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ISSN: 2595-8402

DOI: 10.5281/zenodo.3832059

 

VOLUME 3, NÚMERO 3, MARÇO DE 2020

 

 

 

INFECÇÕES SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS (IST´S) ENTRE A POPULAÇÃO DE RUA: UMA EXPERIÊNCIA DA EQUIPE DE CONSULTÓRIO NA RUA DE MANAUS

 

Rosiane Pinheiro Palheta1; Raquel Lira de Oliveira2; Hudson André Arouca Cauper3; Jacqueline Cavalcanti Lima4; ​​ Maria de Nazaré Feitosa Xaud5

 

1,2,3,4,5Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Manaus – Amazonas, Brasil.

1anypinheiro@hotmail.com

 

RESUMO

Os chamados Consultórios na Rua (CnaR) são a materialização das estratégias de saúde adotadas que tinham como foco prioritário a abordagem e atendimento aos usuários de drogas em situação de rua. As equipes são uma forma de levar o atendimento integral à saúde às pessoas que tem dificuldades de acesso aos modelos tradicionais de serviços da rede de saúde. ​​ Em Manaus, a equipe de CnaR é multidisciplinar formada por Assistente social, psicólogo, enfermeira e técnicos de enfermagem. Ao iniciar os trabalhos da equipe foi constatado que havia um número expressivo de pessoas interessadas em realizar exames de HIV/AIDS e sífilis, dessa forma a equipe decidiu realizar ações de saúde a partir de uma parceria com o Centro Pop para realização de testes rápidos com os usuários que freqüentam esta instituição. ​​ O objetivo do trabalho foi Identificar as pessoas em situação de rua na cidade de Manaus que precisam de diagnóstico, tratamento e prevenção em HIV/Aids e sífilis através de testes rápidos. Foi realizado teste rápido em 48 usuários durante o período de janeiro a junho de 2016, destes 42,7% foram positivos sendo 27% para sífilis, 15% para HIV e sífilis e 2% para HIV. Destes 21% iniciou o tratamento e apenas 2% destes usuários concluiu o tratamento. ​​ Há uma interessante correlação entre as variáveis gênero, orientação sexual e o diagnóstico. É possível perceber que de um total de 37 sujeitos do sexo masculino testados, 29 relataram ser heterossexuais ao passo que 8 relataram ser homossexuais. Dos heterossexuais, 2 tiveram diagnóstico de sífilis e 3 tiveram diagnóstico de sífilis e HIV. Em se tratando dos homossexuais, 5 apresentaram diagnóstico de sífilis e 3 estavam com ambas as patologias. Em se tratando do gênero feminino, o total de mulheres testadas foi 11, as quais referiram a heterossexualidade como orientação. Com relação ao diagnóstico encontrado, 6 apresentaram apenas sífilis, enquanto que 1 apresentou sífilis e HIV. É importante apontar como uma primeira recomendação o estabelecimento de parcerias intersetoriais com aquelas instituições que já realizam algum tipo de trabalho com tais populações vivem em situação de rua que pelo estigma, tem dificuldades de acesso aos serviços públicos e as políticas em geral. É importante levar em consideração o acompanhamento dos casos que é sem sombra de dúvida facilitada pelo vínculo da população com tais instituições, o que facilita o acompanhamento dos casos e o tratamento adequado. Outra recomendação relevante é tentar vincular os grupos que fizeram exames às estratégias/unidades de saúde para dar continuidade ao cuidado despertando a autonomia dos usuários no tratamento visto que o ideal é que eles mesmos busquem a prevenção e o controle percebendo a importância em cuidar de si e por outro lado, facilitar o acesso às unidade de saúde.

Palavras chave: infecções sexualmente transmissíveis, ​​ consultórios na rua, vulnerabilidade social.

 

1 INTRODUÇÃO

 A realidade da população em situação de rua no Brasil é cada vez mais crescente e evidente e tem despertado o interesse do poder público em desenvolver políticas específicas e diferenciadas, dirigidas a este público. A política Nacional para a População em situação de Rua é um exemplo dessa tentativa. Foram estabelecidas a partir do Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009 que definiu como população em situação de rua os grupos populacionais heterogêneos que possuem em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, a inexistência de moradia convencional regular e que se utiliza de logradouros públicos e áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.

Os chamados Consultórios na Rua (CnaR) são a materialização das estratégias de saúde adotadas desde 1999 que tinham como foco prioritário na época, a abordagem e atendimento aos usuários de drogas em situação de rua. As equipes são uma forma de levar o atendimento integral à saúde às pessoas que tem dificuldades de acesso aos modelos tradicionais de serviços da rede de saúde.

Em Manaus, a equipe de CnaR começou a atuar em dezembro de 2015 com incursões ao território para levantamento de dados e territorialização visando entender o campo de trabalho e estabelecer vínculos com o público específico do serviço. A equipe é multidisciplinar formada por Assistente social, psicólogo, enfermeira e técnicos de enfermagem que atua de forma coletiva e democrática respeitando-se todas as especificidades do conhecimento de cada profissão sempre atenta aos interesses e direitos dos usuários da saúde.

Durante conversas estabelecidas e vínculos iniciados, a equipe percebeu que havia um público considerável com necessidade premente de realizar investigação a respeito das condições de saúde e a partir da manifestação do próprio público, a equipe iniciou a testagem rápida para HIV/AIDS e sífilis, visando à prevenção, o tratamento e o controle dos casos identificados.

Entretanto, a equipe ainda não dispunha de estrutura adequada para o funcionamento, pois carecia do veículo adequado para realizar ações de saúde na rua. Assim, foi necessário realizar parcerias para viabilizar o trabalho e dar maior impulso às ações da equipe.

A parceria, interinstitucional, foi estabelecida com o Centro Pop, instituição vinculada à Secretaria Municipal de Assistência Social, que atende diariamente pessoas em situação de rua oferecendo alimentação, atividades recreativas e de lazer, assistência social e psicológica, bem como abordagem na rua.

Vale ressaltar que essa parceria já vinha sendo almejada e construída, visando uma posição estratégica da equipe CnaR dentro do espaço do Centro Pop, devido principalmente a estrutura física e o suporte de recursos humanos. O vínculo de confiança já existente entre a equipe do Centro Pop e a população atendida no serviço facilitou a inserção da equipe CnaR junto às pessoas em situação de rua, bem como o atendimento em saúde.

O objetivo principal deste artigo é discutir a viabilidade de ações de saúde direcionadas às populações de rua a partir de cuidados, tratamento e prevenção em HIV/Aidse sífilis através dos testes rápidos e facilitando o acesso aos serviços de saúde especializados.

 

2MÉTODOS

Na cidade de Manaus existe apenas uma equipe de CnaR, atuando desde 2015 e que atende sobretudo, as populações que permanecem nas áreas sul e centro sul da cidade. A equipe atua fazendo incursões no território para identificar pessoas em situação de rua que apresentam necessidades prementes de atendimento à saúde para encaminhamento dos casos à rede de serviços, entretanto, a equipe ainda não dispõe de um automóvel adequado para desenvolver o trabalho.

Enquanto esse problema não é sanado, a estratégia tem sido formar parceiras com instituições, formais e informais, que já prestam algum tipo de atendimento a este público para iniciar o estabelecimento do vínculo entre CnaR e população em situação de rua. Dentre tais instituições está o Centro Pop que acolhe especificamente pessoas adultas, idosos (as) e deficientes físicos que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência.

Inicialmente foi estabelecida uma parceria com a equipe com o Centro Pop para facilitar a aproximação com as pessoas em situação de rua e viabilizar o acompanhamento, tratamento e controle dos casos identificados de todas as pessoas que realizaram a testagem rápida.

Percebeu-se que a possibilidade da equipe CnaR trabalhar em conjunto com o Centro Pop foi de importância estratégica no atendimento da população que vive em situação de rua devido aos fatores descritos a seguir:

Em primeiro lugar o Centro Pop é um Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, com funcionamento em unidade específica e que está estruturado para acolher e dar suporte a uma clientela peculiar que, na sua grande maioria, utiliza as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência, vivenciando assim inúmeras situações de exclusão e violações de direitos.

Ao se deparar com a resistência dos usuários em acessar os serviços de saúde em decorrência do estereótipo e da discriminação sofrida, a equipe decidiu, juntamente com a equipe do Centro Pop, realizar ações dentro desta instituição levando assim, a unidade de saúde até as pessoas que participam de atividades no Centro Pop.

A parceria foi muito positiva uma vez que a equipe CnaR foi muito bem recebida pela equipe técnica do Centro Pop que favoreceu e mediou a integração da equipe CnaR no cotidiano de trabalho da instituição e foi colaboradora de todo processo de intervenção.

A equipe se inseriu no processo de trabalho do Centro Pop e foi introduzida ao cotidiano de atividades desenvolvidas com as pessoas em situação de rua, buscando possibilitar a construção de vínculo. Foi necessária a participação em várias atividades, bem como abordagens noturnas em espaços de concentração de pessoas que vivem e trabalham nas áreas centrais da cidade como feiras, porto e praças.

A equipe passou também a frequentar o Centro Pop no horário das refeições que são entregues aos usuários da instituição onde há uma maior participação e concentração das pessoas em situação de rua em busca de alimento. Vale ressaltar que a equipe do Centro Pop realizou reiterados avisos sobre as atividades em saúde que seriam ofertadas. Assim, após a refeição, as pessoas que tinham interesse no atendimento oferecido pelo CnaR permaneciam para as ações específicas de saúde.

Ao iniciar os procedimentos, a equipe CnaR se dividia entre atendimentos de enfermagem e psicossocial. No primeiro caso, a equipe preparava o ambiente para a coleta dos testes rápidos, uma vez que o Centro Pop não era uma unidade de saúde. A outra parte da equipe iniciava o aconselhamento pré-teste com o objetivo de conhecer os crenças e valores pessoais, bem como hábitos e comportamentos sexuais dos pacientes. Conversava-se ainda sobre os testes, sua importância para a saúde e sobre os possíveis resultados e tratamentos.

Após essa primeira conversa e os esclarecimentos devidos, uma entrevista estruturada era realizada com o objetivo de conhecer melhor os usuários e ao mesmo tempo abrir os prontuários os quais serão acompanhados pela equipe CnaR.

Após a coleta do material através de testes rápidos Abon, Allere e/ou fluido oral, os usuários eram convidados a aguardar o resultado dos testes para o retorno com a equipe psicossocial para o aconselhamento pós-teste, que era feito no mesmo local onde eram realizadas as entrevistas. Realizava-se assim a devolutiva dos testes, acolhendo os pacientes em suas dúvidas sobre os resultados, procedimentos e encaminhamentos futuros, bem como oferecendo suporte emocional e orientação aos mesmos.

 

3RESULTADOS E DISCUSSÃO

Inicialmente pode-se dizer que há um duplo desafio ao trabalhar com a população em situação de rua. Primeiramente porque em Manaus, essa população encontra-se dispersa em todas as áreas da cidade, o que algumas vezes dificulta o acompanhamento efetivo. Entretanto, vale ressaltar também que a maioria absoluta dessa população se encontra, em momentos específicos do dia, no centro Sul da cidade, o que é um ponto positivo para a equipe CnaR, pois possibilita um melhor atendimento.

Outro fato identificado é que um grande número de pessoas encontradas está dentro da categoria de transeunte, ou seja, a maioria não se fixa em lugares precisos, eles andam pela cidade e encontram lugares diferentes para permanecer de forma transitória como calçadas, praças, becos, ruas, vielas, feiras dentre outros e na maioria dos casos, utilizam os espaços oferecidos pelo poder públicos e pelas ações da sociedade civil e religiosa para realizar suas refeições e higiene pessoal. Desta forma, como eles não estão fixos nesses locais, apesar de terem registros e acompanhamento das diversas equipes, percebe-se uma grande rotatividade dessas pessoas nos serviços.

Outro fator importante observado foi que, grande parte dessa população é usuária de substâncias psicoativa (gráfico I) 67% utiliza álcool e/ou substâncias psicoativas e de acordo com as regras institucionais do Centro Pop, quem está sob efeito, não pode adentrar à instituição além do fato de que alguns deles passam até 3 dias dormindo e acabam quebrando o ciclo do tratamento, tornando-o impreciso e ineficaz.

Figura 1​​ - Faz uso de álcool e outras drogas (Fonte: levantamento dos atendimentos realizados pelo CnaR, 2016)

 

Percebeu-se também que muitos não retornam para fazer o tratamento e acompanhamento, principalmente por não perceberem como prioridade o tratamento e o cuidado com a saúde, mesmo após o conhecimento das implicações da não continuidade e das suas consequências. É possível observar na maioria dos casos, que há uma enorme resistência em aderir ao tratamento, principalmente aqueles com diagnóstico de sífilis porque se dizem assintomáticos ou se já fizeram o tratamento em outra ocasião, relatam que não gostariam de o repetir, associando o tratamento indicado ao processo dolorido que o caracteriza e à necessidade do uso do preservativo ou à abstinência imediata e necessária.

A vivência do uso de drogas, tanto as lícitas quanto as ilícitas, é muitas vezes relatada como sendo a única alternativa possível que torna o sujeito capaz de suportar a completa vulnerabilidade inerente à vida nas ruas, operando muitas vezes como mediadora de relações sociais e de sobrevivência, além também de possibilitar o alívio momentâneo do sofrimento físico e psíquico [1].

O uso de drogas é algumas vezes consequência da ida para a rua, servindo também para a manutenção dela, pois, para sobreviver às condições que a rua oferece como o desconforto, o frio, a insalubridade, a insegurança, a violência e o medo que a rua também proporciona, torna-se necessário estar anestesiado, função esta que as drogas cumprem bem. Assim, se culturalmente a bebida estimula a libido, na rua a bebida atua na censura, quando se faz necessário ignorar o desconforto, a sujeira, a proximidade de outras pessoas ou a possibilidade de contrair doenças para permanecer nas ruas [5].

Alguns depoimentos durante as entrevistas deixam claro que o uso do álcool e de entorpecentes ajuda a esquecer da situação e ter coragem de enfrentar os perigos que a noite representa para a maioria deles.

Eu acho legal na rua, a diversão, conversar, falar do que você sente das coisas da vida, mas não é tão legal tem gente que pensa coisa ruim de você, estar na rua é se envolver com drogas, me envolvi com álcool, mas com droga não, outra coisa é você dormir em qualquer lugar chega uma pessoa com má intenção e fazer algo com você. (Entrevista: 2016)

Verifica-se ainda que a relação estabelecida entre o território e as pessoas em situação de rua está sempre presente. Existem certos grupos de pessoas que não se misturam por rivalidades referidas a subsistência, ao uso de entorpecentes e a própria criminalidade. Estas questões são difíceis de contornar, pois trata-se de níveis elevados de conflitos que está além das possibilidades de intervenção da equipe.

Uma das questões percebidas pela equipe é quanto ao uso do preservativo nas relações sexuais mantidas pelas pessoas com as quais a equipe conversou. A maioria absoluta (100%) afirma que não usa sempre o preservativo ora por questão de opção ora por exigência do parceiro (a). Muitos afirmam que não usam porque fazem programa e o cliente exige o não uso do preservativo, o que é mais um agravante devido à possibilidade recorrente de contaminação após o tratamento finalizado. Nos casos positivos, muitos expressam ainda que não querem que o parceiro saiba do resultado por medo da reação por desconhecerem que se prostituem para aquisição dos entorpecentes.

Quanto ao resultado dos testes há um nível bem alto de resultados positivos entre a população atendida principalmente para sífilis. Foi realizado teste rápido em 48 usuários do Centro Pop durante o período de janeiro a junho de 2016, destes 42,7% foi positivo sendo 27% para sífilis e 15% para HIV e sífilis e 2% para HIV como pode ser observado no gráfico II.

 

Figura 2​​ - Resultados dos testes rápidos (Fonte: levantamento dos atendimentos realizados pelo CnaR, 2016)

Quando a equipe passou a atuar no aconselhamento pós-teste, foi possível perceber um desconhecimento total dos usuários quanto aos testes e às doenças, havendo assim um grande interesse em entender melhor como ocorre a contágio e o tratamento.

Há uma parte do público ainda que, aparentemente, não se importa tanto ao descobrir que têm sífilis, pois afirmam estar assintomáticos e se sentindo bem. Alguns têm uma reação forte de medo ao descobrirem que o teste foi positivo, principalmente o de HIV e normalmente atribuem a doença aos seus parceiros chegando a revolta no início do diálogo mas ficam bem mais tranquilos após os esclarecimentos realizados pela equipe psicossocial.

Descobri minha doença passei vários dias, meses no 28 de agosto, e no tropical, tentei me matar por que soube que estava com HIV, foi quando as psicólogas me deram conselhos, que antes as pessoas morriam por que não tinha remédio mais hoje já existia tratamento tudo isso colocaram na minha cabeça, graças a Deus, quando tive alta fui morar de novo nas ruas. (Entrevista: 2016).

 

Figura 3​​ - Tratamento (Fonte: levantamento dos atendimentos realizados pelo CnaR)

 

 

Quanto ao tratamento, os achados mostraram que 21% iniciou o tratamento, tanto para sífilis quanto para HIV. Outros 21% ainda não tiveram seus tratamentos iniciados, para ambas as patologias, e 2% tiveram tratamento para sífilis concluído.

Importante frisar que após a notificação e solicitação da medicação para o tratamento da sífilis, a equipe CnaR levava a medicação para o Centro Pop e administrava nos pacientes, obedecendo ao protocolo que indica 3 doses realizadas em 3 semanas consecutivas. Com relação ao tratamento para HIV/aids, os pacientes eram devidamente encaminhados para um dos Serviços de Atendimentos Especializados (SAE) que compõe a rede municipal de saúde.

É perceptível nos dados encontrados que uma minoria concluiu o tratamento para sífilis de forma adequada, enquanto que uma porcentagem maior teve o tratamento apenas iniciado. Este fato deve-se principalmente à quebra na sequência das 3 semanas de tratamento, fazendo com que o paciente tenha que aguardar para iniciar novamente o tratamento.

 Os estudos na área referem que pessoas nesta situação muitas vezes só se percebem doentes quando a capacidade de locomoção pela cidade é dificultada pela enfermidade, uma vez que isto inviabiliza ou dificulta a sobrevivência dos mesmos, que depende, na maioria dos casos, do acesso aos locais de alimentação, nem sempre próximos. Em outros momentos eles tendem a buscar tratamento devido a situações de emergência, agravamento de sintomas ou de estágios mais avançados de alguma enfermidade. Assim, procedimentos que demandam um vínculo maior ao serviço de saúde e um compromisso em utilizar as medicações, como no caso do HIV/aids ficam prejudicados, ocasionando cronicidade da doença e possível infecção de outros que vivem sob as mesmas condições [2].

À exemplo de outros países, no Brasil a população em situação de rua se caracteriza como sendo extremamente vulnerável à infecção pelo HIV, basicamente devido ao aumento da vivência de miséria econômica, situação esta que somada ao abuso de substâncias psicoativas, à falta de moradia fixa, à marginalização e à violência a que está submetida, amplia a possibilidade do contágio [4].

O gráfico IV mostra uma interessante correlação entre as variáveis gênero, orientação sexual e o diagnóstico. É possível perceber que de um total de 37 sujeitos do sexo masculino testados, 29 relataram ser heterossexuais ao passo que 8 relataram ser homossexuais. Dos heterossexuais, 2 tiveram diagnóstico de sífilis e 3 tiveram diagnóstico de sífilis e HIV. Em se tratando dos homossexuais, 5 apresentaram diagnóstico de sífilis e 3 estavam com ambas patologias.

Em se tratando do gênero feminino, o total de mulheres testadas foi 11, as quais referiram a heterossexualidade como orientação. Com relação ao diagnóstico encontrado, 6 apresentaram apenas sífilis, enquanto que 1 apresentou sífilis e HIV.

Figura 4​​ - Correlação entre gênero, orientação sexual e diagnostico positivo Sífilis e HIV (Fonte: levantamento dos atendimentos realizados pelo CnaR)

 

Pelos achados, é possível perceber que o perfil de vulnerabilidade para a sífilis e HIV nessa população está associado a uma complexa gama de fatores, que compreendem desde as diferenças de gênero, características relacionadas às práticas e tipo de parceria sexual, o uso de drogas e álcool até a falta de acesso às ações de prevenção das DST e aids. Assim, o viver na rua e a insegurança causada pela falta de moradia constituem fatores que levam a situações de maior exposição ao HIV, como a violência e a falta de acesso aos serviços [3].

 Interessante notar ainda que comparativamente, a quantidade de heterossexuais com diagnóstico positivo e homossexuais também com diagnóstico positivo não foi muito diferente, sugerindo que, diferentemente do que se pensava antigamente, a infecção por HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis não está necessariamente ligada à noção de grupos de risco, mas sim à ideia de populações ou grupos vulneráveis.

 Segundo Garcia [2], a quebra com o padrão familiar heteronormativo muitas vezes representa o motivo pelo qual o sujeito passa a estar em situação de rua. O estar na rua e a vivência de dificuldades financeiras, exclusão e preconceito social, possibilita a este sujeito o adentrar no mercado sexual, vulnerabilizando ainda mais este corpo e permitindo o vivenciar de uma sexualidade fora dos padrões preestabelecidos. Contudo, independente da orientação sexual que o sujeito tenha e das práticas sexuais a que está exposto, os cuidados básicos em saúde se fazem necessários.

 

4CONSIDERAÇÕES

Neste trabalho os significados de saúde doença para a população em situação de rua é referida quando a dor está em nível do insuportável ou a capacidade de mobilidade é reduzida pelas limitações do corpo. A prevenção e o tratamento quando existe doença assintomática não é uma prioridade para tais populações, pois a realidade do cotidiano de vida os empurra para a busca de garantir os níveis mais elementares da sobrevivência.

É absolutamente clara a falta de equipamentos sociais e de políticas setoriais que levem em consideração a pessoa em situação de rua de maneira holística, de forma de vê-los como um ser que guarda uma diversidade de necessidades e histórias que determinaram a situação atual e não em partes separadas. São flagrantes ainda as tentativas recorrentes do poder público em sanear a cidade e “resolver o problema da população que vive nas ruas”, como se sair delas fosse a única e absoluta necessidade resolutiva de todo o fenômeno.

Uma conclusão aproximativa é de que existe uma demanda a ser observada, mas não apenas de saúde, mas que necessita de políticas de trabalho, habitação, educação e lazer e que devem estar preparadas para levar em consideração a realidade e acima de tudo as subjetividades envolvidas que determinam o problema.

A partir deste primeiro reconhecimento, pode-se pensar nas ações pontuais, setoriais que é o caso do projeto aqui apresentado que foi uma tentativa de levar, informação, tratamento e saúde às pessoas que estão em situação de rua na cidade de Manaus.

É importante apontar como uma primeira recomendação o estabelecimento de parcerias intersetoriais, sobretudo aquelas instituições que já realizam algum tipo de trabalho com as populações vulneráveis, sobretudo aquelas que vivem em situação de rua que pelo estigma, tem dificuldades de acesso aos serviços públicos e as políticas em geral.

É importante levar em consideração o acompanhamento dos casos que é sem sombra de dúvida facilitada pelo vínculo da população com tais instituições, o que facilita o acompanhamento dos casos e o tratamento que pode ser oferecido, como foi o caso deste projeto. Apesar do esforço, apenas 2% concluiu o tratamento o que aponta para o sucesso de ação porque tratando-se do público e das dificuldades, conseguir tratar uma parte deles já pode ser considerado um avanço porque a equipe conseguiu perceber a demanda que vem se multiplicando a procura do teste e do tratamento.

Outra recomendação relevante é tentar vincular os grupos que fizeram exames às estratégias/unidades de saúde para dar continuidade ao cuidado despertando a autonomia dos usuários no tratamento visto que o ideal é que eles mesmos busquem a prevenção e o controle percebendo a importância em cuidar de si e por outro lado, facilitar o acesso às unidade de saúde.

Para fins de acompanhamento, buscar ainda na rede informal ou instituições da sociedade civil que têm vínculo com as pessoas em situação de rua para ampliar as possibilidades de abranger as ações a grupos de territórios diferentes. Essa é uma população que se territorializa e muitos grupos fechados não se misturam por questões de conflitos por comando de áreas muitas vezes há crimes envolvidos.

Por último, deixar registrado que o fortalecimento da rede de serviços, sobretudo a rede de saúde é algo a ser construído porque na realidade as ações de saúde tendem a ser enclausuradas nas instituições em decorrência do despreparo para lidar com dimensões as quais os profissionais e gestores não estão acostumados a lidar como é o caso da dimensão da cidadania que leva a burocracia excluir aqueles que não têm documentação do acesso aos serviços de saúde, noção limitada de cidadania que é resumida na falta de documentos de identificação.

Da experiência aqui compartilhada é preciso registrar que, embora o resultado não tenha sido o planejado pela equipe, foi extremamente enriquecedor poder dividir com essas pessoas seus problemas, as histórias, compartilhar a emoção de lembrar os momentos felizes e aqueles que os faz sofrer, oferecer apoio emocional e social mesmo com todas as limitações e acima de tudo, poder oferecer tratamento e cuidado foi a melhor parte das ações.

Entendemos que as ações em saúde não estão desconectadas da dimensão humana e um dos pilares e diferenciadores de uma assistência humana está centrada exatamente na valorização da subjetividade dos sujeitos, das histórias de vida que estão conectadas diretamente com o sofrimento, a situação atual e futura. Valorizar suas dores, suas histórias de vida, os vínculos e todos os determinantes e condicionantes da saúde que estão intimamente ligadas às subjetividades e singularidades.

Além disso, conhecer melhor as dimensões do fenômeno com o qual desenvolvemos nossa prática cotidiana é uma oportunidade e necessidade para formular estratégias e elaborar ações de melhoria em futuros atendimentos que possam direcionar ações e estratégias mais condizentes com a realidade e a necessidade dos sujeitos vulneráveis em nossa sociedade.

 

5REFERÊNCIAS

  • Alcantara, S. C., Abreu, D. P., & Farias, A. A. (2015). Pessoas em situação de rua: Das trajetórias de exclusão social aos processos emancipatórios de formação de consciência, identidade e sentimento de pertença. Revista Colombiana de Psicologia, 24(1), 129-143. https://doi.org/10.15446/rcp.v24n1.40659.

  • GARCIA, Marcos. Diversidade Sexual, Situação de Rua, Vivências Nômadese Contextos de Vulnerabilidade ao HIV/AIDS. Temas em Psicologia, 2013, vol. 21, nº 3, 1005-1019.

  • GRANGEIRO, A; HOLCMAN, M; ONAGA, E; ALENCAR, H; PLACCO, A e TEIXEIRA, P. Prevalência e vulnerabilidade à infecção pelo HIV de moradores de rua em São Paulo, SP. Rev. Saúde Pública 2012;46(4):674-84.

  • MALTA, M., PETERSEN, M. L., CLAIR, S., FREITAS, F., e BASTOS, F. I. (2005). Aderência à terapia anti-retroviral: Um estudo qualitativo com médicos no Rio de Janeiro. Cadernos de Saúde Pública, 2005, 21(5), 1424-1432.

  • VARANDA, W. e ADORNO, R. C. F. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, abr. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01042902004000100007&lng=es&nrm=iso.

     

1

​​ - Agência financiadora: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM.


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