Compartilhar:

Artigo - PDF

 

Scientific Society Journal  ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​​​ 

ISSN: 2595-8402

Journal DOI: 10.61411/rsc31879

REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
.

 

 

ARTIGO ORIGINAL

Análise semântico-enunciativa do verbo Ter

Leila Patrícia Alves Dantas1

 

Como Citar:

DANTAS, Leila Patrícia Alves. Análise semântico-enunciativa do verbo ter. Revista Sociedade Científica, vol.7, n. 1, p.2718-2725, 2024.

https://doi.org/10.61411/rsc202453417

 

DOI: 10.61411/rsc202453417

 

Área do conhecimento: Linguística

.

Sub-área: Semântica

.

Palavras-chaves: Sentido; Verbo Ter; Teorias das Operações Predicativas e Enunciativas.

 

Publicado: 17 de junho de 2024.

Resumo

Esta proposta de trabalho parte de uma concepção de linguagem construtiva, a qual considera que não há sentido em unidades da língua fora dos seus usos, e busca fazer uma análise semântico-enunciativa do verbo ter, na perspectiva semântico-enunciativa, com base na Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas - TOPE. A análise parte de 10 enunciados, retirados da página de comentários UOL Blog comentários e/ou manipulados pela pesquisadora. Os resultados evidenciam que só se pode determinar o sentido de uma palavra a partir da relação desta com as outras unidades do enunciado.

 

 

.

1.Introdução

A linguagem, no estudo da Linguística, esteve, por muito tempo, atrelada a aspectos da língua, de forma estanque e imutável. Não é raro, ainda nos dias de hoje, encontrarem-se investigações relacionadas à língua, sem levar em conta os seus usos. De encontro a essa perspectiva, esse estudo toma como base aspectos da língua que são, de fato, usados por seus sujeitos.

Trata-se de um estudo que se baseia na Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas (TOPE), formulada pelo francês Antoine Culioli [1], o qual propõe uma abordagem linguística, levando-se em conta não apenas a estrutura (seja um morfema, uma palavra, um enunciado) pronta da língua, mas o seu processo de construção e os seus usos, em situações específicas. ​​ 

A partir daí, buscou-se, por meio de uma metodologia descritiva, analisar a construção semântica do verbo ter, numa perspectiva semântico-enunciativa. A escolha por esse verbo se deu, especialmente, por ser um vocábulo comum, muito frequente nos comentários da web, fonte principal de pesquisa dos enunciados que aqui foram analisados.

Esse trabalho justifica-se, principalmente, pela necessidade de se refletir sobre a construção da língua, sobretudo, do ponto semântico, partindo da concepção de que o valor semântico de uma unidade linguística só é possível na relação com as outras unidades do enunciado.

..

2.A construção semântica do verbo TER, à luz da TOPE

A teoria das operações predicativas e enunciativas se insere nos estudos sobre a linguagem e a trata como um ato não-individual, o que a define como uma teoria da enunciação. Nesse sentido, essa teoria toma como objeto de estudo o enunciado e considera que o sentido, seja do próprio enunciado ou de uma unidade linguística, nunca é dado, mas construído [1].

É uma teoria da alteridade, na qual os elementos constitutivos do enunciado, os quais são denominados operadores, estão sempre em relação uns com os outros, e somente nessa relação é que se constrói o sentido. No entanto, não se trata de uma relação arbitrária, solta ou desconexa. Apesar de a linguagem ser naturalmente variável, a TOPE busca identificar os princípios generalizantes que regulam as atividades de linguagem.

A teoria das operações predicativas e enunciativas – TOPE – alcança, então, tanto os elementos linguísticos de um enunciado, considerando toda a sua estrutura morfossintática, como também todas as possibilidades desse mesmo enunciado na língua. Segundo Romero [5], a TOPE busca ir além da materialidade linguística do texto, de modo a compreender os princípios invariantes que permitem explicá-lo e como tratar da relação entre a materialidade do texto e a materialidade significante dos sujeitos.

Diferente de outras perspectivas, a TOPE “envolve três momentos básicos: a constituição de uma lexis (a relação primitiva), a relação predicativa e a relação enunciativa. Esses três momentos envolvem uma série de operações de repérage2” [4, p. 22] e considera que o sentido de um elemento só pode ser construído; nunca estabelecido, ainda que as relações se deem de forma recorrente e invariável. Para Franckel [2, p.109], o valor semântico se dá numa abordagem construtivista, por meio da qual “o cotexto ou a situação não é exterior ao enunciado, mas gerado pelo próprio enunciado”, e é esse mesmo contexto quem determina as condições de produção do enunciado.

Para essa análise, os enunciados foram selecionados da página de comentários da UOL Blog (https://www.uol.com.br/comment), acrescidos de outros exemplos manipulados pela autora, os quais foram criados para ampliar o leque de sentidos do verbo analisado. A manipulação dos enunciados é feita através de atividades de reformulação, interpretação e explicação de uma sequência ou de um enunciado, e somente por meio dessa atividade, conforme nos orienta Franckel [2, p. 106], “em uma confrontação da sequência com cada uma de suas reformulações possíveis, é que se pode delinear uma aproximação de seu sentido”. Nesse caso, o sentido do verbo ter. 

O dicionário de sinônimos online, sinônimos.com.br, apresenta, em sua página, 87 sinônimos e 11 sentidos para o verbo ter: possuir, estando na posse de algo; conter ou ser composto por; sentir ou vivenciar algo; gerar um filho; contrair uma doença; usar como roupa; guardar ou conservar; precisar de algo ou de fazer alguma coisa; considerar, fazendo o julgamento de algo; revelar ou manifestar; alcançar ou obter algo.

 Apesar de listá-los, essa proposta de trabalho não tem interesse em enfatizar nenhum desses sentidos, mas de observar que a construção de qualquer um deles não pode ser estabelecida assim de forma pronta, tampouco sem que seja analisado o cotexto em que se apresenta a ocorrência da palavra estudada. No entanto, os sentidos determinados apontam para um possível traço em comum: o que de que a maioria dos sentidos apresentados parte de construções invariantes formadas por um argumento X, seguido do verbo ter, e de um outro argumento Y. Vejamos os exemplos:

Ex. 1) Com certeza Gustavo, em parte dos casos o professor não tem recursos, tempo, preparação e até conhecimentos para lidar com estas questões. (UOL Blog – comentários, em que X é professor, e Y é recursos, tempo, preparação e até conhecimento)

No exemplo acima, o verbo ter remete à ideia de possuir. No entanto, no mesmo contexto, o argumento tempo, que se acrescenta ao enunciado, não pode estar na mesma dimensão semântica de recursos, visto que tempo não é algo que se possua concretamente, como dinheiro (recursos), uma casa, um carro etc. O mesmo ocorre com preparação e conhecimento, os quais, assim como tempo, não se relacionam da mesma forma com a palavra ter. Vê-se, nesse caso, uma construção, e nos parece bem típica, em que o sentido do verbo é atrelado ao primeiro argumento, mas se estende aos demais, mesmo que estes não remetam à relação de materialidade que existe entre o verbo e os dois argumentos que o regem.

Ex. 2) O aluno tem desejo de aprender... (UOL Blog – comentários)

 ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​​​ X  ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​ ​​​​ Y

Porém, se confrontada à situação 2’. O aluno deseja aprender (exemplo manipulado), verifica-se que o verbo ter amplia o valor semântico do enunciado, apesar de estarem num mesmo contexto. “Ter desejo e desejar”, ainda que ocorram no mesmo contexto, apresentam nuances semânticas diferentes. Em 2, a vontade de aprender é mais forte que em 2’.

Observando a relação entre os elementos do enunciado 2, percebe-se um desejo intrínseco ao aluno; o aluno quer apreender, no sentido de querer muito alguma coisa, de perseverar, de ir atrás e conquistar o que se quer, diferente de apenas “desejar aprender”. Nesse caso, a ausência do verbo ter sugere uma vontade superficial, de não pertencimento, como se observa com a presença do verbo ter. Ao mesmo tempo em que “O aluno tem desejo de aprender”, o verbo ter não encerra o seu sentido apenas em “sentir algo”, como sugere o dicionário online.

Ao se confrontar a construção 2 com 2”, verifica-se claramente essa (des)construção de sentido pré-estabelecida.

Já no exemplo 2”.  ​​​​ O aluno tem fome (exemplo manipulado), fica evidente que o aluno sente fome; ele tem fome, no sentido de sentir e não no sentido de querer algo, como ter desejo de aprender (2. O aluno tem desejo de aprender).

Quando se diz que uma análise à luz de uma perspectiva semântico-enunciativa baseia-se no contexto e no cotexto do enunciado, enfatiza-se exatamente essa correlação acima, em que o sentido do verbo, ou de qualquer outra unidade, não pode ser estabelecido fora da relação com as outras unidades da sequência, ou seja, “não são independentes do sentido global do enunciado, no qual a unidade aparece” [3, p. 40]3 nem estão contexto e cotexto, como afirma [6], fora das formas linguísticas.

Ao confrontarem os dois exemplos abaixo:

Ex. 3) As escolas têm a educação formal voltada para as praticis... (UOL Blog – comentários, adaptada)

Ex. 4) ... o texto demonstra claramente como o aluno tem capacidades amplas em todas as áreas... (UOL Blog – comentários)

Verifica-se, no e pelo cotexto, que, apesar de possuírem a mesma estrutura sintática apresentada até agora (X e Y são argumentos regidos pelo verbo ter), não há uma unidade semântica. Em 3, o verbo sugere que as escolas educam para a praticis. Não há nenhuma relação com qualquer outro sentido preestabelecido pelo verbo; não se trata de possuir, alcançar, conter ou qualquer outro. O verbo ter se “aglutina” ao argumento Y. Igualmente ocorre com o exemplo 4, o qual sugere que o aluno é capaz em todas áreas (acrescenta-se que o aluno seja capaz de resolver problemas relacionados a diversas áreas do conhecimento). 3 e 4 diferem-se, portanto, de 2”, visto que “o aluno tem fome” pressupõe um argumento regido pelo verbo ter.

Se por outro lado, pensarmos em 2.1”: o aluno tem fome de aprender, o verbo ter deixa de estar vinculado, mais uma vez, a qualquer um dos sentidos previamente estabelecidos. 2.1” está em uma relação semântica de aluno para aprender, em que nos parece mais apropriado pensar em “o aluno quer muito aprender; aprender é o que mais quer”. Nesse caso, o verbo ter se liga à fome, de modo que “ter fome de...” expressa “querer mais que tudo”, “querer a qualquer custo”. O verbo ter convoca a determinação do aluno para aprender. O verbo ter convoca, em 2.1’, a necessidade de aprender como se fosse algo que o alimente e o deixe vivo. Aprender é o alimento que preenche a fome do aluno.

Em outra situação, 2.2”: o aluno tem de aprender, o verbo ter atribui ao enunciado um valor de obrigatoriedade. O aluno é obrigado a aprender. Nesse caso, não se trata de querer aprender, nem um desejo, mas um dever/obrigação de aprender.

Em mais um exemplo, verifica-se que o sentido do verbo ter extrapola o simples valor semântico de possuir.

Ex. 5) O blog pedagógico tem um potencial infinito... (UOL Blog – comentários)

No caso 5, ter amplia a capacidade, ou potencialidade, do argumento X, de explorar diversas áreas do conhecimento. Não se trata, nesse caso, apenas de possuir esse potencial. Na verdade, nem se pode falar em possuir potencial, uma vez que potencial está na esfera do virtual ou do abstrato, da não realização, da não concretude. Ter, no exemplo 5, está mais para um valor estático de ser um potencial infinito. Ter, nesse caso, está mais para ser do que para qualquer outro valor semântico. As pessoas têm a possibilidade de interagir e trocar experiências, formando um ambiente de aprendizagem.

Ao confrontarmos 5 com 5’: “o blog pedagógico tem um layout colorido”, vemos a diferente relação que se estabelece entre as demais unidades do enunciado. Ter, em 5, incide sobre o blog uma ideia de abstração; o blog, nesse caso, ultrapassa a dimensão da tela; é o que os integrantes que compõem o blog são capazes de realizar. Em 5’, o verbo incide sobre o blog, limitando-o à ideia de espaço virtual como tela. Trata-se da aparência da tela; do formato, das cores e imagens usadas na página inicial do blog. Não diz respeito aos componentes do blog, mas ao aspecto visual e concreto da página.

Percebe-se, então, uma estrutura invariável, em que X é um argumento do verbo ter, o qual incide sobre Y, mas o sentido de ter não se dá de forma isolada; está correlacionado aos elementos X e Y, tanto do ponto de vista desses elementos enquanto unidades lexicais quanto em relação ao enunciado como um todo.

.

3. Considerações finais

A partir da reformulação dos enunciados, constatou-se que nenhum valor semântico em relação ao verbo TER vem unicamente da unidade linguística. Mesmo de posse dos possíveis sentidos (preestabelecidos) que a palavra possa expressar, o seu sentido dependeu das demais unidades, verificadas no e pelo cotexto, em diferentes contextos, confirmando, portanto, que o sentido de uma unidade lexical só pode ser efetivado no enunciado.

​​  Destacou-se também que a estrutura invariável de emprego do verbo ter não configura uma estabilidade do seu sentido. Em outros casos, o verbo apresenta um caráter mais estático, apenas apoiando a unidade lexical geradora de sentido. ​​ 

Analisar a língua do ponto de vista semântico-enunciativo insere-se, por isso, em uma proposta inovadora, que deve, portanto, fazer parte de todos que lidam com a linguagem, sobretudo, aqueles inseridos no ambiente de ensino. Uma análise dessa natureza pode ajudar a repensar a forma como aspectos da língua vêm sendo tratados em livros didáticos ou salas de aula, e ainda melhorar a compreensão e a leitura da estrutura linguística como um todo.

 

4.Declaração de direitos (DejaVu Serif,12)

 O(s)/A(s) autor(s)/autora(s) declara(m) ser detentores dos direitos autorais da presente obra, que o artigo não foi publicado anteriormente e que não está sendo considerado por outra(o) Revista/Journal. Declara(m) que as imagens e textos publicados são de responsabilidade do(s) autor(s), e não possuem direitos autorais reservados à terceiros. Textos e/ou imagens de terceiros são devidamente citados ou devidamente autorizados com concessão de direitos para publicação quando necessário. Declara(m) respeitar os direitos de terceiros e de Instituições públicas e privadas. Declara(m) não cometer plágio ou auto plágio e não ter considerado/gerado conteúdos falsos e que a obra é original e de responsabilidade dos autores.

.

5.Referências

  • CULIOLI, A. Pour une linguistique de l’énonciation. Opérations et représentations2, Paris, Éditions Ophrys, 1999a.

  • FRANCKEL, J. J. Da interpretação à glosa: por uma metodologia da reformulação. In. DE Vogüé, S.; Franckel, J.-J.; Paillard, D. (2011). Linguagem e Enunciação: representação, referenciação, regulação. São Paulo: Contexto, 2011.

  • JALENQUES, P. La synonymie en question dans le cadre d’une sémantique constructiviste. Pratiques, 2009.

  • LIMA, M. A F. O artigo no processo de construção referencial: as operações de determinação e indeterminação. Tese de Doutorado. Unicamp, São Paulo, 1997.

  • ROMERO, M. Léxico, invariância y actividad de lenguage. In Garcia-Molins, À. L; Jimenez, D. J. (editores). Enaccíon y léxico. Tirant Humanidades: Valencia, 2017.

  • VOGUÉ, S. de. L’énonciation dans le lexique. Actualité du concept benvenistien d’intégration dans lathéorie des formes schématiques de l’école culiolienne. In.: Brunet E., Mahrer R. (eds) Relire Benveniste. Réceptions actuelles des Problèmes de linguistique générale. Louvain-la-Neuve, Collection Sciences du langage: carrefours et points de vue, Academia- Bruylant, pp. 169-195.

     

1

Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina, Brasil.

2

​​ Para o termo répérage não temos ainda tradução em português. É usado por Culioli [1] no sentido de que, quando se tem uma relação, ela se organiza em torno de um certo elemento (Culioli, 1976, p.107 apud [4, p. 43].

 

3

​​ “ne sont pas indépendantes du sens global des énoncés dans lesquels l’unité apparaît”.


Compartilhar: