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ISSN: 2595-8402

DOI: 10.5281/zenodo.4015531

 

VOLUME 3, NÚMERO 6, JUNHO DE 2020

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O CONHECIMENTO MÉDIO E A AUTO-EXISTÊNCIA DE DEUS

 

​​ Marcelo Victor Rodrigues Nascimento1

 

Instituto Aliança de Linguística, Teologia e Humanidades (IALTH) - Recife, Brasil

​​ galetinho1967@gmail.com

 

RESUMO

Este trabalho teve por objetivo investigar se as afirmações feitas por Furtado e Bezerra (2017, p.98), no artigo “Uma introdução ao Molinismo”, são plausíveis, ao sugerir que se houver liberdade libertária humana, o conhecimento de Yahweh estará, consequentemente, condicionado à autonomia humana, produzindo uma potencialidade passiva em Sua pessoa, vindo, portanto, a comprometer Sua total independência (auto-existência). Para tanto, foi discorrido acerca dos pensamentos arminiano e molinista sobre o paradoxo entre soberania divina e livre-arbítrio humano; foi estabelecida uma relação entre tais pensamentos soteorológicos; e, por fim, foi tratada da relação entre o conhecimento médio de Yahweh e o atributo da auto-existência. Após análise, concluiu-se que a objeção feita por Furtado e Bezerra (2017, p.98) à teoria do conhecimento médio molinista não procede por não ter fundamento lógico, sendo, portanto, irracional.

 

Palavras-chave: Molinismo, soberania divina, livre-arbítrio, conhecimento médio.

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

 Umas das consequências da queda do homem, no jardim do Éden, foi o distanciamento entre a criatura e o Criador, rompendo um relacionamento diário e pessoal, e fazendo com que o conhecimento acerca da pessoa de Yahweh, o Deus de Israel, passasse a depender, a partir de então, de uma autorrevelação (FTB, 2007, p.31).

 De fato, além da revelação geral, que ocorre através das coisas criadas, Yahweh escolheu revelar-se de forma especial através das Escrituras Sagradas, inspirando homens santos, que, em outro tempo, falaram e escreveram movidos e guiados pelo Seu Espírito Santo (Salmos 11:1-2; Atos 14:17; Hebreus 1:1-2; 1 Pedro 1:20-21).

Dessa forma, somente por meio das Escrituras é que se tornou possível conhecer as características quantitativas e qualitativas próprias do ser maravilhoso de Yahweh, chamadas, teologicamente, de atributos divinos, os quais são divididos pela literatura em atributos comunicáveis (que Ele compartilha com Suas criaturas) e incomunicáveis (exclusivos de Yahweh) (FTB, 2007, p.40).

Dentre os atributos incomunicáveis, encontra-se a auto-existência, segundo a qual a divindade não depende de absolutamente nada que esteja fora do Seu ser para existir e não tendo sido criada por nenhum outro ser. E não só isso, além de ser absolutamente independente, Yahweh é também a fonte da vida (da existência), sendo, Ele próprio, o sustentador da mesma, de quem todos os demais seres vivos dependem (FTB, 2007, p.40).

Tais características, salvo melhor juízo, fazem de Deus uma atualidade pura, sem espaço para potencialidades, sendo Ele a fonte de todo saber, conforme relatam as Escrituras Sagradas: “Porque o Senhor dá a sabedoria; da sua boca é que vem o conhecimento e o entendimento” (Provérbios 2:6).

Contudo, quando o assunto é Soteriologia (a doutrina da salvação), o atributo da auto-existência parece fazer parte da tensão provocada pelo paradoxo que existe entre a soberania divina e o livre arbítrio humano, ambos mencionados nas Escrituras Sagradas em diversas passagens.

Embora Yahweh seja soberano e reja o universo como Lhe apraz, realizando tudo aquilo que tenciona fazer, o homem é um agente moral, inteligente, consciente e dotado de vontade, com capacidade para tomar as suas próprias decisões, algumas das quais, segundo as próprias Escrituras Sagradas, parecem contrariar a vontade do Criador, como mostra a seguinte passagem bíblica: Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste?” (Lucas 13:34).

Dentre as cosmovisões que procuram oferecer soluções para tal paradoxo, com suas respectivas teses, encontram-se os seguintes sistemas teológicos:

  • Calvinismo: sustenta que Yahweh é a figura central da salvação, tendo decretado, desde a eternidade, quem irá salvar-se e quem irá perder-se (dupla predestinação) por razões que Lhe pertencem, segundo os soberanos conselhos da Sua vontade, de tal forma que o homem apenas obedece aos decretos divinos, possuindo tão somente livre agência (capacidade de agir livremente), mas não livre-arbítrio libertário (autonomia);

  • Arminianismo: sustenta que o homem possui livre-arbítrio libertário (autonomia para manifestar a sua vontade), ainda que parcialmente depravado pelo pecado, sendo, portanto, capaz de responder, livremente, ao convite feito pelo Evangelho de Jesus Cristo, escolhendo salvar-se ou perder-se;  ​​​​ 

  • Molinismo: harmoniza os conceitos calvinista e arminiano, assegurando que, por conhecer exaustivamente as decisões que cada agente livre tomaria em todas as circunstâncias possíveis, Yahweh escolheu soberanamente, desde a eternidade, o mundo que melhor cumpriria Seu plano (o mundo atual), sem que a vontade humana fosse violada (Miranda, 2008, p.2).

 

Baseado nessa controvérsia, Furtado e Bezerra (2017, p.98), no artigo “Uma introdução ao Molinismo”, levantam objeções à teoria do conhecimento médio molinista, sugerindo que se houver liberdade libertária humana, o conhecimento de Yahweh estará, consequentemente, condicionado à autonomia humana, produzindo uma potencialidade passiva em Sua pessoa, vindo, portanto, a comprometer Sua total independência (auto-existência).

Assim sendo, através de uma revisão sistemática da literatura (Cordeiro, Oliveira, Rentería e Guimarães, 2007), este artigo tem por objetivo investigar se tais afirmações, acerca da liberdade libertária do homem, feitas pelos autores supracitados, são plausíveis, fato que, se comprovado, tornaria inviáveis as teses soteorológicas (relativas à salvação do homem) das correntes teológicas que defendem a existência real da liberdade libertária humana (o Arminianismo e o Molinismo), resolvendo definitivamente a tensão que existe entre a soberania divina e o livre arbítrio humano. ​​ 

2 ​​  DESENVOLVIMENTO E DISCUSSÃO

2.1 PENSAMENTO ARMINIANO SOBRE O PARADOXO ENTRE A SOBERANIA DIVINA E O LIVRE ARBÍTRIO HUMANO 

Para Miranda (2008, p.10), a teologia arminiana tem como pressuposto o pensamento de que existe uma incompatibilidade real entre a soberania divina e a responsabilidade humana. Dessa forma, os arminianos, baseados no fato de que a Bíblia apresenta a fé como um ato humano livre e responsável, entendem que:

  • O homem não foi corrompido pelo pecado ao ponto de encontrar-se impossibilitado de crer salvificamente;

  • Deus não exerce exaustivo controle sobre o homem, ao ponto de que ele não possa rejeitar Seus propósitos;

  • Deus elege ou reprova homens com base na fé prevista, antes da fundação do mundo;

  • Cristo morreu por todos os homens (alcance universal), embora seja salvo somente aquele que crer livremente;

  • A oferta de salvação (a graça) pode ser resistida pelo homem;

  • É possível ao homem regenerado apostatar-se da fé e, consequentemente, perder a sua salvação.

Assim sendo, como solução para tal incompatibilidade, os arminianos apresentam a justificativa de que Yahweh não perdeu Sua soberania ao dar ao homem autonomia, uma vez que, em Sua soberania, foi Ele quem decidiu que assim fosse, de tal forma que, por escolha divina, a salvação, para os arminianos, em última análise, está condicionada tão somente à livre escolha humana (Miranda, 2008, p.11; Daniel, 2018, p.415).

Aliás, as próprias Escrituras Sagradas mostram que, embora seja soberano, Yahweh não pode fazer todas as coisas, pois é limitado em Suas escolhas pelo Seu caráter. Todavia, isso não significa, como foi dito, que Ele não seja soberano, uma vez que, nas decisões que toma, não Lhe é imposta limitação alguma: Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido” (Jó 42:2).

Segundo o pastor Silas Daniel (2018, p.415), da igreja Assembleia de Deus, quando a Bíblia fala em soberania divina, Ela está referindo-se à abrangência de tal soberania e não tratando de aspecto determinativo, como se Yahweh fosse soberano unicamente por ter determinado tudo que acontece, incluindo as ações más de Suas criaturas, de tal forma que não há, na sua visão, portanto, qualquer incompatibilidade entre soberania divina e liberdade humana.

No que se refere ao paradoxo em pauta, tal pastor cita, de forma positiva, em seu livro “Arminianismo, a mecânica da salvação”, o que está registrado na Confissão de Fé de Westminster, um documento que estabeleceu os pontos de fé e doutrina da Reforma Protestante, iniciada em 1517, por Martinho Lutero:

“Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas” (Daniel, 2018, p.415).

 

 

2.2 PENSAMENTO MOLINISTA SOBRE O PARADOXO ENTRE A SOBERANIA DIVINA E O LIVRE ARBÍTRIO HUMANO 

Para os molinistas, a soberania é um atributo inerente ao ser divino, de tal forma que, sem soberania Ele não pode ser identificado como Deus. Por isso, o Molinismo reforça a ideia de que a salvação humana não se dá à parte da vontade do Criador. Pelo contrário, é Yahweh quem escolhe o mundo a ser criado e as circunstâncias às quais os homens serão submetidos para que se adequem à Sua soberana vontade (Miranda, 2008, p.7).

Sendo assim, tal corrente teológica tem, como foco principal, o atributo da onisciência divina, assegurando que Yahweh, além de conhecer exaustivamente todas as coisas naturais (conhecimento natural) e todas as coisas que efetivamente acontecerão no futuro (conhecimento livre), possui, também, o conhecimento meticuloso dos mundos possíveis (das contingências), um atributo chamado “conhecimento médio”, por estar entre o conhecimento natural e o conhecimento livre divinos (Daniel, 2018, p.406).

Dessa forma, na perspectiva molinista, a tensão teológica entre a soberania divina e o livre arbítrio humano deixa de existir, pois os homens, agindo exatamente de acordo com os planos de Yahweh, tornam-se agentes ativos da Sua vontade, o qual exerce controle sobre todas as coisas, não como a causa primária, mas como conhecedor de absolutamente tudo e ordenador do universo (Daniel, 2018, p.407).

Em outras palavras, a salvação, para os molinistas, é fruto da predestinação divina, porém atinge aqueles que, no exercício das suas vontades, escolhem relacionar-se com Yahweh no melhor mundo possível: o atual (Miranda, 2008, p.9).

 

 

2.3 RELAÇÃO ENTRE OS PENSAMENTOS SOTEOROLÓGICOS ARMINIANO E MOLINISTA

Apesar de terem a liberdade humana como algo fundamental e bíblico, ambas as correntes teológicas, arminiana e molinista, asseguram que a soberania divina é um dos pilares do cristianismo, não renunciando, nenhuma delas, a tal verdade cristalina e transparente, registrada nas Escrituras Sagradas. Contudo, para ambas, Yahweh é cerceado pelas decisões do homem, o qual, sendo livre, não pode ser obrigado a realizar algo contrário à sua vontade, como declara Luís Molina nos seguintes termos: ​​ “Deus quer salvar a todos os homens, com a condição de que estes também queiram o mesmo” (Miranda, 2008, p.12)

Dessa forma, os dois sistemas teológicos defendem que a queda do homem não foi plena, restando-lhe bem suficientemente capaz de habilitá-lo a aceitar Jesus Cristo como Salvador, tendo, portanto, liberdade libertária (sem influências externas) para escolher entre o bem e o mal, e alcançar a salvação como resultado de sua fé (Daniel, 2018, p.405).

A solução para o paradoxo entre a soberania divina e o livre-arbítrio humano, em ambas as correntes teológicas, está no atributo incomunicável da onisciência, segundo o qual a escolha que Yahweh faz para a salvação tem como base o conhecimento prévio que possui acerca das opções que, futuramente, serão feitas pelos seres humanos (1 Pedro 1:2).

Tanto Jacó Armínio quanto Luís Molina, os fundadores do Arminianismo e do Molinismo, respectivamente, tinham em altíssima estima a autonomia humana, sem a qual, segundo eles, o ser humano não existia tal qual Deus o fez, à Sua imagem e semelhança (Daniel, 2018, p.351).

Contudo, há diferenças soteorológicas entre as duas escolas, de tal forma que, embora ambas creiam que Yahweh conhece o futuro contingente condicional, os arminianos defendem que, como Yahweh quer que todos os homens se salvem, Ele empenha todo e qualquer esforço para que cada agente livre venha a se salvar, diferentemente do que acreditam ocorrer com o Molinismo, pois, ao escolher um mundo em que algumas pessoas irão rejeitar o convite da salvação, há uma clara impressão de que o Deus molinista não quer, efetivamente, que todos se salvem (Daniel, 2018, p.409).

 

2.4 O CONHECIMENTO MÉDIO E SUA RELAÇÃO COM A AUTO-EXISTÊNCIA

A Bíblia Sagrada nos revela que, antes da criação de todas as coisas, na eternidade, Yahweh desejou formar uma “semente de piedosos”, isto é, uma família de pessoas abençoadas e santas que O amassem verdadeiramente e se amassem mutuamente: "E não fez ele somente um, sobejando-lhe espírito? E por que somente um? Ele buscava uma semente de piedosos" (Malaquias 2:15).

Contudo, Yahweh sabia, através de Seu conhecimento natural, que o próprio conceito de “amor verdadeiro” pressupunha liberdade de escolha, sem a qual tal amor simplesmente é impossível. Por isso, ao conceber o Seu maravilhoso plano, Yahweh viu-se obrigado a dar liberdade de escolha às Suas criaturas, tornando-as agentes livres, não com uma liberdade plena, como a Sua, mas com uma liberdade condicionada às circunstâncias que Ele próprio viria a estabelecer, a fim de que Seu plano viesse a concretizar-se integralmente (Nascimento, 2020, p.31,60,130).

No entanto, mediante a capacidade humana (e angelical) de decidir livremente, abriu-se a possibilidade de que algum dos agentes livres viesse a rejeitar o plano de Yahweh, escolhendo, espontaneamente, não O amar e não amar seus semelhantes, algo que acabou por acontecer no mundo por Ele escolhido (o atual). Contudo, tal rejeição não surpreendeu Yahweh, pois, segundo Sua capacidade de antever todos os acontecimentos futuros (conhecimento livre), Ele já havia previsto a rebeldia humana (1 Pedro 1:20; Apocalipse 13:8; Daniel, 2017, p.362).

As Escrituras Sagradas são claras em mostrar-nos que, além dos referidos conhecimentos divinos (o conhecimento natural e livre), Yahweh é dotado do conhecimento das possibilidades, ou seja, daquilo que cada agente livre faria em qualquer outra circunstância possível que redundasse na concretização do Seu plano, como nos mostra a seguinte passagem bíblica:

“Entregar-me-ão os cidadãos de Queila na sua mão? Descerá Saul, como o teu servo tem ouvido? Ah! Senhor, Deus de Israel, faze-o saber ao teu servo. E disse o Senhor: Descerá. Disse mais Davi: entregar-me-iam os cidadãos de Queila, a mim e aos meus homens, nas mãos de Saul? E disse o Senhor: entregariam”

(1 Samuel 23:11-12)

Portanto, para o Molinismo, Yahweh, ao dar sequência ao Seu plano, fez Suas escolhas com base no conhecimento das possibilidades (aquilo que cada agente livre faria no futuro), o qual cognominou de “conhecimento médio” por estar posicionado entre os conhecimentos natural e livre. Tais atributos, relativos à onisciência divina, permitem a Yahweh ser soberano (ao escolher o melhor mundo possível) e, ao mesmo tempo, não violar o livre-arbítrio das criaturas (Nascimento, 2020, p. 114; Furtado e Bezerra, 2017, p.93).

Mas, o que dizer da total independência de Yahweh, como parte do atributo da auto-existência? Estaria tal atributo comprometido pelo fato de as criaturas possuírem autonomia?

De acordo com os pressupostos apresentados, parece ficar claro que o conhecimento natural de Yahweh é, por definição, um limitador da ação divina na mesma proporção que os atributos morais, os quais impedem, por exemplo, que Yahweh possa mentir, perverter o juízo, tentar alguém, negar-se a si mesmo, ser tentado pelo mal e contrariar o Seu caráter (Nascimento, 2020, p.32).

Ou seja, além de moralmente retos e justos, os pensamentos, sentimentos, palavras e obras de Yahweh são perfeitamente lógicos, uma vez que, sendo Ele o padrão absoluto, objetivo e transcendente da verdade, as leis da lógica, observadas no universo criado, são reflexo da Sua natureza e extensão do Seu pensamento racional (Wallace, 2019).

Assim como não há coerência teológica, nem filosófica, na tese logicamente oposta de que Yahweh tenha determinado soberanamente todas as coisas e exija de Suas criaturas comportamentos diferentes dos quais Ele próprio determinou, julgando-as e condenando-as por terem feito exatamente aquilo que havia pré-determinado, da mesma forma, é inconcebível a ideia de que a auto-existência divina possa, por exemplo, impedir Yahweh de criar seres livres, se assim o desejar (Geisler, 2005, p.52). Afinal, Yahweh pode fazer tudo aquilo que Lhe apraz, como dizem os calvinistas, ou não? Se não pode criar seres livres, mesmo desejando, logo Yahweh não é soberano, lançando por terra toda a tese sobre a qual se sustenta a doutrina calvinista, estando, portanto, resolvido o paradoxo entre soberania divina e livre-arbítrio humano.

Outrossim, é incongruente a concepção de que Yahweh tenha desejado formar uma família de piedosos (que o amassem livremente) e, mesmo assim, tenha mantido Sua liberdade plena, pois isso seria completamente ilógico, visto que se trata de um relacionamento entre pessoas livres. Seria o mesmo que ​​ condenar pessoas ao tormento eterno por pecarem, sem que elas tivessem outra alternativa (Nascimento, 2020, p.32; Geisler, 2005, p.32).

Além disso, as Escrituras Sagradas nos revelam que Yahweh é maior do que Seus atributos, não estando subordinado a nenhum deles, com exceção dos atributos morais (comunicáveis). Tal verdade pode ser constatada, por exemplo, em passagens como Provérbios 8:30, em que a sabedoria (um dos atributos de Yahweh) afirma que é Sua aluna, sendo, portanto, menor do que Ele (Nascimento, 2020, p.53,54).

Por isso, a objeção feita por Furtado e Bezerra (2017, p.98) à teoria do conhecimento médio molinista, dizendo que, se houver liberdade libertária humana, o conhecimento de Yahweh estaria, consequentemente, condicionado à autonomia humana, produzindo uma potencialidade passiva em Sua pessoa e comprometendo Sua total independência, não tem fundamento lógico, sendo, portanto, irracional.

Dessa maneira, além de não pôr fim à suposta tensão que existe entre soberania divina e livre-arbítrio humano, tal proposição faz, do sistema calvinista, algo sem sustentação lógica e sem base bíblica sólida à medida que contraria a racionalidade e atribui a Yahweh, em última análise, a origem do mau moral (Martinez, 2015). ​​ 

 

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Bíblia mostra-nos claramente que o conhecimento das contrafactuais (contingências) são uma realidade em relação à pessoa de Yahweh, como se pode observar em passagens como a citada anteriormente, neste artigo, envolvendo o rei Davi (1 Samuel 23:11-12). Rejeitar essa verdade cristalina seria o mesmo que dizer que tais passagens bíblicas não passam de meros palpites, ou blefes por parte do Criador, pondo em dúvida o Seu caráter justíssimo, santíssimo e retíssimo.

Entender que Yahweh estaria expondo apenas um presságio quando menciona, na Bíblia Sagrada, alguma possibilidade, parece algo próprio do entendimento arminiano acerca das contrafactuais, pois tal sistema supervaloriza o mundo real (o atual) e subestima os mundos possíveis, dando a impressão de que as contingências, presentes nas Escrituras, são apenas casos fortuitos ou uma espécie de jogo de palavras.

Por outro lado, admitir que Yahweh conhece tudo porque determina todas as coisas, como afirma o sistema soteorológico calvinista, faz, das contrafactuais, uma espécie de engano, pois, segundo tal sistema, os acontecimentos já estão todos rigorosamente pré-estabelecidos, não existindo, portanto, quaisquer outras possibilidades.

Desse modo, como Yahweh não pode contrariar-se moralmente, fazendo “jogo de palavras” ou dissimulações, fica claro que o conhecimento médio é algo real, como parte do atributo da onisciência divina, restando-nos, apenas e tão somente, entender como tal capacidade relaciona-se com a Sua natureza divina, especificamente com relação à auto-existência.

Para compreender tal relação, basta admitir que, ao decidir formar uma família de piedosos (criaturas que O amassem voluntariamente), Yahweh obrigou-O a limitar-se, pois, como nos mostram as leis da lógica, é impossível ser plenamente independente quando se relaciona com outros seres livres (Nascimento, 2020, p.51,52).

Negar tais verdades naturais, entre as quais estão compreendidas as leis da lógica, seria o mesmo que dizer que, para Yahweh: (1) uma parte pode ser maior do que o todo; (2) 2 + 2 pode não ser igual a 4; (3) um círculo pode ser um quadrado; (4) a construção de uma casa pode ser iniciada pelo telhado e não pelo fundamento; etc. Ou seja, as leis da lógica aplicam-se também ao Criador, sendo reflexo da Sua natureza e não meras convenções humanas, pois são imutáveis como a própria divindade (Daniel, 2018, p.406; Wallace, 2019).

Segundo Wallace (2018), mesmo existindo diferentes tipos de lógica e ainda que diversas "leis do pensamento" tenham sido propostas ao longo dos séculos, por grandes pensadores como Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche, ​​ Schopenhauer e outros, tais leis, em linhas gerais, apenas refletem, basicamente, os mesmos axiomas lógicos universais e pré-existentes, como se tais pensadores reafirmassem e reformulassem, continuamente, as mesmas leis da lógica.

Há grande possibilidade, contudo, de que a fonte das confusões relacionadas à salvação humana esteja no desconhecimento do plano original de Yahweh, descrito em Malaquias 2:15. Isto porque, cada sistema teológico apresenta uma visão distinta para o significado da vida (Coords, 2019).

Segundo Richard Coords (2019), na matéria “Molinismo – É uma alternativa teológica aceitável para os Arminianos e Tradicionalistas?”, o significado da vida para cada sistema teológico é o seguinte:

“Molinismo: ... Deus criou um mundo com uma relação máxima do número de salvos para os perdidos. A Bíblia ensina que Deus genuinamente deseja que todos sejam salvos, e embora muitos perecem, ainda Sua vontade é uma.

Calvinismo: Deus criou este mundo para tornar o Seu poder conhecido e para demonstrar os seus vários atributos de ira e amor, etc. O objetivo de Deus nunca foi “salvar o máximo que pudesse de um mundo caído”, mas usar quaisquer vasos eleitos que Ele tenha criado, a fim de manifestar Seus próprios atributos pessoais da graça e da misericórdia, para que Deus seja mais glorificado.

Arminianismo/Tradicionalismo: Ao criar a humanidade, Deus fez algo a Sua própria imagem que reflete seu caráter na criação. Esse é o propósito da humanidade, e é por isso que a humanidade é a coroa da criação. Nós fomos projetados para levar a imagem e semelhança de Deus” (Coords, 2019).

Não resta dúvida de que o tema “significado da vida”, mencionado acima, merece uma análise mais profunda, porém, no tocante à natureza de Yahweh e aos Seus atributos (o tema deste trabalho científico), a falta de percepção, acerca ​​ do real motivo que O levou a dar a vida a seres livres, abre um precedente para que se possa desvirtuar os conceitos acerca do Seu caráter e da Sua vontade (descrita, na Bíblia Sagrada, como boa, perfeita e agradável, tanto para si como para todas as Suas criaturas), sugerindo, por exemplo, que:

  • Os atributos de Yahweh possam estar em desarmonia, um sendo mais importante do que os demais;

  • Yahweh possa ser ilógico, incoerente e irracional; e

  • Yahweh possa ser fatalista e capaz de absolutamente tudo para ser glorificado, inclusive contrariar Seu próprio caráter (uma verdadeira blasfêmia contra o Espírito Santo de Deus).

Quando o Molinismo afirma que, dentre os mundos possíveis, Yahweh escolheu aquele que melhor atenderia o Seu plano original, não significa, de forma alguma, que Ele não tenha amado todos os homens e desejado salvar a todos indistintamente, ainda que cada ser humano vivesse circunstâncias completamente distintas dos demais (uns nascem ricos, outros nascem pobres; uns nascem em países com liberdade religiosa, outros não; uns vivem mais tempo, outros menos, etc.). Afirmar o contrário, significa ignorar aquilo que está dito claramente nas Escrituras Sagradas a respeito do amor incondicional e imparcial de Yahweh: Porque a graça salvadora de Deus se há manifestado a todos os homens” (Tito 2:11).

Por isso, fica claro que a responsabilidade pela salvação, no mundo escolhido soberanamente por Yahweh, cabe unicamente aos agentes livres, tendo, todos eles, de forma perfeitamente justa, as mesmas possibilidades de rejeitar o mal (1 Pedro 2:16; Gálatas 5:13; Deuteronômio 30:19; 1 Coríntios 6:12; Gálatas 5:1; João 8:36).

No que se refere àquelas pessoas que não tiveram a oportunidade de ouvir o som do Evangelho ou não entenderam, com perfeição, sua proposta, a Bíblia Sagrada diz que serão julgadas pelas suas consciências, no dia em que Yahweh há de julgar os vivos e os mortos, de maneira que nenhuma injustiça será cometida pelo justo juiz de toda a terra: ​​ 

“Porque os que ouvem a lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados. Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os; no dia em que Deus há de julgar os segredos dos homens, por Jesus Cristo, segundo o meu evangelho” (Romanos 2:13-16).

 

4REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

​​  BÍBLIA SAGRADA. Velho e Novo Testamentos. Bíblia On-line, Versões Almeida Corrigida e Fiel/Nova Versão Internacional/Nova Almeida Atualizada. Disponíveis em: https://www.bibliaonline.com.br/. Acesso em: 15 ago. 2020.

​​  Cordeiro, A.M.; Oliveira, G.M.; Renteria, J.M.; Guimarães, C.A. (2007). Revisão sistemática: uma revisão narrativa. Rev. Col. Bras. Cir., Rio de Janeiro, v. 34, n. 6, p. 428-431, dez. 2007 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-69912007000600012&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 10 jul.2020.

​​  COORDS, Richard. Molinismo – É uma alternativa teológica aceitável para os Arminianos e Tradicionalistas? Website Paleo-Ortodoxo, 5 jan. 2019. Disponível em: https://paleoortodoxo.wordpress.com/2019/01/05/molinismo-e-uma-alternativa-teologica-aceitavel-para-os-arminianos-e-tradicionalistas/. Acesso em: 16 ago. 2020.

​​  DANIEL, Silas. Arminianismo, a mecânica da salvação. Rio de Janeiro: CPAD, 2018.

​​  FACULDADE TEOLÓGICA BETESDA (FTB). Curso de Teologia Fundamental. Jundiaí, SP: Betesda, 2007.

​​  FURTADO, F.C.; BEZERRA, C.A. Uma introdução ao Molinismo. Revista Ensaios Teológicos da Faculdade Batista Pioneira, Ijuí, v.3, n.1, jun. 2017.

​​  GEISLER, Norman. Eleitos, mas livres. São Paulo: Vida, 2005.

​​  MARTINEZ, J.F. Calvinismo recalcitrante. São José do Rio Preto, SP: CACP, 2015.

​​  MIRANDA, D.L.G. Ciência média e arminianismo: uma análise desta relação à luz da teologia reformada. Escola Teológica Reformada. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/arminianismo/ciencia-media-arminianismo-tr_Daniel-Guanaes.pdf ​​ Acesso em: 15 ago. 2020.

​​  NASCIMENTO, M.V.R. O atributo divino do livre-arbítrio. Joinville: Clube de Autores, 2020.

​​  WALLACE, J.W. Deus é real? As Leis da Lógica são Convenções Simplesmente Humanas? Website Cold-Case Christianity, 16 jan.2019. Disponível em: https://coldcasechristianity.com/writings/is-god-real-are-the-laws-of-logic-simply-human-conventions/. Acesso em: 16 ago. 2020.

 

1

Doutor e Mestre em Teologia, pela Universidade da Bíblia - São Paulo. Bacharel em Ciências Militares, pela Academia da Força Aérea Brasileira (AFA) - Pirassununga - SP. Licenciado em Educação Física, pela Escola de Educação Física do Exército (EsEFEx) - Rio de Janeiro. Bacharel em Administração de Empresas, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie - São Paulo. Acadêmico do Curso de Licenciatura em Filosofia, pelo Instituto Aliança de Linguística, Teologia e Humanidades (IALTH) – Recife – PE. Acadêmico do Curso de Pós-graduação em Ciências da Religião, pelo Instituto Aliança de Linguística, Teologia e Humanidades (IALTH) – Recife – PE.

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