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ISSN: 2595-8402

Journal DOI: 10.61411/rsc31879

REVISTA SOCIEDADE CIENTÍFICA, VOLUME 7, NÚMERO 1, ANO 2024
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ARTIGO ORIGINAL

Paradoxo democrático no controle judicial de constitucionalidade

Nathan Vinagre Augusto dos Santos1

 

Como Citar:

DOS SANTOS, Nathan Vinagre Augusto. Paradoxo democrático no controle judicial de constitucionalidade. Revista Sociedade Científica, vol.7, n. 1, p.2366-2393, 2024.

https://doi.org/10.61411/rsc202446417

 

DOI: 10.61411/rsc202446417

 

Área do conhecimento: Direito

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Sub-área: Direito Constitucional

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Palavras-chaves: Controle de Constitucionalidade, Democracia, Supremo Tribunal Federal.

 

Publicado: 20 de maio de 2024

Resumo

O presente trabalho busca verificar se seria cabível a mitigação do paradoxo democrático constante no controle concentrado de constitucionalidade. Inicialmente, o artigo apresenta os aspectos benéficos do controle de constitucionalidade para o Estado Democrático de Direito, abordando a questão da harmonização dos poderes e da proteção dos direitos fundamentais, uma vez que tais matérias são cruciais para a preservação das democracias modernas. Entretanto, por mais que o controle possua caraterísticas indispensáveis para o exercício democrático, a extrapolação dessa competência constitucional acarreta crises de legitimidade, seja pela utilização de embasamento político no momento da realização da decisão ou de interpretação criativa, valendo-se de valores morais, como argumentação jurídica. Nesse aspecto, conclui-se que o desenvolvimento de metodologia de decisão jurídica, com preceitos de atuação melhores delineados, diminuiria eventuais crises democráticas nas decisões proferidas. Ademais, a organização legislativa com o efetivo acompanhamento e realização de relatórios sobre os julgamentos da Suprema Corte corroboraria com a ideia de mitigar os impactos democráticos da decisão judicial, ao constitucionalizar a questão por intermédio de emendas constitucionais.

 

 

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1.Introdução

O controle de atos do executivo e legislativo pelo Poder Judiciário encontra-se exaustivamente descrito na Constituição Federal de 1988, dentro de uma sistemática de proteção da própria constituição. Nesses parâmetros, seria função do órgão composto de membros concursados (no controle difuso) ou nomeados pelo chefe do Poder Executivo, sabatinados e referendados pelo legislativo, proferir decisões quanto a compatibilidade dos atos e normas aos anseios constitucionais.

O referido controle, apesar ser realizado por todos os órgãos públicos em uma modalidade difusa, acaba recebendo ênfase no seu exercício concentrado, por intermédio das ações de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Diante disso, temos a possibilidade de uma corte não eleita diretamente decidir sobre a adequação do ato ou lei perante a Carta Magna, podendo retirar os seus efeitos do mundo jurídico quando incompatíveis. Destarte, o controle de constitucionalidade tem como última palavra a Corte, cujos membros, com cargos quase que vitalícios, foram escolhidos pelo representante eleito Chefe do Poder Executivo, como se fossem designados indiretamente pela população passada com efeitos futuros para a sociedade atual.

Porém, a ausência de participação popular direta, principalmente da nova composição social, na escolha dos integrantes do Poder Judiciário provoca uma crise em volta da legitimidade democrática por trás das decisões sobre controle de constitucionalidade. Nesse aspecto, tem-se a formação crítica no regime democrático referente a limitação de leis e atos proferidos por representantes eleitos em virtude das decisões de um grupo de pessoas seletas sem qualquer ligação direta para com a população. Destarte, a premissa de que o controle de atos em prol da constituição partiria de um órgão autônomo e independente sem correlação, ao menos direta, com os aspectos políticos-eleitorais provoca o questionamento quanto a sua adequação ao regime democrático de governo.

Entretanto, quando verificamos as concepções recentes de democracia, na qual houve a mistura da teoria tradicional com o liberalismo e proteção dos direitos fundamentais [13], é possível elencar características tanto pró-defesa do regime de governo pelo controle judicial de atos quanto contrários aos aspectos democráticos. Acontece que as decisões proferidas pelo poder judiciário na sua função de controle atravessam uma linha tênue, onde é possível defender e afrontar a democracia em si. Nesse sentido, seria possível descrever traços característicos e limitadores do poder de decisão com objetivo de apaziguar as questões democráticas controversas no mecanismo de defesa da constituição.

Diante disso, o artigo descreve o paradoxo presente no exercício do controle de constitucionalidade e o regime democrático de governo, demonstrando que o instituto corrobora com a defesa da democracia se adotado de maneira razoável. Nesse sentido, busca-se responder o seguinte problema: se o seria cabível mitigar o paradoxo existente entre a adoção do controle de constitucionalidade e o regime democrático de governo?

Para a resolução da questão, será utilizado como metodologia o estudo bibliográfico e documental a respeito do tema, com o objetivo de demonstrar os benefícios do controle de constitucionalidade, bem como formas de apaziguar as crises democráticas acarretadas pela realização de decisões de caráter político e com base em valores morais.

Nesse sentido, o artigo trata inicialmente sobre os benefícios do controle de constitucionalidade ao regime democrático de governo, descrevendo a questão da preservação de direitos fundamentais e da separação dos poderes. Posteriormente, o trabalho descreve os malefícios da extrapolação do texto constitucional, por meio da realização de decisões baseadas em preceitos políticos e em interpretação criativa, para o regime democrático de governo, acarretando no paradoxo da defesa democrática. Por fim, traça-se parâmetros de conciliação do regime democrático de governo com o exercício razoável do controle de constitucionalidade.

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2. Desenvolvimento e discussão

2.1A defesa dos preceitos democráticos por intermédio do controle de constitucionalidade exercido pelo judiciário

O regime democrático de governo, em uma perspectiva tradicional, envolveria a decisão da maioria da população votante, sem estabelecer um limite de atuação das decisões majoritárias [13]. A ausência de limitação ao exercício do voto acabaria por possibilitar decisões contra os anseios minoritários, permitindo inclusive a realização de votos que cerceariam a liberdade do próprio cidadão [8]. Com base nisso, a quebra do modelo democrático, então, aparece com o próprio voto da maioria, diante da captação do discurso por demagogos, vertente essa presente nas democracias diretas.

Por outro lado, o grande quantitativo de pessoas que constituem a população, nas sociedades modernas, demandou outra modalidade de democracia, que seria a representativa ou indireta [13]. Nela, a sociedade votaria em seus representantes na elaboração das normas e realização de atos administrativos. Uma vez eleito, mesmo que com a maioria absoluta dos votos, para exercer mandato, o chefe do Poder Executivo ou membro do legislativo não se vinculam as promessas realizadas à sua base eleitoral [9]. Nesse aspecto, não há como individualizar se todos os atos praticados pelo representante se adéquam ou não aos anseios majoritários da população [7].

Feita essa consideração, com o objetivo de evitar a erosão do modelo democrático de governo, a concepção de democracia alterou-se para evitar a concentrar de poder e englobar a proteção dos direitos individuais, uma vez que, sem eles, o exercício do voto poderia ser maculado [8]. Limitadores ao voto da maioria da população devem ser estabelecidos pela própria norma de caráter hierarquicamente superior votada pela própria população, que seria a Constituição [13]. Assim, temos a positivação de preceitos mínimos de funcionamento do Estado e de limitação de determinados atos, mesmo que votados pela maioria da população, com o objetivo de evitar a erosão do modelo democrático de governo.

Por esse motivo, o controle de atos realizados por intermédio da Constituição deve ser realizado com o objetivo de evitar a quebra do regime democrático de governo. Entretanto, diante da referida necessidade, faz-se presente o questionamento de qual função de poder deveria ser encarregado da referida atribuição, tendo em vista a imprescindibilidade de o controle representar os anseios não apenas constitucionais mais sociais.

A Constituição de 1988, ao tratar sobre o assunto, atribuiu a competência do controle de constitucionalidade concentrada para o Poder Judiciário (mais especificamente ao STF) [2], possibilitando que um órgão não eletivo, mas indicado por quem foi eleito Chefe do Executivo, retirasse a eficácia de determinadas normas. Apesar de parecer contrário ao modelo democrático de participação social na tomada de decisões, a escolha do judiciário como órgão de controle permitiria a defesa do regime democrático contra a erosão do próprio modelo. A deliberação quanto ao controle de constitucionalidade refere-se à ausência de participação direta da população na escolha de seus representantes para a tomada de decisões, limitando o poder de atuação da maioria. Com base nisso, o presente capítulo aborda sobre as concepções vantajosas do controle de constitucionalidade judicial ao regime democrático de governo.

Em suma, o capítulo apresenta, inicialmente, como o controle de constitucionalidade exercido pelo judiciário possibilita uma melhor harmonização dos poderes, contribuindo para o controle e entendimento dos três poderes. Em seguida é demonstrado o benefício da proteção de direitos fundamentais exercido pelo poder judiciário, demonstrando que tal função de poder se torna indispensável pelo seu afastamento da deliberação política.

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2.1.1O controle de constitucionalidade judicial como forma de manter a harmonia e separação dos poderes nas democracias

No modelo democrático de governo, principalmente no regime representativo, é essencial a separação dos poderes, a fim de evitar concentração das atribuições em um grupo de pessoas que por ventura desvirtuariam e quebrariam o modelo em si [9]. Dessa forma, a separação das atribuições de poder em três vertentes se tornou indispensável para o desenvolvimento e subsistência desse regime de governo, permitindo uma neutralização do poder pelo próprio poder, com base em um sistema de freio e contrapesos [19].

Ao Executivo caberia a administração do país, controlando os aspectos orçamentários, regulamentando a aplicação prática do texto normativo e com possibilidade de vetar leis recém aprovadas pelo Legislativo. Enquanto isso, o Legislativo possuiria, além de fiscalizar o executivo, a função de inovar no ordenamento jurídico por intermédio da aprovação de leis lato senso. Por fim, o judiciário teria a competência de observar, interpretar e aplicar as normas no caso concreto [23].

Com base nos parâmetros de separação, quais das referidas funções de poder do modelo tripartite teria a competência, dentro de um regime democrático, para a preservação de normas constitucionais no ordenamento jurídico, retirando a eficácia das regras incompatíveis?

Frente a essa constatação, é possível realizar um procedimento bastante simples relacionado ao método de melhor adequação as premissas dos referidos poderes. Nesse sentido, busca-se verificar qual dos poderes teria possibilidade de exercer o controle dos atos sem ferir o modelo harmônico da separação e o regime democrático de governo. É claro que tanto o legislativo quanto executivo podem verificar a adequação de uma norma perante a constituição. Porém, o teor da discussão envolveria o poder que teria atribuição de decisão em última instância sobre o controle de constitucionalidade, ou seja, quem deveria ter a possibilidade de retirar a eficácia da norma em definitivo em todo território nacional.

Ao observamos os aspectos presentes no Poder Executivo, é possível constatar uma série de atribuições incompatíveis com o ato de controle de constitucionalidade das normas. Ao possuir a competência para vetar projetos de lei (tanto a concepção política quanto jurídica), ele já apresentaria uma modalidade de controle, sendo exacerbado a presença de outro instrumento [14]. Diante disso, ao misturamos a forma de contenção típica do executivo (veto das normas aprovadas) com o controle de constitucionalidade decidido em última instância, estar-se-ia concentrando de forma exacerbada o poder no Executivo, uma vez que ele impediria e acabaria por controlar a atuação do legislativo.

Ademais, o Poder Executivo possuiria uma competência de caráter regulatório, ou seja, proferiria normas que complementariam o teor do texto normativo, com a finalidade de dar-lhe maior aplicabilidade prática (proferindo, por exemplo, normas procedimentais administrativas para adequar à lei) [14]. Nesse sentido, aferir legitimidade do controle de constitucionalidade ao Executivo, permitiria que o mesmo realizasse um autocontrole dos seus atos, o que tornaria ineficaz e esvaziaria os seus ideais. Dessa forma, percebemos que tal função não poderia ficar encarregado da realização do controle de constitucionalidade, uma vez que tal prerrogativa é incompatível com a separação dos poderes e com o regime democrático, mesmo que o chefe do executivo tenha sido eleito pela maioria da população naquele momento [23].

No que diz respeito ao Poder Legislativo, ele possuiria a competência para fiscalizar o executivo e inovar no ordenamento jurídico pela votação e aprovação de leis. Essa premissa constitucional por si só seria incompatível com a controle efetivo de constitucionalidade, tendo em vista que se uma determinada lei foi aprovada pela maioria do parlamento, dificilmente, o mesmo órgão retiraria a eficácia da norma [14]. A natureza, assim, do poder legislativo inviabilizaria a sua atuação como controle constitucional das normas em última instância.

Além disso, o Legislativo já possui a atribuição de sustar atos do executivo que extrapolem a sua competência e as normas legais, realizando inclusive o controle externo sobre o orçamento com o auxílio do Tribunal de Contas [2]. Nesse aspecto, o legislativo já apresentaria uma modalidade de controle do executivo, sendo nítida a necessidade de controle de seus próprios atos de legislar. Com base nisso, o controle de constitucionalidade das leis no seu sentido concentrado deveria ser realizado por um órgão em separado tanto do legislativo quanto do executivo.

Em virtude das premissas levantadas, o controle de constitucionalidade judicial seria o que melhor se adequaria ao modelo democrático e ao de separação dos poderes. O judiciário, como poder autônomo, não ficaria vinculado aos demais poderes, podendo decidir com certa imparcialidade [23]. Dessa maneira, haveria a devida conciliação do controle das normas e atos perante a constituição de maneira a resguardar os preceitos indispensável para o regime democrático.

Vale reverberar que tal modelo não feriria o regime democrático de governo, tendo em vista que o judiciário apenas averiguaria a compatibilidade do ato normativo às normas constitucionais, estando limitado aos preceitos constitucionais [17]. A Constituição Federal, como norma hierarquicamente superior no ordenamento jurídico, com respaldo da maioria da população a época de sua promulgação, deve ter seus anseios resguardados como indispensáveis para evitar a erosão do regime democrático. Dessa maneira, o Poder Judiciário, como órgão inerte apenas estaria mantendo as prerrogativas constitucionais a ele atribuídas, o que retiraria qualquer argumentação quanto a ilegitimidade da corte [8].

Outro aspecto importante seria o fato de que o controle concentrado e abstrato é exercido pelo Supremo Tribunal Federal, órgão composto de ministros escolhidos pelo Chefe do Executivo e sabatinado no Senado Federal [2]. Isso significa dizer que o representante da maioria da população selecionou quem iria desempenhar o controle, tendo um certo reflexo de representatividade. É claro que a escolha tem efeitos futuros, diante do tempo de permanência do ministro do cargo, mas não inviabilizaria o argumento de que houve uma dose de representatividade democrática no processo de escolha.

Em suma, a atuação do poder judiciário no controle de constitucionalidade permitiria uma melhor adequação ao regime democrático de governo, sendo essencial para a defesa de certos preceitos fundamentais. O controle permitiria, assim, a adequada separação dos poderes, ao evitar que um poder adentre na competência do outro. Somando-se a esse cenário, temos a viabilidade de defesa dos direitos fundamentais no controle concentrado de constitucionalidade como aspecto indispensável nos regimes democráticos de governo, preceito esse a ser explorado no tópico seguinte.

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2.1.2 Proteção dos direitos fundamentais pelo controle de constitucionalidade judicial como forma de exercício das prerrogativas democráticas

A defesa dos direitos fundamentais tornou-se fundamental para o pleno exercício da democracia. Não há como a sociedade exercer o seu voto de maneira plena (entendido como a capacidade de votar como bem entender, sem qualquer limitação física ou mental para o seu exercício) sem que premissas mínimas fossem resguardas [13]. Essas normas fundamentais são essenciais para o regime democrático de governo, tendo em vista a necessidade de preservar o direito ao voto, livre de qualquer censura ou restrição, premissa de fusão dos aspectos liberais, de limitação do Estado, com os democráticos [8].

À título exemplificativo, o direito à vida e a liberdade de expressão devem ser resguardados para toda a população, permitindo a formação de grupos com ideias divergentes, aptas a formação de premissas majoritárias e concepções minoritárias [8]. Porém, a sociedade não é imutável, o que significa dizer que ela vai se moldando socialmente com o passar do tempo, permitindo a difusão de ideias dos grupos minoritárias, ganhando cada vez mais espaço na sociedade. Assim, a formação do fluxo de pensamentos pode provocar a alteração do pensamento social, de forma que o grupo antes minoritário passa a ser majoritário [6].

Entretanto, não haveria como preservar esses direitos sem um efetivo controle dos atos do legislativo e do executivo. A pessoa eleita com anseios autocráticos tende limitar determinados direitos fundamentais, partindo de uma perspectiva intrínseca da natureza humana de sempre buscar o acumulo poder [16]. A partir do momento em que o governo censura determinado pensamento contrário a suas ideologias, a população restaria alienada para os atos indevidos praticados pelo governo, o que impediria a formação de um senso popular critico, ficando o cidadão refém das informações governistas manipuladas.

A concretização dos direitos fundamentais, assim, não poderia se dar simplesmente pela confiança nos representantes eleitos, sendo fundamental a organização do controle dos atos e normas por intermédio da Constituição Federal. Nesse aspecto, o controle de constitucionalidade judicial resguardaria as garantias constitucionais, impedindo a realização de atos e normas que as violem. Ao afastar a aplicação de uma norma, o Poder Judiciário estaria concretizando premissas constitucionais promulgadas pelo poder Constituinte, concepções essas indispensáveis para o pleno exercício e manutenção da democracia [8].

Vale reverberar que não apenas os direitos individuais são necessários para o exercício democrático, sendo indispensáveis a proteção de todas as dimensões dos direitos fundamentais, com a concretização de direitos sociais (como alimento, trabalho, educação, lazer, dentre outros) e difusos (meio ambiente, proteção da criança e adolescente, etc.) [5]. A fome, por exemplo, que assola a população é um importante fator para a manutenção do poder do governante autocrata, uma vez que a população não teria capacidade de enfrentamento das instituições de governo, estando mais preocupados com a aquisição de alimentos básicos do que efetivamente manifestar-se contra um mau governante, fazendo-as depender do Estado [22]. Nesse aspecto, a realização de políticas públicas de caráter sociais também são importantes fatores para a manutenção da integridade física e mental popular, permitindo a formação de um ambiente apto ao desenvolvimento completo do senso social crítico.

Na Venezuela, por exemplo, a fragilidade de certos direitos fundamentais mínimos impede o pleno exercício do voto, provocando a formação e manutenção de um governo autocrático [16]. As manifestações contrárias ao governo tendem a ser rapidamente dissolvidas pelas forças policiais, bem como são infrutíferas frente ao poder governista, estando a população refém de um autocrata e de seus colaboradores [16]. Uma das medidas adotadas por Hugo Chaves na tomada de poder, além da realização de uma nova Constituição, seria a ampliação da Suprema Corte e designação de colaboradores do regime autocrata para o exercício do cargo [15]. Dessa forma, a quebra do controle judicial pelo governante possibilitou a ruina do modelo democrático de governo, ante a impossibilidade de afastar normas violadoras de premissas fundamentais mínimas para a sua subsistência [8]. ​​ 

Nota-se, pois, que o controle de constitucionalidade realizado pelo Poder Judiciário tem o condão de afastar normas e movimentações administrativas tendentes a abolir o regime democrático de governo. Ao proferir a decisão, o magistrado analisa os fins e os efeitos de determinada norma como forma de verificar se houve a redução de preceito fundamental para o exercício de direitos individuais, sociais e políticos. Isto posto, o controle judicial dirime as tentativas de reduzir a capacidade votante da sociedade, resguardando mínimas condições pra a subsistência do regime democrático de governo [8].

Tanto é que, nas sociedades modernas, as tentativas bem sucedidas de quebra do modelo democrático, tal qual o caso da Venezuela, teve como enfoque a neutralização do controle exercido pela Suprema Corte, por intermédio de reformas judiciais (como por exemplo o aumento de seus membros) [16]. O governante eleito diversas vezes busca a manutenção de um poder dentro da Corte Constitucionais como forma de esvaziar o controle constitucional por ele exercido. Dessarte, o Supremo Tribunal contribui para o regime democrático de governo ao evitar reformas tendentes a abolir o regime, bem como prevenindo possíveis limitações ou extinções de direitos fundamentais necessários para a manutenção da democracia [15]. ​​ 

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2.2A formação do paradoxo democrático em decorrência da utilização desmedida do controle de constitucionalidade

Apesar do controle de constitucionalidade ser um instrumento fundamental para a defesa do regime democrático de governo, não há como afastar a ideia de subversão da ferramenta de controle pelos órgãos do Poder Judiciário. Essa capacidade, inerente à própria concepção de ser humano político, de desvirtuar mecanismo de controle permitiria uma sobreposição do poder judiciário perante os demais poderes. A possibilidade de controle dos atos tanto administrativos quanto legislativos poderia ensejar na restrição de ambas se utilizada de forma desarrazoada [20]. Portanto, qualquer decisão de natureza política teria de ter o aval da Suprema Corte, funcionando com uma lógica inversa.

A captura dos demais poderes pelo judiciário é factível quando verificamos a judicialização exacerbadas de demandas voltadas a captação política de determinados atos normativos. Tornou-se comum, com o mecanismo de controle de constitucionalidade, a utilização do processo como último recurso do grupo “prejudicado/derrotado” no parlamento com o objetivo de retirar os efeitos jurídicos da norma [18]. Como a Corte, quando demandada, deve-se manifestar sobre os argumentos jurídicos expostos pelo autor da ação, a atuação do Supremo Tribunal acaba por se transformar em um Tribunal de confirmação da validade dos atos normativos [18] (no âmbito unicamente jurídico é claro, diferente do veto presidencial que pode ser jurídico ou político).

Nesse aspecto, o problema da aplicação desmedida de determinadas decisões encontra-se muitas vezes presente no controle de constitucionalidade, o que gera uma crise de legitimidade. A sensação popular de que os atos praticados pelo representante eleito vêm sofrendo restrições indevidas pelo judiciário acaba por imperar no governo. Preceito esse que se eleva ao observar a natureza quase que vitalícia do cargo de ministro do Supremo Tribunal, uma vez que se tem uma presunção social de que o juiz indicado por outro presidente está inviabilizando o governo de um novo representante eleito [18].

Com isso, há de surgir um paradoxo no controle de constitucionalidade pelo poder judiciário, onde temos tanto preceitos benéfico ao regime democrático de governo quanto atos que acabam por engendrar uma crise de legitimidade. Nesse sentido, o presente capítulo explicará esse paradoxo ao descrever algumas formas de decidir que impactam negativamente os anseios democráticos.

Destarte, o capítulo se subdivide em dois tópicos. O primeiro retrata a tomada de decisão de caráter político, descrevendo que essa forma de decidir acaba por aproximar as atribuições da corte ao cenário político, o que provoca a crise ao regime democrático de governo. O segundo ponto irá adentrar na utilização da interpretação criativa, embasada principalmente em valores morais, como provocadora da ruptura de legitimidade democrática.

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2.2.1A judicialização de matérias políticas como medida provocadora da crise democrática

O ordenamento jurídico brasileiro adota o modelo tripartite no quesito separação dos poderes. Nela, o Poder Executivo apresenta função típica administrativa, podendo inclusive inovar no ordenamento jurídico por intermédio de medidas provisórias, bem como propor projeto de lei a ser votado no parlamento. Enquanto isso, o legislativo fica encarregado da votação de leis em sentido amplo, inovando na ordem jurídica vigente. Por fim, o judiciário ficaria encarregado da aplicação da lei no caso concreto, interpretando-a e suprindo lacunas de maneira a evitar contradições na sistemática normativa [2].

Nota-se pela natureza das funções de poderes que o Executivo e o Legislativo estão em constante debate diante da natureza política de ambas as atribuições [18]. De maneira simples, o Executivo tem a função de governar, dependendo da aprovação de normas para concretizar o plano de governo, o que se traduz na necessidade de formação de bases no parlamento. Já o Legislativo depende do Executivo no quesito sanção do texto normativo aprovado (no caso de leis ordinárias e complementares), bem como liberação de verba orçamentária para a concretização de promessas perante seus eleitores [23].2

Entretanto, indo em sentido contrário, o Poder Judiciário não tem participação incisiva no processo político de negociação do arcabouço normativo. É claro que existe a prerrogativa constitucional quanto ao próprio orçamento e normas voltadas a organização do judiciário [18], mas não passa disso. Ao conceder o controle de constitucionalidade ao Poder Judiciário, mais especificamente ao Supremo Tribunal na modalidade concentrada, temos uma possibilidade de um órgão decidir sobre os efeitos jurídicos das normas, angariando certa posição política e de negociação [20]. Essa função política, implícita no controle de constitucionalidade constitui um dos desencadeadores de uma eventual crise de legitimidade democrática.

O problema em si não seria essa concepção política, presente na natureza intrínseca do próprio ser humano, do órgão julgador e de seus membros, mas sim a externalização dos anseios políticos na tomada de decisão. A decisão proferida em sede de controle de constitucionalidade deve se ater ao texto constitucional e aos anseios do constituinte originário, observando as alterações propostas pelo constituinte derivado, o que significa dizer que a fundamentação tem que englobar os aspectos unicamente constitucionais [21]. Ocorre que, diante da existência de preceitos vagos na Constituição Federal e baseado em aspectos implícitos, o controle de constitucionalidade acaba sendo uma decisão política do que propriamente jurídica [18]. Nesse aspecto, a clara percepção política na decisão para fins de retirada de efeitos jurídicos com o objetivo de beneficiar determinada classe política é o que prejudica os aspectos democráticos do regime de governo.

À título exemplificativo, temos, recentemente, uma decisão liminar em sede de controle de constitucionalidade que suspendia a Lei das Estatais. Não há, de maneira clara e manifesta, nenhuma afronta direta aos aspectos constitucionais [4]. Pelo contrário, tal lei, em tese, teria como objetivo de garantir maior impessoalidade e segurança nas empresas públicas e de sociedade de economia mista. Retirar o efeito jurídico dessa norma invocaria claro debate político em sede de processo judicial, o que violaria os anseios democráticos de governo. Essa externalização, pelo exercício do controle de constitucionalidade, de anseio político, sem uma base clara e robusta proveniente do texto constitucional, ocasionaria a real quebra do regime democrático de governo.

Vale reverberar que o fato de um ministro ser indicado pelo Chefe do Poder Executivo, eleito e sabatinado pelo Senado Federal não privilegia a adoção de decisões com preceitos nitidamente políticos em sede de controle de constitucionalidade [2]. Apesar da referida indicação, o ministro exerce um mandato de 15 a 40 anos (prazo entre a idade para nomeação e a aposentadoria compulsória), sendo uma clara referência sua a independência e autonomia, ou seja, ele não deve atuar para beneficiar nenhuma classe política [2]. Ademais, uma democracia é feita com base em uma maioria variável, ou seja, o grupo minoritário pode se tornar majoritário e vice versa. Por esse motivo, não há como dizer que tal grupo de magistrado está atuando em prol dos anseios majoritários da população, ante a impossibilidade de aferir qual vertente é a majoritária nas atuais democracias voláteis [7].

Nessa modalidade, os projetos e atos aprovados e realizados pelos membros eleitos somente poderiam ser questionados em face da Constituição e não com base em conceitos políticos implícitos e subjetivos. Tal atuação externalizada, mesmo que implicitamente, através do voto dos membros da corte provoca a crise de legitimidade, sendo um dos fatores a serem dirimidos a fim de adequação aos preceitos democráticos de governo.

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2.2.2O ativismo judicial no exercício do controle do controle de constitucionalidade desvirtuando o regime democrático de governo

O Poder Judiciário, ao proferir a decisão no controle de constitucionalidade, deve se ater as normas constitucionais tanto explicitas quanto implícitas. A verificação da compatibilidade da norma pelo texto explicito é bastante simples de se realizar, uma vez que basta verificar a redação contida na norma infraconstitucional e a presente na Constituição. Por outro lado, a extração de preceitos implícitos, como princípios, da norma constitucional positivada é uma tarefa que demanda uma argumentação jurídica mais robusta, verificando as nuances presente no texto e os efeitos finalísticos das normas [10]. Pior cenário é aquele em que existe uma incongruência no texto constitucional, tais como o conflito de normas, devendo o magistrado ponderar a interpretação que vai se sustentar no caso concreto.

Nessas ocasiões, o Poder Judiciário não pode se abster de decidir sobre a questão debatida nos autos do processo, devendo interpretar a norma de maneira mais congruente possível. Entretanto, tal permissão não significa dizer que o Supremo Tribunal tem prerrogativa para decidir utilizando-se de concepções abstratas sem respaldo metodológico e jurídico. Simplificando, não há no texto normativo autorização para que a Corte realiza uma interpretação criativa da norma, o que significa dizer que o ministro deve se abster de inovar no ordenamento jurídico de maneira totalmente oposta ao dito no próprio texto normativo [10].

Para fins de esclarecimento, interpretações criativas se configurariam com utilização de teses jurídicas sem qualquer respaldo na redação constitucional, nem por meio da metodologia de abstração das normas. O Poder judiciário não é o legislativo para criar direitos inexistentes, nem imputar obrigação sem prévia estipulação no ordenamento jurídico, devendo observar os limites constitucionais na interpretação da norma e na supressão de lacunas.

Essa interpretação criativa, por meio da fabricação de norma inexistente pelo poder judiciário, acaba por receber a denominação de ativismo judicial. Nessa circunstância jurídica, temos uma substituição do Legislativo pelo Poder Judiciário, afastando o Direito das normas positivadas e aproximando-as dos fatos [21]. Nesse processo paulatino, haveria uma total supressão do direito positivo para a volta do jusnaturalismo. Esse movimento de volta para as origens naturalista possui diversas nomenclaras, sendo nomeado de neoconstitucionalismo por alguns autores, que nada mais seria do que a utilização extrema da tese da jurisprudência dos valores [21]. ​​ 

Esses movimentos têm em comum a atuação ativa do Tribunal Constitucional na concretização de direitos sem previsão normativa ou contrária a dispositivo expresso, normalmente utilizando de valores abstratos na argumentação jurídica na decisão. Esse ativismo judicial acaba por desencadear as concepções antidemocracias presentes no controle de constitucionalidade, tendo em vista o Tribunal sobrepõe a área de competência do legislativo e executivo, configurando a crise de legitimidade [1].

É claro que o Tribunal deve se manifestar nas causas que lhe são propostas, podendo inclusive resguardar direitos fundamentais violados pelo Estado com base em preceitos implícitos abstraídos das normas. Essa legitimidade se estenderia também para os casos de omissões do poder público que provocariam grave ameaça a direito constitucionalmente resguardado [2]. Entretanto, tal competência de proteção dos direitos fundamentais não pode viabilizar uma atuação indiscriminada, onde a Corte atuaria como se tivesse capacidade legislativa ativa (excluindo obviamente as competências de proposição de projetos de lei no âmbito do Poder Judiciário).

Em suma, o ativismo judicial provoca a violação dos preceitos democráticos de governo, sendo indispensável compatibilizar as decisões proferidas com as competências democráticas constitucionais. Nesses parâmetros, o capítulo a seguir apresentar essa necessidade de conciliação, abordando aspectos limitadores do poder de decisão com o objetivo de evitar uma extrapolação desmedida do judiciário perante os anseios democráticos de governo.

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2.3Mitigação do paradoxo entre o controle de constitucionalidade e o regime democrático de governo

O paradoxo referente ao controle de constitucionalidade e o regime democrático de governo é um problema constante nas sociedades modernas. A tentativa de sobreposição de um poder pelo outro acaba sendo constante em qualquer Estado, proveniente da externalização da própria natureza humana. Diante disso, é necessário apaziguar as questões de poder, a fim de evitar qualquer forma de erosão democrática provocada pela quebra das harmonias pela ausência de controle dos poderes.

Nesse sentido, a conciliação dos institutos jurídicos se faz necessário, traçando regras claras na tomada de decisão, com o objetivo de evitar tanto a politização das decisões judiciais e a extrapolação da interpretação criativa, motivadoras da quebra de legitimidade. Entretanto, existe uma dificuldade referente ao como evitar essa extrapolação das atribuições judiciais quando o judiciário detém a última palavra sobre essas questões. Não há como o legislativo e o executivo realizar um controle direto das decisões judiciais, ante o claro interesse de seus membros nos atos objetos de decisão.

Nesse aspecto, é necessário a conciliação dos institutos jurídicos, sem que haja a quebra da harmonia dos poderes. A concessão de controle dos atos decisórios tanto para o legislativo quanto para o executivo desequilibraria os aspectos inerentes ao poder, o que demanda uma movimentação metodológica da própria corte em si, como um aspecto de autocontrole ou por intermédio de normas legislativas. Com base nisso, seria importante traçar parâmetros de método decisório, a fim de evitar uma atuação invasiva por parte do judiciário.

Diante disso, o capítulo trata sobre a questão da conciliação dos aspectos democráticos com o controle de constitucionalidade. Nele é debatido o método decisório, prevendo aspectos metodológicos básicos com a finalidade de evitar a preponderância de aspectos políticos no contexto decisório, bem como delimitando o vício da utilização desarrazoada de interpretações criativas. Posteriormente, é explanado a questão da organização do Poder Legislativo como contramedida as decisões proferidas por intermédio da constitucionalização da matéria por meio de emenda constitucional.

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2.3.1 A necessidade de previsão metodológica no processo decisório para afastar concepções políticos e interpretações criativas

O processo decisório não apresenta uma metodologia bem definida. É óbvio que temos aspectos obrigatórios dentro de uma decisão judicial, tais quais a estruturação da decisão, necessidade de fundamentação, etc. Apesar disso, o problema do processo decisório seria os parâmetros de fundamentação jurídica, ou seja, o caminho adotado e que justifique determinada decisão. O que temos, atualmente, seria um modelo de fundamentação livre, onde cada magistrado profere o seu próprio voto, e, no final do processo, ocorre a unificação de votos esparsos em um consenso [10].

Nota-se pelo modelo de decisão que existe uma enorme discrepância entre a fundamentação de votos, onde cada um adota os critérios que bem entender. Nisso, é de extrema dificuldade abstrair o(s) principal(is) motivo(s) jurídico(s) de decidir, uma vez que cada voto possuiria argumentações diferentes e até contraditórias entre si [18]. Somando-se a isso, os ministros (talvez pela repercussão de determinadas causas e o televisionamento dos julgamentos) proferem decisões com quantitativo exacerbado de páginas, quase como se fosse uma tese de doutorado. E ao final, o relator tende a buscar um coeficiente comum para o acórdão ser publicado [21].

Pelo exposto, os ministros possuem um campo de atuação deveras amplo, na qual qualquer condição minimamente jurídica pode ser utilizada como fator de decisão. Nessa vertente, como dito anteriormente, valores abstratos e morais são abstraídos das normas, buscando uma Constituição moral implícita que fundamentasse a Constituição positivada [12]. A subjetividade de tal atuação é tanta que decisões contraditórias e contrárias à vontade do próprio Constituinte Originário restam evidenciadas nos votos.

Para umas decisões utilizam-se de um critério extensivo de determinado princípio, enquanto, em outros casos, mesmo que em casos semelhantes, os ministros o limitam, sem qualquer explicação minimamente condizente. Como os princípios tem caráter abstrato e muitos deles representam valores morais, acaba que a decisão final se torna uma externalização da convicção moral ou motivo político implícito do próprio julgador [10].

Nesse sentido, a presença de uma metodologia de decisão mais objetiva que permita verificar o entendimento da Corte para determinados casos, de forma a afastar a idealização política e criativa da corte no enfoque decisório, faz-se necessária [11]. Essa metodologia traria como parâmetro uma melhor elucidação da questão, onde o ministro fundamentaria, de forma mais consistente, seu processo decisório. O método refletiria o posicionamento do magistrado na interpretação da norma constitucional, afastando a utilização de motivações deveras extensas, sem conexão com os autos do processo.

A argumentação jurídica, com base no exposto, deve evitar transparecer valores morais dos ministros que compõe a Corte, necessitando ser adotado uma fundamentação jurídica condizente e apta a embasar eventual decisão judicial [11]. A decisão, então, deve ser limitada ao debate em questão, ou seja, não é necessário o enfrentamento de todos os aspectos doutrinários que circundam as normas objeto de julgamento, pois decisão judicial não é um trabalho acadêmico (tal como uma monografia, dissertação e uma tese de doutorado), mas sim a verificação da compatibilidade da norma perante a constituição. A limitação do que efetivamente deve ser debatido e a apresentação da argumentação com o esclarecimento do método utilizado para a obtenção da resolução se faz necessário para o melhor entendimento judicial.

Essa aplicação metodológica do direito na decisão judicial evitaria a preponderância de aspectos políticos e morais no processo decisório, tendo em vista a argumentação juridicamente sólida e racional apta a justificar o posicionamento da Corte. A aplicação de um método, exposto tanto em regulamentações internas do próprio poder judiciário quanto em legislações infraconstitucionais, não tem a finalidade de exterminar debates jurídicos, mas sim tornar aceitável a decisão judicial, em virtude da presença de solidez e coerência do processo adotado para se ter a resolução jurídica.

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2.3.2A melhor organização do poder legislativo para a votação de projetos de emendas constitucionais como forma de sustar os efeitos decisórios

As decisões de controle de constitucionalidade concentrado na Suprema Corte, apesar de serem consideradas como processo decisório de última instância, não esgotam a discussão sobre a referida norma. O debate ao redor do texto da lei continua mesmo com a decisão da Suprema Corte, em face da possibilidade de constitucionalização da matéria, provocando acalorados debates políticos no parlamento [23]. Destarte, mesmo que haja a decisão de inconstitucionalidade da legislação vigente, ainda é possível a aprovação de emendas constitucionais, adequando a questão as normas constitucionais e reposicionando a legislação no ordenamento jurídico pátrio.

Segundo o artigo 60 da Constituição Federal, tanto o Poder Executivo, por proposta do Presidente da República, quanto o Legislativo, mediante proposta de 1/3 (um terço) de deputados ou senadores, podem propor alterações no texto constitucional [2]. Nesse parâmetro, a resposta as decisões da Suprema Corte podem vir de ambos os poderes pela proposta de Emenda Constitucional, com a consequente deliberação e resolução no Congresso Nacional. Diante disso, a aprovação da alteração constitucional retiraria o efeito da decisão do Supremo Tribunal Federal, sendo uma resposta condizente com as decisões desmedidas proferidas pelo judiciário [23].

A formação de uma consciência legislativa para travar algumas manifestações do Supremo Tribunal Federal, como se fosse uma forma de resposta/controle indireto de decisões, é de suma importância para o equilíbrio dos poderes. Essa atuação do Poder Legislativo provocaria um freio a atuação inovadora e desmedida do judiciário, uma vez que o ministro teria a certeza de que, caso a sua decisão extrapolo as suas atribuições, ela pode ser derrubada posteriormente pela atuação legislativa. Portanto, a organização legislativa para dirimir uma possível quebra da legitimidade democrática pelas decisões judiciais que extrapolem a sua função precípua se faria necessário nas sociedades modernas.

Nessa perspectiva, haveria uma forma de controle dos atos judiciais pelos parlamentares regularmente eleito, como uma atuação ativa ou auxiliar do executivo, exercendo o papel de representantes da população. Um exemplo dessa atuação seria a recente Projeto de Criminalização das Drogas, onde o senado se organizou para a derrubada de uma decisão que, segundo os representantes eleitos, extrapolariam as atribuições da Suprema Corte [3].

Vale reverberar que essa seria uma atuação tanto preventiva (anterior a decisão final) quanto corretiva (pós ato decisório). A atuação preventiva se referiria a constitucionalização da questão antes do término do julgamento da matéria na Suprema Corte. Quanto mais rápido a movimentação do legislativo sobre a matéria, menor seriam os efeitos provocados no mundo real dos atos judiciais indevidos. Por esse motivo, a organização legislativa para o acompanhamento da pauta do Poder Judiciário, além de permitir uma melhor organização da pauta legislativa, mitigaria as eventuais “decisões inesperadas”, ocasionadas pelo desconhecimento dos parlamentares do que está sendo objeto de votação nas Cortes Superiores. ​​ 

É claro que essa modalidade de atuação do processo legislativo para retirar a eficácia de uma decisão em sede de controle concentrado sofre limitações. As emendas constitucionais não são juridicamente ilimitadas, demandando, além da obediência ao rigoroso processo de alteração da Constituição, a observação de dispositivos impassíveis de exclusão, chamadas de cláusulas pétreas [23]. ​​ Nisso, mesmo com a utilização de emendas à constituição, seria possível o controle do judiciário sobre essas alterações, com finalidade de evitar a ruptura de preceitos mínimos do Estado Democrático de Direto [17].

Nesse contexto, a organização do legislativo para mitigar decisões judiciais controversas não impediria aquelas decisões fundadas em cláusulas pétreas, uma vez que o tribunal simplesmente retiraria a eficácia da emenda constitucional. Porém, nada impede que a emenda constitucional compatibilize institutos jurídicos aparentemente conflitantes, de forma a apaziguar a questão.

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3. Considerações finais

O presente artigo buscou verificar o paradoxo em voltada do controle de constitucionalidade e o regime democrático de governo, demonstrando que, ao mesmo tempo em que o controle apresenta aspectos benéficos à democracia, ele pode vir a produzir crises de legitimidade democrática. Para tanto, considera-se que a democracia deixou de ser a mera decisão da maioria, sendo necessário a presença de institutos voltados a proteção de preceitos indispensável para a manutenção e aplicação do regime, tais quais a preservação dos aspectos inerentes a separação dos poderes e defesa dos direitos fundamentais.

Com base nesse parâmetro inicial, o trabalho comprova que o controle de constitucionalidade judicial permite uma melhor harmonização e separação dos poderes, prevenindo medidas voltadas a quebra do modelo democrático de governo. Os Poderes Executivo e Legislativo, em razão do desempenho típico de suas funções, possuem interesse no julgamento da compatibilidade do ato às normas constitucionais. Nesse aspecto, se o controle fosse conferido aos referidos poderes, haveria uma clara utilização do mesmo como forma de concentração de poder, esvaziando o sentido do instrumento constitucional. Assim, o Poder Judiciário seria o que melhor se adequaria a questão da manutenção da separação dos poderes do regime democrático de governo.

Além disso, o controle de constitucionalidade judicial teria como concepção a proteção dos direitos fundamentais, indispensável para a manutenção do regime democrático de governo. A fim de evitar qualquer interferência física ou mental no exercício do voto, bem como resguardar o livre fluxo de ideais em uma sociedade mutável, o controle de constitucionalidade permitiria a manutenção de premissas mínimas para o pleno desenvolvimento da democracia. Diante disso, é inegável que, apesar do controle de constitucionalidade ser exercido em última instância por juízes togados, ele é essencial para a manutenção da democracia, sendo compatível com o referido regime de governo.

Entretanto, a extrapolação desse instrumento constitucional prolifera crises sociais de legitimidade democrática. Esse fato é ocasionado pelo fato de algumas decisões transparecerem argumentações de caráter político ou com base em interpretações criativas. A primeira seria caracterizada pela politização no processo judicial, na qual o ministro busca beneficiar determinada bancada ideológica, utilizando-se implicitamente desse aspecto subjetivo como parâmetro de decisão. Já o segundo seria reflexo das decisões que ultrapassassem os limites da competência judicial, utilizando-se, muitas vezes, de argumentações subjetivas desconexas com a redação do texto constitucional, tais como a utilização de valores morais como embasamento jurídico. Essas duas modalidades de decisão são apenas exemplificativas e provocariam o paradoxo do controle de constitucionalidade judicial no regime democrático, uma vez que tal medida não deveria, naquele caso específico, ser adotada pelo Poder Judiciário.

Nesse sentido, para fim de compatibilizar o instituto e evitar essa crise de legitimidade democrática, seria necessário a estipulação de uma metodologia jurídica de decisão, com a finalidade de esboçar uma argumentação jurídica mais condizente e racional com as atribuições do tribunal. Dessa maneira, afastaria a externalização de finalidade política da decisão proferida, mitigando a crise de legitimidade.

Ademais, corroborando com a ideia de limitação da tomada de decisões judiciais provocadoras de questionamento democrático, o Legislativo, deveria se organizar de maneira a verificar a adequação das argumentações jurídicas em sede de controle de constitucionalidade. Ao perceber a retirada da eficácia de determinado instituto jurídico com argumentação jurídica deficitária, o legislativo teria a possibilidade de realizar emendas constitucionais, com finalidade de retirar a eficácia da decisão desvirtuada. Nesse sentido, haveria uma forma de controle implícito dos demais poderes na proposição de emendas e aprovação da modificação constitucional, adequando a questão aos preceitos democráticos

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4. Declaração de direitos

 O(s)/A(s) autor(s)/autora(s) declara(m) ser detentores dos direitos autorais da presente obra, que o artigo não foi publicado anteriormente e que não está sendo considerado por outra(o) Revista/Journal. Declara(m) que as imagens e textos publicados são de responsabilidade do(s) autor(s), e não possuem direitos autorais reservados à terceiros. Textos e/ou imagens de terceiros são devidamente citados ou devidamente autorizados com concessão de direitos para publicação quando necessário. Declara(m) respeitar os direitos de terceiros e de Instituições públicas e privadas. Declara(m) não cometer plágio ou auto plágio e não ter considerado/gerado conteúdos falsos e que a obra é original e de responsabilidade dos autores.

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Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília. Aluno do curso de Mestrado do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB/ICPD.

2

​​ Atualmente, o instituto do orçamento impositivo, votado e aprovado no Congresso Nacional, diminuiria a dependência do Poder Legislativo perante o Executivo no quesito orçamentário.

 


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