter intersemiótico, resultante de dois tipos de linguagem: a verbal e a musical [7]. Nesse sentido, todo texto, por si, em razão da natureza simbólica inerente à linguagem, é multimodal [1]. E Trevarthen (2001) [34] afirma que “a música é uma forma de comunicação humana que transcende as palavras, permitindo que o músico se conecte com o mundo de uma forma mais profunda e significativa”. Por meio da leitura musical, o ouvinte pode compreender as nuances da música, desde a estruturação das notas e acordes até a interpretação dos cenários que são ofertados, potencializando o campo imaginativo do sujeito. Apesar de ser uma experiência singular, há, por trás de tudo isso, há uma experiência coletivamente compartilhada, ou seja, assim como, na leitura de mundo, há infinitas possibilidades de compreender e fazer leituras individuais, quando no campo da coletividade (experiência universal), sua socialização harmoniza-se com a experiência do(s) outro(s), ou seja, uma música considerada melancólica por um sujeito, independentemente de quais foram as formas com que ele chegou a essa leitura, curiosamente estará de acordo com a leitura que outro ouvinte fez, que também a considerará melancólica. Percebe-se, portanto, que, a um só tempo, a leitura musical assume uma dimensão subjetiva (individual) e uma dimensão social (coletiva).

Fenômeno profundamente relacionado a vivências históricas, culturais, sociais,

estéticas e, claro, ideológicas. Em síntese, todo sujeito é constituído historicamente.

Realizar tais leituras de obras musicais está, majoritariamente, relacionada ao uso de acordes maiores e acordes menores. Um acorde musical é um conjunto de três ou mais notas tocadas simultaneamente. Essas notas são espaçadas em intervalos específicos, geralmente em terças. A nota mais baixa de um acorde é chamada de fundamental ou tônica, e as outras notas são chamadas de terça, quinta, sétima e assim por diante, dependendo da quantidade de notas presentes no acorde. De acordo com diversos estudos na área da psicologia da música, acordes maiores estão frequentemente associados a sentimentos de alegria e felicidade. Segundo Huron (2006) [20], a tonalidade maior em acordes é tipicamente vista como “luminosa” e “alegre”, enquanto a tonalidade menor é frequentemente associada a sentimentos de tristeza e melancolia. Esses estudos atestam que a escolha desses tipos de acordes podem ser ou são sugestões dos compositores como forma estratégica e efetiva para evocar emoções alegres ou tristes na música. Essa estratégia é muito mais intuitiva quando a obra musical apresenta uma letra, pois há esse diálogo entre melodia e letra.

Entretanto, ainda que a obra musical não contenha letra, essa evocação de emoções permanece inteiramente na música, e um exemplo disso é a obra A l'aube du dernier jour, op. 33, do compositor francês Francis Kleynjans, premiado no 22º concurso de Composição de Radio France, em 1980. A l'aube du dernier jour é uma obra descritiva que usa diversos recursos extramusicais para contar uma história baseada em acontecimentos da Revolução Francesa, evocando a atmosfera de “La Terreur” (o terror) quando os condenados eram executados na guilhotina, que continuou a ser utilizada até 1977 [2].

A obra retrata musicalmente a ideia de um amanhecer no último dia da existência humana na Terra, sem sequer dizer uma palavra. Tal canção começa com uma atmosfera tranquila e calma, que gradualmente se torna mais intensa e dramática, simbolizando a aproximação do fim. O violão é usado para criar uma variedade de texturas e efeitos sonoros que evocam imagens de um mundo que está chegando ao fim para um homem condenado à morte. O uso de acordes dissonantes e o contraste entre os sons graves e agudos ajudam a transmitir essa sensação de tensão e inquietude. No entanto, a música não é apenas sombria e desesperadora. Há momentos de beleza e lirismo, sugerindo que, mesmo no fim do mundo, ainda há espaço para a contemplação e admiração pela beleza que existe no mundo. Mesmo sem a presença de uma letra ou contexto dado pelo compositor, “A L'aube du dernier jour” é uma reflexão musical sobre a mortalidade humana e a inevitabilidade do fim. Essa experiência demonstra a capacidade da arte de nos inquietar esteticamente e humanamente.

Diante disso, partindo do pressuposto de que todos realizamos interpretações, sentimos e nos expressamos através de obras musicais, muito pouco se discute, infelizmente, sobre a música enquanto leitura (afastada aquela leitura técnica de partituras e outras linguagens da Música enquanto ciência), uma vez que quando ocorre a interação do leitor/ouvinte/música, há a defendida leitura musical, enquanto uma forma de internalização e interpretação. Assim, a leitura e interpretação musical é realizada de forma independente, inerente ao ser, empírica, instintiva e intrínseca, na maioria dos casos sendo feita de forma inconsciente, e sem a dimensão da complexidade existente neste ato, assim como o ato de ler. Nesse contexto, compreender a importância da leitura da música para a vida humana é fundamental para compreender os simbolismos que acompanham a humanidade, pois como cita o antropólogo Gilberto Velho, “o ser humano é um ser simbólico, capaz de criar e recriar significados que orientam suas ações e relações sociais” [35]. Para o autor, é por meio desses elementos simbólicos que o indivíduo se relaciona com o mundo e com os outros, e constrói, assim, sua identidade.

Assumindo, portanto, diante de tal problemática, o presente artigo propõe-se a discorrer sobre a assimilação da música enquanto uma leitura, em que os mesmos “pressupostos” das leituras academicamente aceitas/reconhecidas são aplicados para a interpretação e assimilação do sentido que a obra musical carrega. Além disso, é de extrema importância analisar como esse processo de identificação e interpretação é realizado, comparando-se a outras formas de leitura, principalmente a leitura de mundo.

Com isso, este estudo embasa-se em pesquisa bibliográfica e apresenta contribuição de grandes teóricos como o conceito de leitura [28], o conceito de música e comunicação [34], com os conceitos de acordes e as emoções [20], com a relação entre a música e sua leitura de mundo [31], os conceitos da formação de identidades a partir da música [36] e a música e sua interação com as emoções [12].

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2LEITURA MUSICAL: UMA BUSCA POR SIGNIFICAÇÕES

É através da expressão que os seres humanos articulam e desenvolvem a comunicação uns com os outros, através de sua linguagem, seja ela de movimentos, emissão de sons, gestos, desenhos ou tantas outras formas de se expressar que constituem a relação de comunicação. Através das manifestações de expressão, há nas relações de comunicação uma infinita busca por atribuir sentido e significado, e isso ocorre de forma individual e coletiva, constante e automática. Diante de todas essas práticas dos seres humanos, é inegável que, juntamente com a cultura e as práticas dos indivíduos em sociedade, constituem uma linguagem. Com isso, de acordo com Santaella (apud ERTHAL, 2016, p. 22) [13], todas essas práticas de expressão geram a emissão e transmissão de significado, seja um som emitido ao sentir dor, um grito para expressar raiva, um gesto como pedido de calma e até mesmo o silêncio constituem significados, e tudo isso se forma enquanto linguagem. Assim, “o homem passa boa parte de seu tempo desvelando significações, interpretando os sentidos para ele transmitidos pelos signos” (SANTAELLA apud ERTHAL, 2016, p. 22) [13].

Diante desse cenário, é impossível desvencilhar os indivíduos do ato constante por busca de significado e sentido, e assim, “é mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento do mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto” ​​ [21], pois a leitura é um processo ativo e interativo, e, portanto, é pela leitura que essa busca é saneada, visto que, ao realizar a leitura, conseguimos inferir e compreender o sentido, pois “a compreensão, a interpretação, a reflexão crítica e a reconstrução do sentido do texto” ​​ [28]. No mesmo viés, nota-se que a leitura e construção de sentido também passa por uma interdisciplinaridade, submetendo-se a elementos sociais e cognitivos.

E nesta fase, o processamento textual só se configura, segundo Koch (2004), em sua interrelação com outros sujeitos, sob a influência de uma complexa rede de fatores, entre os quais a especificidade da situação, o jogo de imagens recíprocas, as crenças, as convicções, atitudes dos interactantes, os conhecimentos (supostamente) partilhados, as expectativas mútuas, as normas e convenções socioculturais (COSTA, 2010, p. 120) [8].

Assim, tais elementos sociais também fazem parte diretamente da construção dessa significação, conforme afirma Koch (2003, p. 18):

Os parceiros da comunicação possuem saberes acumulados quanto aos diversos tipos de atividades da vida social, têm conhecimentos na memória que necessitam ser ativados para que a atividade seja coroada de sucesso. Essa atividade é motivada por fatores de ordem social e interativa, há um que dizer diante de uma situação posta e há conhecimentos que são partilhados ou construídos no ato dessa interação. [24]

Na leitura, a busca pelo significado é uma atividade ativa e demanda, sobretudo, a participação da pessoa que lê, ou seja, o leitor. É preciso “enfrentar o texto, esforçar-se para compreendê-lo e interpretá-lo” [28]. Dessa forma, a leitura é uma atividade que exige a construção de sentidos, que podem variar de acordo com a experiência e o conhecimento prévio do leitor. Utilizando dos conceitos da leitura muito bem solidificados por Martins (1994), é inegável que a leitura é fundamental na significação para construção de sentido. Apesar da autora direcionar a sua pesquisa para o campo do texto escrito, os conceitos firmados são de clareza evidente para compreendermos a leitura musical também como um ato de ler, interpretar e buscar significação através dessa leitura, que inclusive sofrem das mesmas variações de acordo com a experiência do leitor/ouvinte e do conhecimento prévio deste. A analogia ora defendida é claramente expressa quando nos direcionamos para agregar os leitores enquanto ouvintes e os escritores como compositores ou intérpretes musicais.

A leitura musical é uma forma de leitura que não se limita em decifrar de notas, acordes e símbolos musicais; é uma leitura que envolve a compreensão dos elementos que compõem a música, bem como as sensações que são provocadas a partir dos sons ouvidos, que despertam significados. Nesse sentido, a leitura musical pode ser compreendida também como uma leitura de mundo, pois permite ao leitor compreender e interpretar a linguagem musical, que é uma das formas mais ricas e expressivas de comunicação humana.

A leitura de mundo é um conjunto de experiências acumuladas pelos indivíduos e que, de alguma forma, interferem na sua relação com a leitura. [...] A leitura de mundo implica a compreensão de que cada texto reflete, em maior ou menor grau, as condições de produção, as intenções do autor e as ideologias dominantes [28].

Ao fim, Martins atesta que “a leitura crítica pressupõe o desenvolvimento da capacidade de leitura de mundo, ou seja, de reconhecimento das múltiplas perspectivas e ideologias presentes nos textos” (1994, p. 23).

Reiterando novamente o olhar da leitura nas obras musicais, de acordo com os estudos de Dias (2008) [10], a leitura musical não se limita à engessada decodificação de símbolos, mas sim à compreensão de diversos elementos que compõem a música, como ritmo, melodia e harmonia. Essa compreensão profunda da linguagem musical permite ao indivíduo interpretar e expressar emoções e sentimentos por meio da música, além de desenvolver a percepção auditiva e a capacidade de criação musical [36], e isso tudo agrega a tão mencionada busca insaciável do ser humano das significações nas leituras que faz.

Santos (2014) [31] destaca que a leitura musical enquanto uma leitura de mundo, permite ao leitor compreender e interpretar a cultura e a sociedade em que está inserido, bem como se comunicar e se expressar por meio da linguagem musical. Desse modo, a compreensão da linguagem musical, em sua complexidade e diversidade, consegue evidenciar sua importância na formação de indivíduos críticos e conscientes em relação à cultura e à arte [32]. Com isso, Vieira (2012) também enfatiza a relação entre a leitura musical e a formação de identidades culturais, destacando que a aprendizagem musical envolve não apenas a aquisição de habilidades técnicas, mas também a compreensão de valores e atitudes expressos na música.

Além disso, a leitura musical também se constrói enquanto alicerce para a formação de valores éticos e estéticos, bem como para a construção da identidade cultural e para a sensibilidade artística dos leitores, sendo uma forma única de se expressar e se sentir compreendido. É através dessa leitura que os sentidos e significações criam vida e trazem ao leitor/ouvinte uma infinidade de possibilidades de construção do significado, contribuindo assim para interpretação da música de forma individual e coletiva. Uma vez que o processo de interpretação ocorre de forma autônoma, não significa dizer que não há conversa com a interpretação coletiva, pois essa compreensão das emoções e sentimentos expressos na música dialogam entre si e constituem um outro sentido coletivo, tudo isso é justificado pela cultura:

Cultura pode ser definida como membro de uma comunidade discursiva que compartilha um espaço social comum e história e imaginários comuns. Mesmo quando eles saíram dessa comunidade seus membros podem reter, onde estiverem, um sistema comum de padrões de percepção, crença, avaliação e ação. Esses padrões são o que geralmente chama-se cultura ​​ [25].

A linguagem musical é capaz de transmitir, através da leitura musical, diversas sensações, como a alegria, tristeza, nostalgia, ânimo, concentração, entre outras, que são sensações que cada indivíduo possui internalizada de uma forma muito pessoal, porém todas elas se entrelaçam com os contextos sociais, históricos e culturais que os indivíduos leitores/ouvintes estão inseridos, bem como com o contexto em que a música foi criada, solidificando a sua relação social, estabelecendo também o seu “significado geral”.

A partir de então surgem as indagações: Como a leitura musical é realizada? Como essa leitura ocorre se a maioria dos indivíduos que fazem a sua leitura não possuem conhecimento científico da música? Como a leitura musical se assemelha às leituras “convencionais”? A resposta para tais perguntas encontra-se também no conceito de leitura de mundo e leitura sensorial, já debatidos neste artigo. “A leitura de mundo implica a compreensão de que cada texto reflete, em maior ou menor grau, as condições de produção, as intenções do autor e as ideologias dominantes”[28]. Transpondo o conceito para música, a compreensão é entendida como o reflexo que a obra musical possui, como sua expressão é mais ou menos forte em cada fragmento, como o autor da obra e o seu contexto significam para a assimilação da leitura dessa obra, pois conforme Candido (1965)[6] “toda obra é determinada por sua época, classe social, ideologia e também pelas condições em que se processa a criação”. Compreende-se então que a obra não é um produto isolado, mas sim fruto de um conjunto de influências que incluem o momento histórico, o ambiente cultural, as relações sociais e as experiências pessoais do autor.

A obra não é apenas influenciada pelas condições sociais e históricas, mas também pelas formas de conhecimento e de pensamento que predominam em determinado momento. Assim, a relação entre obra e contexto é multifacetada e complexa, envolvendo diversas dimensões culturais e históricas. Para ilustrar o mencionado, imagine-se um artista compondo sobre uma amarga perda de um ente querido, certamente, para os leitores musicais, não sobram muitas interpretações da perda sofrida senão como algo triste, que traz dificuldades e cicatrizes para a existência humana. Essa leitura ainda é mais apurada quando o leitor também vive ou viveu a dor de uma perda. Assim, a leitura de mundo exige uma compreensão mais ampla do contexto em que o texto foi produzido, levando em conta as condições históricas, sociais e culturais da época. Além disso, a leitura de mundo requer uma postura crítica por parte do leitor, que deve ser capaz de avaliar de forma consciente e reflexiva as ideias apresentadas nos textos [28]. Dessa forma, a leitura musical, assim como a leitura de mundo, é uma atividade que exige uma postura ativa e crítica do leitor/ouvinte, que deve ser capaz de compreender e interpretar as obras musicais a partir de uma perspectiva mais ampla, levando em conta as diferentes influências sociais, culturais e históricas que os permeiam.

Desse modo, enxerga-se a leitura musical como uma leitura multimodal, que pode ser definida como um processo de compreensão e interpretação de textos que envolve a integração de múltiplos modos de comunicação, como texto, imagem, som e movimento. Essa abordagem reconhece que a linguagem não é limitada apenas à palavra escrita (no caso da música, o conceito é análogo quando tratamos de músicas com ou sem letra), mas também inclui outros meios de comunicação que podem ser usados para transmitir informações e significado, assim, “A leitura multimodal se refere à prática de ler textos que integram dois ou mais modos de comunicação, tais como imagens, sons, vídeos e textos escritos, que se complementam para transmitir significados complexos e profundos” [3].

Do mesmo lado, também temos a leitura musical realizando-se também como uma leitura sensorial, ou seja, há um olhar para as nuances e sensações que o ato de ouvir obras musicais proporciona, agindo no campo da sinestesia22. Na música, a sinestesia pode ser usada como um recurso criativo para criar experiências musicais mais ricas e envolventes. Por exemplo, um compositor pode criar uma peça musical que evoca cores específicas em sua audiência, ou uma performance musical pode ser combinada com elementos visuais, como iluminação e projeções, para intensificar a experiência sensorial da música. Assim, o olhar sensorial traz consigo o campo da interpretação e leitura gerada a partir das emoções e sensações que a música transmite em cada pessoa, e isso ocorre de diversas maneiras e em diversos graus. Um exemplo prático dessa leitura é quando nos deparamos com uma música estrangeira, com uma letra que não compreendemos por se tratar de letra estrangeira, mas conseguimos sentir “algo diferente”, pois a leitura musical está sendo realizada a partir da densidade da música, os detalhes dos sons, os acordes, as nuances dos instrumentos.

“A leitura sensorial procura desenvolver a capacidade de observação, a atenção aos detalhes e a percepção das impressões e sensações geradas pelos textos” [28]. Dessa forma, os leitores/ouvintes vão além do que a música puramente proporciona, explorando o campo das possibilidades sensoriais, e assim “A leitura sensorial é uma forma de mergulhar no mundo dos sentidos, de perceber as nuances da linguagem, de apreciar a musicalidade das palavras e de saborear as imagens e metáforas presentes nos textos”[28]. Dessa forma, a leitura sensorial é uma abordagem que busca ampliar as possibilidades de leitura, envolvendo os sentidos e as emoções na compreensão e interpretação das músicas.

Muitas dessas leituras aplicadas na significação e interpretação da música estão diretamente ligadas ao uso de acordes maiores e acordes menores na composição da melodia musical, que são diretamente responsáveis pela direção da sinestesia na leitura. O uso específico de cada um deles (acorde menor ou acorde maior) é gigantesco para melhor expressão a sensação que será passada, bem como a interpretação que será feita. Com isso, há uma enorme força e direcionamento a partir do uso de cada um dos acordes, pois transmitem energias e sensações diferentes. No tópico a seguir, se compreenderá como se dá a ocorrência dos acordes menores e dos acordes maiores e como eles impactam diretamente na leitura musical.

 

3UMA SEPARAÇÃO DE MEIO-TOM QUE DIVIDE AO MEIO DUAS ENERGIAS

Muito conhecidas são as notas musicais e, muitas vezes, são confundidas com acordes. As notas musicais são as sete notas que compõem a escala musical ocidental: dó (C), ré (D), mi (E), fá (F), sol (G), lá (A) e si (B). Apesar de serem conhecidas por seus nomes, para facilitar a sua identificação, as notas musicais são nomeadas de acordo com as primeiras sete letras do alfabeto: A, B, C, D, E, F e G. A palavra “acorde” tem origem etimológica do latim cor (coração), ou seja, o ad cordis era utilizado quando havia algo em “acordo” com o coração, algo que corria em harmonia com as notas musicais.

Os acordes são a combinação simultânea de três ou mais notas diferentes tocadas ao mesmo tempo. Essas notas podem ser tocadas em conjunto ou em sequência, mas quando tocadas simultaneamente, formam um acorde. Então, quando alguém se refere ao dó maior (C), está se referindo ao acorde de dó maior, que é a junção da sua tônica (a nota fundamental), a sua terça e a sua quinta, que são respectivamente a nota dó (C), a terça mi (E) e a sua quinta que é o sol (G). Os acordes menores seguem a mesma linha de raciocínio, porém, quando comparado ao mesmo acorde, eles diferem em sua terça, visto que os acordes menores têm meio-tom (em relação aos acordes maiores) a menos em sua terça. Mas afinal, para que servem esses conceitos na leitura musical? Para absolutamente nada, exceto quando se está estudando teoria musical e suas subjetividades, que são muito importantes. Para explicar tais fundamentos sobre o viés da leitura musical defendida por este artigo, iremos aplicar os conceitos de leitura de mundo, leitura sensorial e musical vastamente discutidos neste estudo.

Ponderados os conceitos da teoria musical, partiremos então para o campo dos sentidos e da sinestesia, efetuando diretamente a leitura musical. Viu-se que a diferença entre um acorde menor e um acorde maior, do ponto de vista da teoria musical, está diretamente ligado à sua terça, ou seja, ao meio-tom que separa as suas terças, sendo elas menores ou maiores. Ocorre que, do ponto de vista da leitura e interpretação musical, a distinção dos acordes está na energia e no campo sensorial/de mundo que o leitor/ouvinte se utiliza para atribuir significação. Na prática, ao ouvir um acorde, através das sensações que este gera, o leitor/ouvinte consegue interpretá-lo como acorde menor ou acorde menor, sem a necessidade de ter o conhecimento prévio da teoria musical, ou sem precisar ver a tablatura e/ou cifra do acorde.

Para ilustrar e aplicar a realização da leitura musical, na prática, fica o convite para uma experiência com os acordes. Imaginar o seguinte contexto, com os seguintes elementos: uma graciosa princesa, que está em um pequeno bosque, atrás de uma árvore, enquanto passa um cavaleiro em seu bravo cavalo. Tendo esse contexto em mente, ouvir, primeiramente, um acorde maior, neste caso o acorde de dó maior através do seguinte link: https://drive.google.com/file/d/1bYSl23zzFqaYiU813EFaWrZ6be39HqZj/view usp=share_link.

Em uma avaliação quase que de forma mágica, consegue-se atestar que a leitura musical realizada, ao imaginar o contexto descrito enquanto é reproduzido o acorde de dó maior, se antecipa uma sensação, gerando um possível cenário onde a graciosa princesa pode estar apaixonada pelo cavaleiro e os dois estão na floresta para viver uma cena alegre e romântica, ou seja, em linhas gerais, a interpretação feita é de que há um animus feliz.

Por sua vez, ao ouvir o mesmo acorde dó (C) em sua configuração menor (Cm), a leitura musical se comporta de forma muito diferente. Deve-se imaginar o mesmo contexto com os mesmos elementos, enquanto se escuta o acorde de dó menor (Cm) a partir do seguinte link: https://drive.google.com/file/d/1SI-WV3Cg481G7JtXO6rX9X4Mr1DVGSBc/view? usp=share_link.

Em contrapartida, à primeira avaliação, consegue-se atestar que a leitura musical realizada a partir do acorde menor é bastante diferente do acorde maior. Ao ouvir o acorde de dó menor (Cm), o leitor/ouvinte imagina um cenário onde a princesa pode ter passado por um cenário melancólico com o cavaleiro, uma quebra no possível romance entre os dois, uma possível impossibilidade de ambos estarem juntos por suas classes ou que o cavaleiro precisa partir para uma batalha e deixará a princesa, ou seja, através da leitura musical, há uma interpretação de uma cena triste e de energia melancólica.

Dado isso, consegue-se dimensionar a importância da leitura musical e de sua relevância para o processo de atribuir significado a partir do campo sensorial. Tal interpretação é tão importante que é capaz de explicar o porquê nós conseguimos “sentir” o significado de músicas que sequer sabemos o real significado das letras cantadas, bem como as músicas puramente instrumentais, e também as trilhas sonoras. A dita leitura é o modo em que conseguimos atribuir sentido e significado a partir do contato com as obras musicais, e em sua maioria, o significado gerado é decorrente do uso de acordes maiores e acordes menores utilizados pelos compositores, de forma proposital ou não, ao escreverem suas obras. Com isso, entenderemos como esses acordes funcionam para o uso da leitura musical.

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3.1 ACORDE MAIOR: ABERTURA À ALEGRIA

Como foi visto, entre os recursos musicais que podem ser utilizados para transmitir emoções, a escolha de acordes é um elemento fundamental. A tonalidade maior é tipicamente associada a sentimentos de alegria e felicidade. Os acordes maiores são caracterizados por uma sonoridade “aberta” e brilhante, que muitas pessoas acham agradável e alegre. Eles são geralmente usados em músicas com letras positivas e melodia cativante, o que pode reforçar a associação entre acordes maiores e emoções positivas.

Uma das razões pelas quais acordes maiores são frequentemente associados a emoções positivas é que estes têm uma estrutura estável, o que significa que, geralmente, estão em harmonia com outras notas na música. Essa estabilidade pode ser percebida como uma sensação de resolução ou conclusão musical, que pode evocar sentimentos de contentamento e satisfação.

Como foi experimentado no tópico acima, os acordes maiores têm capacidade de antecipar sensações alegres, e ajudar na leitura e interpretação de cenas, traduzindo o contexto delas a partir do som ouvido, ou seja, o mesmo contexto pode ter sua leitura modificada a partir do uso de um acorde específico. Neste caso, o dos acordes maiores, a significação realizada está diretamente atrelada a emoções e percepções alegres e “solares”, de boa sensação.

Destarte, estudos na área da psicologia da música têm mostrado que acordes maiores são frequentemente percebidos como “luminosos”, “abertos” e alegres [16]. Essas associações entre acordes e emoções parecem ser universais, uma vez que estudos transculturais têm mostrado que pessoas de diferentes culturas e origens musicais tendem a associar acordes maiores com sentimentos de felicidade e acordes menores com sentimentos de tristeza [12]. Além disso, estudos de neuroimagem mostram que a música em tonalidades maiores ativa áreas cerebrais associadas a emoções positivas, como o córtex pré-frontal e o núcleo accumbens [5]. Esses resultados sugerem que a escolha de acordes maiores pode ser uma estratégia efetiva para evocar emoções alegres na música. A ligação entre acordes maiores e sentimentos alegres é um fenômeno bem estabelecido na psicologia da música, pois os acordes maiores são frequentemente associados a emoções positivas, como felicidade e alegria, devido à sua estrutura estável e brilhante.

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3.2 ACORDE MENOR: MAIOR MELANCOLIA

Os acordes menores têm características mais “fechadas” e “sombrias” vastamente associados a sentimentos melancólicos. Eles são frequentemente usados em músicas com letras tristes e/ou melancólicas, o que pode reforçar a associação entre acordes menores e emoções negativas. A melancolia é um estado emocional caracterizado por tristeza, desânimo, desesperança e falta de prazer em atividades que normalmente seriam agradáveis. “A melancolia é o luto sem um objeto, o vazio sem razão, o cansaço sem fim” [26]. Essa associação ocorre pelo fato desses acordes causarem uma sensação de incompletude ou de uma má resolução no que é ouvido, o que significa que em uma música, estes acordes, quando usados com outros acordes, acabam causando uma quebra de expectativa, criando uma tensão num “ambiente musical" que possuía uma estabilidade, e assim, gera a sensação de “estranheza” e queda de emoção, causando o reforço da tristeza e melancolia.

Foi demonstrado em exemplo da aplicação da leitura musical feita anteriormente, quando ocorre o contexto da princesa e do cavaleiro na floresta sob a trilha sonora do acorde menor há a incidência de uma leitura musical voltada para situações e hipóteses tristes e até mesmo trágicas. Assim, a tensão gerada pela carga emocional que o acorde menor possui faz com que a interpretação se limite a emoções e significações sombrias, fechadas, tensas e melancólicas.

Estudos em psicologia da música e neurociência mostraram que a audição de acordes menores tem um efeito negativo no humor e na emoção das pessoas. Por exemplo, um estudo mostrou que os participantes relataram sentir mais tristeza e melancolia ao ouvirem músicas em acordes menores do que em acordes maiores [19]. Além disso, outro estudo de Hunter e Schellenberg (2010) mostrou que a maioria das pessoas classifica trechos musicais que contém acordes menores como tristes ou melancólicos, enquanto acordes maiores são geralmente associados a emoções positivas, como alegria e felicidade. Como mencionado, os acordes menores são caracterizados por uma sonoridade "fechada" e "sombria", que pode transmitir emoções de tristeza e melancolia. A literatura sugere que a associação entre acordes menores e tristeza pode ter uma base evolutiva. Por exemplo, estudos mostram que a música com acordes menores é universalmente associada a emoções negativas em diferentes culturas.

Embora a relação entre acordes menores e emoções negativas seja robusta e consistente, é importante destacar que essa relação não é completamente determinística, e vários fatores podem influenciar as emoções que a música evoca. Por exemplo, a velocidade da música, o timbre dos instrumentos, o contexto cultural em que a música é produzida e ouvida, bem como as expectativas e experiências individuais de cada ouvinte, podem influenciar a maneira como a música é percebida e as emoções que ela evoca.

Dado o exposto, os acordes menores são amplamente associados a emoções negativas, especialmente tristeza e melancolia, e essa relação é fundamentada por teorias tonais e apoiada por vários estudos empíricos. No entanto, é importante considerar que a relação entre música e emoção é complexa e multifacetada, protagonizada pela leitura musical aplicada pelo leitor/ouvinte, e muitos fatores podem influenciar a maneira como a música é percebida e as emoções que ela evoca em diferentes contextos e indivíduos.

Na prática musical, a relação de contraponto entre acordes maiores e acordes menores é frequentemente utilizada para criar tensão e resolução na harmonia de uma música. Por exemplo, uma sequência harmônica que começa com um acorde maior, seguido por um acorde menor, pode evocar uma sensação de expectativa e tensão, que é então resolvida quando o acorde maior é retomado novamente. Essa sequência é conhecida como cadência autêntica, e é uma das mais comuns na música.

Os acordes maiores e menores são os dois tipos básicos de acordes na harmonia de uma música, e sua relação certamente é de contraste. Enquanto os acordes maiores são considerados estáveis e alegres, os acordes menores são instáveis e melancólicos. A relação entre eles se evidencia na leitura musical que cada indivíduo faz de forma interna e automática, o que possibilita uma ampla significação e atribuição de sentido a partir das leituras realizadas. Assim, todo esse processo de interpretação passa por múltiplas análises individuais para a construção de sentido. Ainda que respeitado e entendido o processo individual de cada leitor/ouvinte, cabe lembrar que também há a incidência de uma análise geral de cada obra musical, o que será feito no tópico a seguir, com algumas obras selecionadas.

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4ANÁLISE DA LEITURA MUSICAL EM OBRAS MUSICAIS

Compreendidos os conceitos da leitura musical, e como a sua significação é realizada, conseguimos então analisar a aplicação daquela em obras musicais. Como fora mencionado, entender o papel dos acordes maiores e os acordes menores nas músicas é de crucial importância para entender os porquês de cada significado, interpretação e leituras que fazemos ao ouvir.

Sabendo que os acordes trazem diferentes sensações e energias, é dispensado o uso de letras para atingir significados e passar uma mensagem, um grande exemplo disso é a mencionada obra A l'aube du dernier jour, op. 33 do compositor francês Francis Kleynjans, que diz muita coisa sem sequer “falar” uma palavra. Apesar disso, o modelo musical mais comum e mais apreciado é o que possui melodia e letras, e é então que estamos diante de uma infinidade de possibilidades. As possibilidades surgem perante as formas de apresentar múltiplas leituras e interpretações na relação letra/melodia. A lógica comum é de que as músicas que contém letras de atmosfera triste utilizem predominantemente acordes menores, e as letras de atmosfera alegre utilizem acordes maiores. No entanto, há como expressar-se também através da controvérsia, isto é, abordar uma temática com energia ou sentimento na letra, totalmente distinta do que a melodia propõe, ou seja, uma melodia feliz (com predominância de acordes maiores) pode ser acompanhada de letra triste, bem como o contrário. Além disso, o uso dessas “energias” tristes e alegres podem variar dentro de uma mesma obra.

Portanto, a partir da compreensão que os acordes garantem as “energias” da obra musical, e como essa energia é assimilada a partir do tipo de acorde utilizado, consegue-se apurar uma análise mais interessante acerca da construção da música por completo, englobando não somente o significado da letra, mas também, o significado que carrega a melodia. Dado isso, far-se-á uma análise de algumas obras que se utilizam de algumas características abordadas durante este artigo.

 

4.1O DESCONFORTO CONFORTÁVEL DE “CREEP”, DE RADIOHEAD

“Creep”, de autoria de Thom Yorke (CD Pablo Honey, Radiohead, 1993), faixa 3 do álbum Pablo Honey, e uma das músicas mais populares da banda Radiohead, foi lançada em 1992 como o single de estreia da banda. A música apresenta uma letra introspectiva e emotiva que fala sobre se sentir inadequado e deslocado em relação aos outros. A letra é escrita na primeira pessoa, que permite que o ouvinte “entre na mente do narrador” e experimente suas emoções de maneira mais direta e imediata, onde é transmitida uma sensação de vulnerabilidade e inadequação.

Ainda sobre a letra, ela captura a sensação de alienação e inadequação que muitos de nós experimentamos em algum momento de nossas vidas. Entende-se que esta, sugere que o narrador tem baixa autoestima e se sente deslocado e inadequado em relação aos outros. Ele se pergunta repetidamente “what the hell am I doing here?” (o que diabos estou fazendo aqui? - tradução livre), sugerindo a sensação de ser um estranho ou intruso em seu ambiente. Essa sensação de desconexão e alheamento é uma questão altamente introspectiva, pois se refere aos pensamentos e sentimentos internos do narrador.

O narrador (eu-lírico) expressa seus sentimentos por alguém que ele acredita ser inatingível, e a música sugere que ele pode ter feito algo para afastar essa pessoa. Sua temática geral é de algo altamente introspectivo, pois se referem às emoções internas do narrador. A música também é uma crítica aos padrões sociais e às expectativas que as pessoas colocam em si mesmas e nos outros.

Em resumo, a letra de “Creep” é uma reflexão sincera e emocionante sobre a insegurança, o deslocamento e alheamento, como também o desejo, com uma mensagem que é universal e atemporal. A música continua a ser uma das músicas mais icônicas do Radiohead e um hino para aqueles que se sentem diferentes ou marginalizados.

A partir de então, apesar da letra trazer questões de forma significativa, a melodia de Creep carrega também muitos simbolismos. A melodia é marcante e emotiva, com um arranjo simples e eficaz que complementa perfeitamente a letra introspectiva da música. A música começa com um acorde maior, o acorde de sol maior (G), que imediatamente estabelece uma atmosfera calma e estável nos seus primeiros três acordes (G, B e C), que é totalmente misturada com uma atmosfera sombria e melancólica, causada pela quebra do acorde de dó menor (Cm).

A voz do vocalista Thom Yorke entra suavemente, com um canto suave e controlado que se intensifica à medida que a música avança. A melodia principal é baseada em uma progressão simples de acordes (G, B, C e Cm), com notas altas e vibrantes que criam uma sensação de tensão emocional. Assim, a música gera dois grandes pontos de clímax musicais distintos, um na ponte antes do refrão e outro no próprio refrão. Na ponte, a melodia se eleva para uma seção instrumental com riffs3 de guitarra distorcidos e uma batida forte, criando uma sensação de angústia e desespero. No segundo, a melodia atinge seu clímax final com a introdução do verso “I'm a creep” (“eu sou um estranho” - tradução livre), que é cantado de forma cada vez mais intensa e emotiva. Com isso, a melodia é uma parte crucial do impacto emocional da música, permitindo que os ouvintes se conectem com a angústia e a vulnerabilidade do eu-lírico.

Tudo isso se dá pelo fato de a música utilizar uma progressão simples de quatro acordes (G, B, C e Cm) que se repetem durante toda a música. De todos os acordes utilizados, a sua maioria é composta por acordes maiores, que garantem essa sensação de estabilidade e sensações alegres, contrastados então pelo acorde de dó menor (Cm) que “bagunça” tudo. Com isso, o ouvinte passa pelo desconforto constante de sair da estabilidade e alegria dos acordes maiores, para a assumir para si a tensão causada pela transição do acorde de dó maior (C) para o dó menor (Cm). Assim, tudo isso se repete e o desconforto gerado pelo acorde menor que sempre finaliza a melodia é prontamente acalmado pelo acorde maior (G) que recomeça o mesmo ciclo. Assim, toda vez que o acorde menor (Cm) aparece, ele está diretamente ligado a um verso que tem um sentido triste como: “your skin makes me cry” (sua pele me faz chorar - tradução livre), You're so fucking special (você é especial para caralho - tradução livre), I don't belong here (eu não pertenço a este lugar - tradução livre), I want a perfect soul ( Eu quero uma alma perfeita - tradução livre) e I wish I was special (Eu queria ser especial - tradução livre). Dessa forma, assim como o acorde menor (Cm) “bagunça” a melodia e cria pontos de tensão e falta de estabilidade, ele também faz trilha sonora para os versos mais íntimos e melancólicos da canção.

Ainda nesse viés, a progressão melódica faz parte do campo harmônico do acorde de sol maior (G), porém, há de se observar que o acorde o acorde de si maior (B), neste campo harmônico, deveria aparecer em sua forma menor (Bm), assim como o acorde de dó menor (Cm) que tensiona toda a melodia. Como então explicar o suposto erro do Radiohead? tudo isso é respondido no simbolismo da própria música no geral. Assim como o acorde de si maior deveria vir em outra forma, é assim que o eu-lírico se sente durante os versos da música: alheio e deslocado, que deveria se portar ou ser de outra forma. Logo, apesar de ainda no quesito exato da ciência musical também haver uma explicação para esse desvio, não há como considerar um erro, pois é exatamente isso que o eu-lírico desabafa em seus versos: sobre ser um estranho. O acorde estranho sinaliza o ser estranho.

Também é notória a construção de uma letra com versos “confortáveis” enquanto repousa nos acordes maiores (G, B e C) e quando há um sentimento ruim, um expurgo, o compositor deixa para fazê-lo no acorde menor (Cm).

​​ Podemos recortar os seguintes versos: You float like a feather (você flutua como uma pena - tradução livre) /In a beautiful world (em um mundo bonito - tradução livre) /I wish I was special (Eu queria ser especial) /You're so fucking special (você é especial para caralho - tradução livre). No excerto, notamos que há, enquanto tocam os acordes felizes (maiores), uma descrição sincera e honesta sobre um “alguém”, que é especial para o narrador, porém o sentimento é partido (assim como o acorde menor parte a estabilidade e conforto da melodia) com um palavrão que evoca certa angústia, provavelmente provocada pela sensação de ser estranho, ou um “esquisitão”. A mesma sensação de “quebra de estabilidade” feita sob a trilha sonora do acorde menor é vastamente repetida no refrão, onde diz o narrador que não pertence a este lugar (I don't belong here). Com isso, notamos que a melodia é parte crucial para a significação da composição, carregando e gerando as sensações que despertam ao ouvir tanto a voz do intérprete que canta, como também os instrumentos que executam os acordes. Portanto, nota-se a extrema importância que os acordes têm para a construção de sentido e significado de uma obra musical, em que os supostos “erros” são, na verdade, ferramentas para expressão e reafirmação da mensagem passada.

 

4.2Do intimismo à invocação em “Ave Maria Sertaneja” na voz de Luiz Gonzaga

A canção “Ave Maria Sertaneja”, de autoria de Júlio Ricardo e Osvaldo de Oliveira (LP Sanfoneiro do Povo de Deus, Luiz Gonzaga, 1967), é a 3ª faixa do disco “Sanfoneiro do povo de Deus”, de Luiz Gonzaga, um dos mais importantes nomes da música brasileira. A canção é uma releitura da oração católica “Ave Maria”, com a letra adaptada para a cultura do povo nordestino. A música é uma demonstração da habilidade dos compositores, que conseguiram adaptar uma oração tão conhecida e reverenciada em todo o mundo para uma linguagem regional e popular, criando uma obra que é ao mesmo tempo, original e reverente.

Essa obra e sua letra começam com a saudação “Ave Maria, cheia de graça”, seguida por versos que fazem referência à imagem da Virgem Maria, mãe de Deus e mãe de todos os que creem. A letra também faz referência às dificuldades enfrentadas pelo povo sertanejo, como a seca e a falta de chuva, mas reforça a esperança de que Nossa Senhora possa interceder junto a Deus em favor do povo. O refrão da música reforça a devoção e a fé daquele povo, que se une para cantar a Ave Maria em louvor a Nossa Senhora. A letra termina com uma reafirmação da devoção a Nossa Senhora, pedindo que ela proteja e ilumine o caminho dos sertanejos. Em síntese, a letra de "Ave Maria Sertaneja" é uma expressão da religiosidade popular do Nordeste brasileiro, que mistura elementos da cultura católica com as tradições e crenças do sertão. A letra é uma manifestação da fé e da esperança do povo sertanejo, que encontra na oração à Nossa Senhora uma forma de enfrentar as adversidades da vida.

A sua melodia começa com um arranjo de violão, preenchido em alguns momentos pela sanfona, que cria uma atmosfera contemplativa, ajudando na evocação da imagem da Virgem Maria, marcada pela letra da música. Em seguida, a música ganha um “volume” maior com a entrada da sanfona, que é um dos instrumentos mais característicos da obra de Gonzaga, como também da música nordestina. A partir daí, ao longo da música, a melodia começa a alternar entre momentos mais suaves e delicados, quando a letra se concentra na devoção a Nossa Senhora, e momentos mais intensos e marcantes, quando a música evoca a esperança do povo sertanejo diante das dificuldades. No geral, a música utiliza uma progressão harmônica relativamente simples, com poucas mudanças de acordes. Isso cria uma sensação de estabilidade e de continuidade ao longo da música, reforçando a atmosfera de paz e devoção presentes na letra.

Os acordes utilizados no início da obra são “norteados” por um acorde menor (Em). O uso desse acorde marca um momento de “tensão”, pois faz trilha para os versos que falam sobre a oração do sertanejo que é feita de joelhos sobre o chão (“Quando batem as seis horas/de joelhos sobre o chão/O sertanejo reza / A sua oração”). Essa atmosfera regida pelo acorde menor é um padrão para os versos que precedem os refrões, pois todos seguem a atmosfera intimista da devoção à Nossa Senhora, momento de súplica para eufemizar a dor sertaneja, onde a fé sustenta e é pilar. Desse modo, é evidente que a atmosfera tensa, causada por um acorde menor (Em), é retratada na letra, narrando o momento íntimo de súplica do sertanejo pela intervenção divina. No caso dos versos iniciais, eles coordenados pelo acorde de mi menor (Em) contrastando com a alternância de outros dois acordes, dessa vez maiores (B7 e A), criando essa tensão e resolução, retratando o curvar-se perante o divino. Todo esse contraste ocorre durante os versos: “Quando batem as seis horas/de joelhos sobre o chão/O sertanejo reza”. Já no verso “A sua oração” há uma “preparação” protagonizada por dois acordes maiores (C e D) constroem a energia estável e exatamente na palavra “oração” do verso, o acorde menor (Em) é retomado, relembrando a quebra de estabilidade, simbolizando a curva do sertanejo perante o divino.

O cenário vira opostamente no refrão: o mesmo acorde mi menor (Em), desta vez transpõe-se para a sua forma maior (E), evidencia essa mudança. O contraste de energia é causado pelos acordes maiores que trazem a sensação de conforto e alívio, concedidos pelo apoio na fé. Ao contrário dos outros versos, o refrão da música é repleto de acordes maiores, que mudam a atmosfera tensa e intimista, trazendo à tona uma sensação de consolo e alívio para as dificuldades enfrentadas. Perceba que o refrão quase que inteiro fala sobre a Ave Maria, e há um pedido de força e bravura. Vejamos: (“Ave Maria/Mãe de Deus Jesus/Nos dê força e coragem/Pra carregar a nossa cruz”). No refrão citado, a incidência de acordes maiores (E, B, A, D e C) ocorre de forma majoritária, ou seja, quando se fala do divino, a melodia que a acompanha os versos do refrão é composta por acordes maiores, criando conforto, luz e estabilidade. Note também que a única incidência de um único acorde menor (Em) no refrão (que fala e pede coragem à divina Ave Maria), é quando se fala em carregar a própria cruz, onde o acorde menor faz trilha para o verso “Pra carregar a nossa cruz”.

Toda essa mudança é feita de forma muito perceptível porque o mesmo acorde mi, em sua forma menor (Em), é o responsável por coordenar os “versos tensos”, e quando transformado em sua forma maior (E), a troca de atmosfera se realiza. Com essa troca de tonalidade no acorde (o exato mesmo acorde), a sensação de alívio que a melodia causa também é reflexo da mudança de animus nos versos do refrão, que trazem paz através da devoção, tocando o coração de quem a ouve.

Nos últimos versos que precedem o último refrão (“Nesta hora bendita e santa/Devemos suplicar/A Virgem Imaculada/Os enfermos vir curar”), o padrão de versos regidos pelo acorde menor é mantido, retratando ainda o cenário do intimismo do sertanejo em sua oração, curvado perante o divino, pedindo cura aos enfermos. Mais uma vez, no último verso dessa estrofe (“Os enfermos vir curar”), há uma estabilidade feita por dois acordes maiores (C e D) constroem a energia estável, quebrada posteriormente pelo acorde menor (Em), preparando a canção para o último refrão que se repete.

Dessa maneira, a mudança de cenários que a melodia traz é muito perceptível, tudo isso por conta não somente da letra, mas também pela escolha de acordes (menores e maiores), que acentuam os momentos de intimismo tenso (curvatura ao divino), e, por outro lado, de paz, alívio e conforto. Dado isso, conseguimos atestar a grandiosidade da importância do uso de acordes maiores e menores em uma obra musical.

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4.3A dualidade de “Dois Rios”

A música “Dois Rios”, composição de Samuel Rosa, Lô Borges e Nando Reis (CD Cosmotron, Skank, 2003), é a 6ª faixa do álbum Cosmotron, da banda Skank. Trata-se de uma canção com uma letra profunda e simbólica, que aborda temas como amor, separação e esperança. A letra é composta por versos líricos e imagens metafóricas que evocam sensações e emoções no ouvinte. Retrata a descrição de uma paisagem natural, onde o narrador encontra-se em frente a dois rios. O cenário é descrito como um lugar que se encontra em paradoxo, (“O céu está no chão/O céu não cai do alto, é o claro, é a escuridão/ O céu que toca o chão/E o céu que vai no alto, dois lados deram as mãos”), uma espécie de agitação de elemento do mundo que promove a junção de dois opostos. Toda essa “oposição” e contraste paradoxal também é um reflexo na melodia, pois nos versos citados a trilha sonora é composta por acordes menores e acordes maiores, ou seja, há um contraste em alegre/estável e triste/instável.

Apesar de todo esse cenário, o pré-refrão4 e o refrão da música marcam uma “trégua” desse clima paradoxal, trazendo repouso e resolução, uma vez são formados por um cenário mais estável, marcado pelo uso de acordes maiores (E, D e F), ou seja, assim como há uma pausa em elementos distintos e paradoxos na letra, também há essa pausa na melodia, coordenados por uma escolha desses acordes maiores que trazem mais estabilidade, resolução e sensação de alegria. Dessa forma, quando a música chega ao seu pré-refrão e refrão, a mudança para a sequência de acordes maiores ajuda a criar uma sensação mais otimista de liberação e alegria, que complementa a mensagem de esperança e superação contida nos versos.

Logo, essa “bagunça” (melódica e lírica) é pausada pelo surgimento de um ato que acaba por transformar o eu-lírico. A passagem: “Como eu fiz também/Só pra poder conhecer/O que a voz da vida vem dizer” marca, na música, a instabilidade, e isso também é um reflexo que se transpõe para a melodia, uma vez que esse trecho é composto por acordes estáveis, ou seja, acordes maiores (E, D e F). Com isso, o pré-refrão marca uma pausa na “confusão paradoxal” tanto da letra quanto na melodia.

A partir daí, a letra retrata, agora no refrão, uma retomada do sentido sem contradições. O refrão diz: “Que os braços sentem / E os olhos veem / Que os lábios sejam / Dois rios inteiros / Sem direção”, marcando bem como o eu-lírico aprofunda-se e narra suas emoções e sentimentos. O refrão é cantado sobre a trilha de uma progressão acordes maiores e menores (A, C#m, F#m, C#m, Bm7, E e A) que vão se complementando, assim como é retratado na letra.

O pré-refrão pode ter uma melodia e letra diferentes do verso e do refrão, e geralmente é repetido algumas vezes antes de levar à seção do refrão principal.

Essa retratação melódica, ainda no refrão, é muito mais estável e a conversa entre acordes maiores e acordes menores é muito menos contrastada, fazendo reflexo do que ocorre no refrão da letra da música. Com isso, há uma variação de letra no refrão que é muito importante para entendermos o porquê dessa “estabilidade melódica”, em que os versos “Que os lábios sejam / Dois rios inteiros / Sem direção” são substituídos, doravante em definitivo, para “Que os lábios beijam / Dois rios inteiros”. Essa substituição é muito simbólica e significativa, uma vez que, estamos, nesse momento, diante de uma “trégua com os paradoxos”, ou seja, a dualidade (tanto na melodia quanto na letra) é pausada, e os “dois rios” que corriam em caminhos diferentes agora se encontram através dos lábios que beijam os dois rios por inteiro, juntando-os. A partir desse encontro, há uma libertação, um alívio da separação marcada pela dualidade, e isso também é um reflexo na progressão melódica da música que é composta por acordes (A, C#m, F#m, C#m, Bm7, E e A) que garantem essa atmosfera mais alegre e estável.

A obra retrata uma descrição poética dos “dois rios” que correm em paralelo, mas nunca se encontram, mas ao mesmo tempo, outros opostos e os até mesmo os dois rios “se encontram”, como é o caso de céu/chão, claro/escuridão, pé/mão, meu/seu e dia/noite [14]. Essas imagens simbolizam a dualidade, como também a dualidade humana, que muitas vezes temos duas ou mais opções diante de uma escolha e que isso pode nos levar a caminhos distintos. Essa metáfora é utilizada para falar sobre os encontros e desencontros que acontecem na vida e como eles podem mudar o rumo de tudo. A letra é repleta de imagens metafóricas para causar sinestesia como: “O céu está no chão”, “O céu que toca o chão”, “O Sol é o pé e a mão”, “E após se pôr, o Sol renasce no Japão”.

A partir daí, atesta-se a importância de se conectar com a vida e com as dualidades presentes nela. A voz da vida, mencionada na letra, é uma metáfora para a sabedoria que pode ser encontrada em nossas experiências e em nossas conexões. Bem atestada a dualidade na letra, a melodia também a acompanha no mesmo passo, sendo composta por acordes maiores e acordes menores, protagonistas e responsáveis por causar a sensação de dualidade dentro da melodia. Com isso, a música evoca sensações e emoções no ouvinte, causando sinestesia.

A melodia de “Dois Rios” é marcada por uma introdução que estabelece um clima introspectivo e melancólico. A canção é construída em torno de acordes simples (Bm, Bm7M, Bm6 e G), com uma harmonia que valoriza o clima suave, porém tenso e introspectivo da música, no entanto, apesar dos acordes serem simples, o seu uso é bastante complexo, para acompanhar o simbolismo, metáforas paradoxais da letra. Sua harmonia, caracterizada pela alternância de acordes maiores e menores, cria, repetidamente, o clima de expectativa, quebra de expectativa e emoção, misturados com tensão e resolução. Com isso, uma vez que a música fala sobre a dualidade da vida, a coexistência de opostos que se complementam, a melodia e harmonia da música são cruciais para transmitir essa ideia de maneira sutil e envolvente. Tudo isso ocorre através da alternância de acordes maiores e menores na harmonia da música, que trazem, na sua melodia, a representação das dualidades paradoxais da letra, dos momentos felizes e tristes que se sucedem ao longo da letra. A melodia suave e introspectiva da música também ajuda a transmitir essa ideia, criando um clima de reflexão e contemplação. Assim, a forma como esses acordes são alternados na música ajuda a transmitir as sensações de uma mistura narrada na letra, representando esses encontros e desencontros. A harmonia da música, assim como a letra, nos lembra a todo momento que estamos diante dessa dualidade. Isso é, mesmo se retirássemos a letra, a sensação de dualidade e paradoxo ainda seria compreendida, porém, neste caso, melodia e letra caminham juntas para significar a complexidade do simbolismo interpretada pelo Skank.

A forma como os acordes maiores e menores são combinados na música criam uma sensação de tensão e resolução. Os acordes menores são utilizados em momentos mais tensos e dramáticos da música (nos versos entre os refrões e pré-refrões), enquanto os acordes maiores são usados em momentos mais leves e descontraídos (pré-refrão e refrão). Essa alternância ajuda a criar um clima de expectativa e emoção na música, tornando-a ainda mais envolvente e impactante. Portanto, consegue-se perceber a importância que os acordes têm na construção de sentido dessa obra musical, que acompanham todo o seu simbolismo e carga. Tudo isso significa que a carga trazida pelas metáforas na letra também é carregada juntamente pelos acordes escolhidos na composição de melodia da música [15]. Neste caso, o Skank fez certas escolhas na composição de harmonia para causar uma maior imersão do ouvinte na sua obra, fazendo com que a significação pudesse ser muito mais intuitiva e sinestésica.

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5 CONSIDERAÇÕES

Muitos foram os desafios de aliar a essa leitura quando comparada a outras leituras, visto a quase nula bibliografia específica. Com isso, o artigo compreendeu a leitura musical a partir do viés de uma busca por significações e expressões, e que, neste caso, ocorre de forma automática e muitas vezes inconsciente. A partir disso, a leitura musical mostra-se como uma leitura de mundo, como também uma sensorial, que se apresenta a partir das sensações geradas e do conhecimento de mundo que é aplicado

Com isso, a compreensão da leitura musical se dá de forma sensorial, e as sensações geradas, majoritariamente, são moderadas pelo uso de acordes maiores e acordes menores, que são os responsáveis por direcionar as emoções que são sentidas pelos leitores/ouvintes, fazendo com que a “energia” seja uma variável. Observou-se que os acordes maiores são os responsáveis por despertar e causar as emoções associadas à alegria, resolução e estabilidade. Por outro lado, os acordes menores geram as emoções associadas à tristeza, melancolia e instabilidade, causando uma sensação de tensão.

Compreender a presença desses acordes na música significa entender o papel deles na leitura musical, pois são os protagonistas na mediação dos sentimentos despertados ao ouvir uma obra musical. Assim, compreendendo o que cada um deles gera, faz com que os leitores tenham maior consciência dos “porquês” de interpretarmos as músicas da forma que o fazemos. Essas questões foram apuradas e analisadas nas três canções que foram objeto deste estudo.

Nas análises, notou-se a importância que os acordes têm para a assimilação das leituras musicais que fazemos, uma vez que cada uma delas utiliza os acordes para afirmar e criar “cenários” compatíveis com o significado da canção, ou seja, a mensagem não é somente passada através da letra, uma vez que a melodia por si só possui o mesmo valor na significação e compreensão das mensagens passadas, tudo isso sendo realizado pela leitura musical.

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6 REFERÊNCIAS

[1] ALMEIDA, Maria Helenice de Paiva. Ensino-Aprendizagem de LI em uma Abordagem Multimodal no Ensino Médio da Escola Pública. 242f. São Paulo, 2015.

[2] BARCELÓ, Ricardo. Dois casos de música descritiva na guitarra clássica: Fantaisie Villageoise, op. 52 (ca. 1832), de F. Sor, e A L'aube du dernier jour, op. 33 (1988), de F. Kleynjans. In: LESSA, Elisa; MOREIRA, Pedro; PAULA, Rodrigo Teodoro de. (org.) Ouvir e escrever as paisagens sonoras - Abordagens Teóricas e (multi)disciplinares. Universidade do Minho. Centro de Estudos Humanísticos (CEHUM), 2003.

[3] BEZERRA, Leonardo Eduardo. Leitura multimodal: do impresso ao digital. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

[4] BIAZOLI JR, Cláudio Eduardo. Sinestesia: um estudo sobre suas origens e características. Revista da Faculdade de Letras - Letras, n. 29, p. 1-17, 2013.

[5] BLOOD, Anne; ZATORRE, Robert. Intensely pleasurable responses to music correlate with activity in brain regions implicated in reward and emotion. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 98, n. 20, p. 11818-11823, 2001.

[6] CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.

[7] COSTA, Giselda dos Santos. Textos spimes: criando novas trilhas no percurso da linguística textual. São Paulo: Cortez, 2012.

[8] COSTA, N. B. da. As letras e a letra: o gênero canção na mídia literária. In: DIONISIO, A.P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA M. A. (Orgs.). Gêneros textuais & Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p.107- 121.

[9] DAMÁSIO, A. O livro da consciência: a construção do cérebro consciente. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[10] DIAS, Elaine Machado. Leitura Musical: Princípios e Práticas. 1. ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2008.

[11] EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

[12] EEROLA, Tuomas; VUOSKOSKI, Jonna. A review of music and emotion studies: approaches, emotion models, and stimuli. Music Perception: An Interdisciplinary Journal, v. 30, n. 3, p. 307-340, 2013.

[13] ERTHAL, Natasha Bouvier. Sons que falam: a trilha sonora como despertadora de sentidos em documentários ambientais criados por meio de processos educomunicativos. Lajeado, 2016. 128 p. Monografia (Curso de Comunicação Social), Centro Universitário UNIVATES.

[14] FLORÊNCIO, Roberto Remígio. Interpretação de Textos Literários a partir de Análises Isoladas. Revista Ícone de Letras – UEG ISSN: 1982-7717, Vol. 22, nº 1, jun. 2022.

[15] FLORÊNCIO, Roberto Remígio et al. Um estudo comparativo entre as cantigas medievais e o gênero musical sofrência: reflexões sobre a construção da identidade feminina. Revista Desenredos (UFPI), número 41, fevereiro/2023.

[16] GABRIELSSON, Alf.; LINDSTRÖM, Erik. The role of structure in the musical expression of emotions. In: Juslin, P. N.; Sloboda, J. A. (Eds.). Music and Emotion: Theory and Research. Oxford: Oxford University Press, 2001.

[17] GONZAGA, Luiz. Ave Maria Sertaneja. Rio de Janeiro: RCA Victor, 1967. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XDklEC7iq6o. Acesso em 26 abr. 2023.

[18] GONZAGA, Luiz. Sanfoneiro do povo de Deus. Rio de Janeiro: RCA Victor, 1967. 1 LP.

[19] HUNTER, Peter; SCHELLENBERG, Glenn. Music and emotion: Psychological considerations. In: HALLAM, Susan; CROSS, Ian; THAUT, Michael. The Oxford Handbook of Music Psychology. Oxford University Press, 2010.

[20] HURON, David. Sweet Anticipation: Music and the Psychology of Expectation. Cambridge: MIT Press, 2006.

[21] KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 2. ed. Campinas: Pontes: Unicamp, 1992.

[22] KLEYNJANS Francis. A l'aube du dernier jour, op. 33. Paris: Les Editions Henry Lemoine, 1988.

[23] KOCH, Ingedore Villaça. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2003.

[24] KOCH, Ingedore Villaça. Introdução à Linguística textual: trajetórias grandes temas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

[25] KRAMSCH, Claire. Language and culture. Oxford: Oxford University Press, 1998.

[26] KRISTEVA, Julia. Soleil noir: dépression et mélancolie. Paris: Gallimard, 1999.

[27] LEFFA, Vilson J. Aspectos da leitura. Porto Alegre: Sagra-D.C. Luzzatto Editores,

1996.

[28] MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

[29] RADIOHEAD. Creep. Londres: Parlophone, 1993. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XFkzRNyygfk. Acesso em 26 abr. 2023.

[30] RADIOHEAD. Pablo Honey. Londres: Parlophone, 1993. 42 '11 ". 1 CD.

[31] SANTOS, Ana Sofia Ferreira. Educação Musical e Leitura de Mundo: Perspectivas Interdisciplinares. In: CONGRESSO DA ANPPOM, 24, 2014, São Paulo. Anais... São Paulo: ANPPOM, 2014.

[32] SILVA, Thaynara Rodrigues. A leitura musical como leitura de mundo: uma reflexão sobre a educação musical crítica. In: Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul, 18, 2020, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 2020. p. 1-14.

[33] SKANK. Cosmotron. Belo Horizonte: Epic, 2003. 60' 05". 1 CD. SKANK. Dois Rios. Belo Horizonte: Epic, 2003.Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=zhhUKUxPY0k. Acesso em 26 abr. 2023.

[34] TREVARTHEN, Colwyn. Musicality and the intrinsic motive pulse: Evidence from human psychobiology and infant communication. Musicae Scientiae, v. 5, n. 2, p. 155-215, 2001.

[35] VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

[36] VIEIRA, Marília Pereira. Leitura Musical: Um Estudo Exploratório sobre o Processo de Aprendizagem Musical. 2012. 62 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2012.

1

De acordo com Damásio (2012), emoções e sentimentos são conceitos distintos. As emoções são respostas automáticas do organismo a um estímulo, envolvendo mudanças fisiológicas, como aumento do batimento cardíaco, dilatação das pupilas, entre outras. os sentimentos são a interpretação cognitiva que fazemos dessas respostas fisiológicas, ou seja, a experiência subjetiva que temos em relação a uma emoção.

2

Segundo Biazoli Jr. (2013), a sinestesia é um "fenômeno em que uma estimulação de um sentido é percebida também em outro sentido, de forma involuntária e espontânea" (p. 3). A sinestesia no campo da música é um fenômeno em que estímulos musicais, como notas, acordes e timbres, desencadeiam automaticamente sensações em outras modalidades sensoriais, como cor, sabor, cheiro e tato.

3

Um riff é uma sequência de notas musicais repetidas que é usada como uma ideia principal em uma música. Geralmente, um riff é tocado em um instrumento de cordas, como guitarra, baixo ou teclado, e é usado para criar uma linha melódica que é fácil de se lembrar e reconhecer. Riffs são frequentemente usados em músicas de rock, metal e blues, mas podem ser encontrados em uma variedade de gêneros musicais. Eles podem ser simples ou complexos, mas sempre adicionam uma sensação de distinção à música.

4

Um pré-refrão é uma seção musical que ocorre entre o verso e o refrão principal da música, geralmente usada para construir tensão ou preparar o ouvinte para o refrão.

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